"Um, dois e já" de Inés Bortagaray: primor na construção da personagem central, numa perfeita invocação da inocência e da nostalgia da infância
"Um, dois e já", primeiro livro da escritora uruguaia Inés Bortagaray a ser lançado no Brasil, em 2014, pela extinta Cosac Naify em mais um primoroso projeto gráfico da editora. Trata-se de uma novela (maior que um conto, menor que um romance), onde acompanhamos os pensamentos de uma menina de uns 12 anos de idade, durante a viagem dela de carro com a família. Sentada no banco de trás, ao lado dos três irmãos, com o pai dirigindo e a mãe sentada ao lado dele, ela vai saltando de pensamento em pensamento, na medida em que a paisagem passa pela janela.
Pelo fato da personagem narradora ser uma criança, a escrita é infantil (sem ser infantiloide), ora jovial (seriam memórias?). Os pensamentos dela são construídos de forma aleatória. Às vezes, é a música na rádio que invoca uma lembrança, às vezes é a briga entre os irmãos para ver quem se sentará na janela, às vezes a preocupação em zelar pelo pai, abaixando o pino da porta. A linguagem é cheia de "coisas favoritas", bem no que se espera de uma criança. Obviamente tudo soa direto, sem apelos metafóricos, que prejudicariam a plausibilidade da proposta literária, que é perfeitamente executada. É tão primorosa a construção literária que não sentimos falta do fato de personagens e lugares não terem nomes na história (ainda que possamos deduzir se tratar das estradas do Uruguai).
Sobre os outros personagens, tomamos conhecimento de características únicas de cada um, por meio do olhar atento da menina narradora. O irmão birrento, a irmãzinha meiga, a irmã dorminhoca mais velha, os pais amorosos...
Nas entrelinhas, deduzimos que os pais são militantes de esquerda, que a história se passa durante a Guerra das Malvinas, entre Argentina e Reino Unido. Sobre essas entrelinhas, o livro remonta o leitor atento tanto às famílias que fugiram da repressão política durante governos militares na América Latina quanto à qualquer família que encara a estrada para passar um fim-de-semana. Nesse ponto, a família da narradora se iguala a qualquer família do mundo que viaje junta, para qualquer lugar, para fugir da rotina.
Toda a narrativa invoca um sentimento agradável de nostalgia. Ao ler o livro, logo me vi recordando das viagens em família para o interior de Minas, visitando meus falecidos avós maternos e outros parentes, ou viajando para o Espírito Santo, onde passei um pedacinho da minha infância. Isso cativa, bem como o projeto gráfico da Cosac Naify, que citei no início. O livro é pequeno, tanto no tamanho (formato de bolso) quanto no número de páginas e, somado à cor azul-bebê das páginas, há uma invocação infantil, que denota uma delicadeza intrínseca à narradora.
Excelente leitura! Excelente livro!
(BORTAGARAY, Inés: tradução de Miguel de Castillo. Um, dois e já. São Paulo: Cosac Naify, 2014, 96 páginas)
P.S.: Resenha escrita em 2017.