Diário das minhas leituras/27

08/04/2019 – MARAVILHAS DO CONTO PORTUGUÊS

Sofre bastante, o povo português. Trata-se de uma admirável seleta que encerra profundos dramas. Às vezes é o da miséria, como no conto de D. João da Câmara (“O perdido”), mas levada ao seu paroxismo mesmo no excelente “História do Gebo”, de Raul Brandão. Às vezes leva-se uma vida errante e não se tem onde morar, circunstância que a enfermidade não respeita (“Dias de vento”, de Fernando Namora). A morte é, sempre, um ameaça. Muitas vezes ela nos aparece injusta demais e nos obriga a fazer alguma coisa para tentar impedi-la (“Um caso sem importância”, de Pereira Gomes). Ela pode acontecer por meio de um acidente (“Estrada 43”, de José Cardoso Pires), ou pode ser aguardada há tanto tempo que seria até melhor antecipá-la de alguma maneira (“O Alma-Grande”, de Miguel Torga). Há ocasião em que ela é extremamente cruel (“Samba”, de Castro Soromenho). Entretanto, há quem se defenda do sofrimento por trás da morte de várias maneiras, como se ater aos seus aspectos práticos, ainda que isso denote certa insensibilidade (“A festa ficou-me barata”, de José Gomes Ferreira). A morte de um desconhecido, por sua vez, pode atrair apenas curiosidade, pode despertar o egoísmo alheio, ou então pode provocar uma sensação ruim, mas que não será compreendida pelos outros, perdidos em seus próprios dramas (“As mãos frias”, de Branquinho da Fonseca, um dos que mais gostei). Ah, mas muitas vezes não se morre, e se continua vivendo, sem se saber exatamente o motivo. Há quem viva uma existência apagada, há quem sofra na mão dos outros e nem se dê conta da sua dor (“Maria do Ahú”, de José Régio). Há quem queira transcender essa realidade, quem procure atabalhoadamente uma razão de viver, quem deseje coisas novas e empolgantes que não chegarão nunca (“Uma mulher como as outras”, de Maria Archer, outro destaque). Outros fogem da busca por sentido, abrigam-se na ociosidade ou na farra, até que a vida cobra os seus preços, e às vezes não há com que pagar (“O remorso”, de Aquilino Ribeiro). Muitos se dão conta do exato instante em que a vida perdeu o sentido. Muitos vivem da memória do que um dia lhes aconteceu (“O fogo e as cinzas”, de Manuel da Fonseca). Alguns querem reviver o passado, correm na sua direção, mas nunca é como um dia foi e a dor só fica ainda maior (“Meia-Noite”, de João Gaspar Simões, belíssimo). Lembrar, é preciso sempre se lembrar de pessoas que só continuam existindo dentro de nós. Viveram seus dramas pessoas, agitaram-se daqui para lá enquanto estiveram por aqui, e agora, quem diria, só vivem nas recordações de uma pessoa (“Saudades para Dona Genciana”, de Rodrigues Miguéis). Cria-se expectativas, a esperança, como é difícil que ela morra! E, no entanto, às vezes ela nos é extirpada de tal maneira, causa tamanho desconsolo que não se tem muita razão para se continuar a existir (“O filho”, tristíssimo conto de Fialho D’Almeida). O amor, claro, o amor também é matéria de muito sofrimento, principalmente quando contrafeito, quando misturado aos preconceitos e maldades locais (“Manuel Maçores”, bom conto de Trindade Coelho). Casos há, é verdade, em que somos nós mesmos que nos enganamos com o objeto da nossa afeição (“Singularidade de uma rapariga loura”, do Eça de Queiroz). Por vezes nos contentamos simplesmente em ver uma beleza que sabemos impossível (“A mais linda mulher de Espanha”, de Domingos Monteiro). E, ao fim de tudo, diante de todo o sofrimento, voltamo-nos para a razão maior de tudo isso, o motivo de estarmos todos aqui precisando lidar com tanta dor: Deus, ou quem quer que tenha começado com isso tudo. Ah, será que a criação dele foi realmente tão perfeita assim? E se Deus não gostou do que fez? Deus pode ter crise existencial? Se sim, ele teria uma certa muito semelhante ao que Ferreira de Castro o faz ter em “O Senhor dos Navegantes”, o meu conto favorito do livro, pelo que tem de verdade em sua triste filosofia e seu melancólico existencialismo.

