Resenha: Tocaia Grande - A Face Obscura, de Jorge Amado. Youtube: O Livro da vez por David Thomas
Análise da Obra
Informações técnicas da obra:
• Título da Obra: Tocaia Grande (A Face Obscura);
• Autor/Autora da obra: Jorge Leal Amado de Faria (Jorge Amado);
• Editora da Obra: Coleção Folha;
• Data de publicação: 1984.
Espírito/ Essência da obra:
• Gênero textual: Romance social nordestino;
• Escola Literária/Período literário: É um romance da segunda fase do Modernismo, apesar de ter sido publicado em 1984. “Nessa fase os escritores revelariam em suas obras uma grande preocupação com os problemas sociais de seu tempo”. Esse livro faz parte do que costumam chamar da obra Amadiana: “O Ciclo do Cacau”. Nessa categoria das obras de Jorge Amado são apresentadas fontes que nos transportam, através da ficção, pela história e geografia do Sul da Bahia, pela vida agitada da cidade de Ilhéus e suas redondezas, durante as primeiras décadas do Século XX;
• Ambiente físico e temporal da obra: Uma cidade fictícia chamada Irisópolis ou Tocaia Grande. Próxima, segundo a narrativa, a Itabuna e Ilhéus no estado da Bahia no início do século XX;
• Tipo de narrador: Narrado em 3ª pessoa, narrador-onisciente;
• O romance Tocaia Grande, A Face Obscura, teve sua trama adaptada para a telenovela com a produção da extinta Rede Manchete, sendo exibida em outubro de 1995.
Enredo:
O Romance começa narrando a fundação e o desenvolvimento de uma cidade fictícia, Irisópolis ou como vai ficar conhecida posteriormente, Tocaia Grande. A cidade realmente é fundada após uma tocaia/emboscada, planejada pelo Coronel Boaventura Andrade contra os jagunços do coronel Elias Daltro, seu rival. Em Tocaia Grande Jorge Amado descreve o processo de formação de uma cidade nordestina nascida através da violência e da disputa de terras dos coronéis. Amigos primeiro, depois inimigos, cada um se considerando o dono exclusivo daquela imensidão de mata cerrada. Tendo o melhor jagunço, Natário da Fonseca, o Coronel Boaventura tem sucesso em sua cilada e promete ao cangaceiro lhe conceder uma parte da terra para que possa plantar cacau e também o título de Capitão da Guarda Nacional Natário da Fonseca, símbolo de prestígio e de poder. Ambas são de fato concedidas após sua vitória na emboscada. O Coronel Boaventura Andrade é casado com Dona Ernestina, uma senhora espírita e eles têm um filho, estudante do último ano de Direito, Venturinha. O Capitão Natário da Fonseca foi de fugitivo da Justiça a Chefe de cangaceiros, agora Capitão e dono de terras, graças ao Coronel Boaventura. Muitos acreditam que o Capitão Natário da Fonseca tem o dom de ler pensamentos e/ou de ver o futuro. De fato há ocasiões em que ele acaba dizendo coisas que futuramente tendem acontecer. Um antagonista contraditório, pois para uns é criminoso, desalmado, bandido; para outros, capitão valente, bondoso e objeto de cobiça para as mulheres. Particularmente senti um pouco essa dualidade no comportamento do Capitão Natário da Fonseca quando ele se encontra com uma das principais personagens do enredo: a Bernarda; ela que sofrera com a mãe entrevada na cama e os abusos sexuais praticados pelo próprio pai. Após a morte da mãe, Bernarda saíra de casa fugida. Ela é apaixonada por Natário que juntamente com sua esposa Zilda, foi quem a criou. Sendo o capitão Natário seu padrinho, mas que mantem relações sexuais com ela. A forma com que ele vê essa personagem pode confundir um pouco, pois por um lado ele demonstra até um certo sentimento paterno para com ela, mas também tem fortes desejos sexuais que coloca em prática sem a menor dor de consciência, chegando até mesmo a engravidá-la. Aos poucos Tocaia Grande vai atraindo mais e mais personagens e se tornando uma cidade de fato. Dentre esses personagens podemos citar o “amigo” do Capitão Natário, o comerciante libanês Fadul Abdala. Além de ser o primeiro comerciante da região, Fadul Abdala atuava como “enfermeiro”, atendeu e curou muita gente naquele sertão sem médico nem farmácias, chegava até mesmo