13/04/2019 – ALICE MUNRO

Li os dois primeiros contos de “O amor de uma boa mulher”, o nome que dá nome ao livro e “Jacarta”, mas, honestamente, não gostei muito não. É interessante como esses contos se parecem com romances pequenos. A complexidade da trama, a sequência não linear da narrativa, tudo me sugere um romance, e não um conto. Imagino que essa proximidade com o romance é que tenha permitido que ela ganhasse um Nobel de Literatura. Se escrevesse uns continhos curtos, dificilmente conseguiria algo. De todo modo, pelo que li até agora, pareceu-me que deviam ter dado um Nobel a Flannery O’Connor e John Cheever. A contracapa cita o Tchékhov, mas devia ser proibido comparar qualquer escritor ao Tchékhov. Vai haver semelhanças, naturalmente, mas a mim me parece que Tchékhov está longe de ser a influência que mais se destaca nos contos da Munro. Ela está muito mais próxima da tradição norte-americana do conto.

17/04/2019 – VICTOR HUGO

De “Os Miseráveis”, indispensável:

“Você é o que costumamos chamar de feliz? Pois bem; você não passa de um triste. Cada dia tem seu grande desgosto e sua pequena preocupação. Ontem você temia pela saúde de alguém que lhe era muito caro. Hoje você teme pela sua própria saúde; amanhã será uma questão de dinheiro, depois de amanhã a diatribe de algum caluniador, depois, ainda, o infortúnio de um amigo; depois será o mau tempo, depois algo que se quebra ou se perde, depois um prazer que a consciência e a coluna vertebral lhe reprovam; outras vezes, pode ser o andamento dos negócios públicos. Sem falar das preocupações do coração. E assim por diante. Dissipa-se uma nuvem, forma-se logo outra. Em cem dias, apenas um de verdadeira alegria e de sol. E você faz parte do pequeno número dos que se dizem felizes!”.

17/04/2019 – ALICE MUNRO

"Muda-se a lei, muda-se o que uma pessoa faz, muda-se o que uma pessoa é?".

19/04/2019 – ALICE MUNRO

É muito interessante observar como todos os contos de “O amor de uma boa mulher” são feitos a partir da perspectiva de personagens mulheres. Isso já é, de antemão, um mérito, diante de uma literatura que frequentemente é essencialmente masculina. As personagens de Munro podem ser uma esposa, uma avó, uma jovem, podem ser casadas, podem ser solteiras, mas é sempre pela ótica delas que o mundo é apreciado. Também é muito interessante como elas estão mergulhadas em dramas perfeitamente atuais. A questão do aborto, por exemplo, é abordada com grande sinceridade no ótimo “Antes da mudança”. A maternidade e todas as expectativas que ela carrega são confrontadas em contos como “As crianças ficam” e, sobretudo, “O sonho de mamãe”, que deve ser o melhor conto do livro. Também questões como o casamento e o adultério marcam presença – tudo, reforce-se, sob uma ótima feminina. Uma coisa que se pode notar em vários contos é que, à medida que os dramas se desenrolam, chega um momento em que há um acontecimento decisivo, uma morte, um acidente ou uma ameaça que alteram a vida “normal” dos personagens. O drama físico também aparece com destaque. Gostei especialmente dos contos em primeira pessoa: “Antes da mudança”, “O sonho de mamãe” e “A ilha de Cortes”. O conto que dá título ao livro, apesar de momentos muito tocantes, em seu realismo, não foi do meu agrado devido ao formato, que o faz muito mais um romance pequeno do que um conto. São abertas várias “abas” na história que, assim me pareceu, se mostraram desnecessárias. Pessoalmente, gosto de contos mais curtos, e menos “povoados” do que costumam ser esses contos de origem norte-americana. Mas não nego que se trata de uma escritora de muito valor em nossos tempos. Quando ela assume a primeira voz e se torna mais intimista, como em “O sonho de mamãe”, ela se torna ainda mais forte e a sua mensagem impacta mais. Como se vê, atenuei bastante as impressões que tive logo ao iniciar o livro e ler os primeiros contos.

19/04/2019 – ALICE MUNRO

“O sonho de mamãe” é um conto ótimo. Contado em primeira pessoa pelo que se mostra ser o bebê de uma mulher. As crises havidas entre esse bebê e sua mãe, as brigas e disputas entre as duas, aparecem de uma forma que pode ser até “chocante”, em uma sociedade que convencionou dar às mães um papel muito bem definido e que em geral não encontra questionamento. O drama é relatado com muita crueza, com opiniões despidas de sentimentalismo e reduzidas ao que têm de mais prático e realista. Excelente.

19/04/2019 – ALICE MUNRO

Acho que vou falar mais um pouco de “Antes da mudança” também. A guria é filha de um médico que, às escondidas, realiza abortos. Ela é pessoalmente favorável à escolha da mulher pelo aborto, embora não tenha feito essa escolha quando ficou grávida ela própria, algum tempo antes. De toda forma, livrou-se da criança tão logo ela nasceu. Essa história ela só vai contar bem depois, pensando que seu pai a ouve. Mas o pai, que estava de costas para ela, havia acabado de ter um derrame. Ela chega a ajudar o pai dela durante um aborto. O conto deixa em dúvida se o pai era chantageado pela criada, a fim de que ela não contasse o tipo de atividades que ele fazia de forma ilegal. Há, inclusive, umas discussões bem boas sobre a questão da lei e o que isso significa em termos práticos para definir quem uma pessoa é.

26/04/2019 – JAKOB WASSERMANN

"É maravilhoso que uma vida não se extinga, como uma chama sem alimento, quando nada contém além da miséria e trabalho, quando não oferece alegrias nem permite descanso, não tem beleza e um mínimo de esperança”.

É terrível.

26/04/2019 – CHARLOTTE BRONTË

Em “Jane Eyre”:

“A poesia morreu? A imaginação perdeu-se? Não! Mediocridade, não: não permita que a inveja o leve a esse pensamento. Não! Elas não apenas vivem, como reinam e redimem, e sem a sua influência divina espalhada por toda parte estaríamos no inferno... O inferno da nossa própria mesquinhez!”.

26/04/2019 – LIMA BARRETO

Depois de ter relido “A nova Califórnia” e descoberto que se trata um conto maravilhoso, resolvi reler os “melhores contos” do Lima Barreto, que eu havia lido há muito tempo. A memória que eu tenho é a de não ter gostado muito dos contos, principalmente se comparado ao “Triste fim de Policarpo Quaresma”, que muito me agradou. Agora que reli, entendo melhor algumas das minhas dificuldades, pois alguns dos contos continuaram um pouco difíceis, mesmo para o leitor que eu sou hoje. No entanto, prefiro destacar o que gostei. O conto que encerra o livro, “O filho da Gabriela”, é uma peça incrível, digna de figurar em antologias. O drama existencial dessa pobre criança, fruto da pobreza, da miséria e do abandono afetivo é muito tocante, e escrito de uma forma extremamente sensível, o que até me impressionou. Consegui de fato “ver” esse filho da Gabriela e me identificar profundamente com ele – afinal, era também um moleque que não conseguia encontrar o seu lugar no mundo, vivendo de silêncios e imaginações. Lindo demais. O livro conta também com o excepcional e divertidíssimo “A nova Califórnia” e também com “O homem que sabia javanês”, que é um dos mais conhecidos contos dele. Nota-se que há muitos contos “intencionais”, no sentido de que o autor tem uma posição pessoal a defender com a história. Isso muitas vezes pode ser perigoso para a literatura, mas Lima Barreto se coloca sempre ao lado dos pobres, dos negros e dos miseráveis, de maneira que não há o que lhe censurar no tipo de posicionamento que tomou nas histórias que escreveu. Também é de se destacar o quanto ele escrachou em seus contos o pobre mundinho dos políticos e dos serviçais do Estado de maneira geral. Um esforço digno de nota e com o qual, afinal, todos nós acabamos concordando. Destaco ainda o continho “O cemitério”, duas paginazinhas só, mas que tem reflexões existenciais bastante interessantes, e escritas de um jeito muito bonito. Foi bom reler.

29/04/2019 – LIMA BARRETO

Dois trechos que gostei bastante de “O filho da Gabriela”:

"O mundo parecia-lhe uma coisa dura, cheia de arestas cortantes, governado por uma porção de regrinhas de três linhas, cujo segredo e aplicação estavam entregues a uma casta de senhores, tratáveis uns, secos outros, mas todos velhos e indiferentes".

"A madrinha interveio, aplainou as dificuldades; e, com a agilidade de espírito peculiar ao sexo, compreendeu o estado d'alma do rapaz. Reconstitui-o com os gestos, com os olhares, com as meias palavras, que percebera em tempos diversos e cuja significação lhe escapara no momento, mas que aquele ato, desusadamente brusco e violento, aclarava por completo. Viu-lhe o sofrimento de viver à parte, a transplantação violenta, a falta de simpatia, o princípio de ruptura que existia em sua alma, e que o fazia passar aos extremos das sensações e dos atos".

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 29/04/2019
Reeditado em 29/04/2019
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