a batizar crianças e abençoar casamentos. Seu desejo é construir nas terras do Capitão Natário, Tocaia Grande, algum tipo de comércio e de fato abre um armazém que é frequentado por todos na região. Ele tem muito forte nas lembranças a personagem Zezinha do Butiá que de tanto perturbar os pensamentos dele, chega parecer muitas vezes uma espécie de fantasma. Um outro personagem muito importante entra na narrativa: Tição ou Castor Abduim, filho de Xangô, um negro servo que acaba se envolvendo sexualmente com a mulher de um Barão (seu proprietário) e não contente também se envolve com a amante do Barão. Tendo que fugir por ter agredido o “Barão”, acaba num determinado momento se instalando nas terras de Tocaia Grande. Ferreiro muito habilidoso, Tição cria raiz em Tocaia Grande como ferreiro e também fabricando as ferramentas dos Orixás. E aos poucos aquele pequeno local que nasceu através de uma emboscada (Tocaia), vai crescendo e atraindo mais e mais imigrantes (ver página 71 e 73). No meio do livro, Tocaia Grande vai deixando de ser um local somente para viajantes passar a noite e aos poucos vai se tornando cidade, atraindo mais e mais famílias, aumentando o comércio da região e até mesmo os casebres das prostitutas. Contudo essa grande mudança só vem acontecer quando os Sergipanos começam a "imigrar" para lá. Afinal as primeiras famílias que foram viver em Tocaia Grande eram famílias sergipanas. Um dos melhores e mais cômicos momentos é quando um grupo de ciganos se hospedam em Tocaia Grande e do nada eles vão embora, levando todas as prostitutas do local; os homens entram em pânico e começam a procurá-las incansavelmente, se comportando até mesmo como se fossem maridos delas. Como ele já foi citado anteriormente, um dos personagens principais dessa obra Amadiana é Venturinha, o filho do Coronel Boaventura. Sendo ele o único filho do Coronel e sua esposa, Boaventura aposta tudo nesse filho, pagando a faculdade de Direito (que ele chega a se formar) e todos os gastos durante o tempo que o filho permanece fora. Venturinha representa o interesse do coronel em se impor na política, que almejava colocar o filho no cargo de Intendente de Itabuna ou até deputado. Somado a isso, havia também a necessidade de ter alguém para protegê-lo na esfera da justiça. Quando Venturinha termina sua graduação, o Coronel acredita que ele finalmente iria voltar e exercer sua profissão, auxiliando a família e cuidando dos negócios do pai. Contudo Venturinha não é um filho que valoriza os empenhos paternos. Mentindo, diz para todos que deverá voltar e fazer um curso de especialização. O pai completamente contrariado e até mesmo frustrado, diz que se é para mais um diploma ele arca novamente com as despesas acadêmicas do filho, mesmo desejando muito que ele ficasse e assumisse seu papel nos negócios familiares. O que o Coronel Boaventura não sabe é que esse curso nada mais é do que uma desculpa para Venturinha permanecer fora, gastar o dinheiro da família com bebidas e noitadas, mas também com a prostituta argentina Adela La Porteña, que ao que parece tem ganhado o coração (e o dinheiro) de Venturinha. Porém no final do livro o Coronel Boaventura começa a perceber o descaso do filho pelos empenhos paternos e também por toda família no geral, envergonhando-se ao compará-lo com os filhos de outros Coronéis e também ao se dar conta que o Capitão Natário da Fonseca agiu muito mais como um filho para ele do que o seu próprio sangue. Quase que ao mesmo tempo percebemos que o Coronel Boaventura passa a ser um homem deprimido, abatido e envelhecido, não somente pelo tempo, mas também por todas as lutas e decepções que ele teve; pouco depois o Coronel Boaventura falece. Outra personagem curiosa é Epifânia, prostituta como as outras, ela é apaixonada por Tição e por sua fama de ser feiticeira, pois ela realiza amarrações e separações, joga búzios, etc todas procuram não se aproximar dele enquanto Epifânia está por perto. Para ela sempre houve um compromisso entre os dois e ela seria sua “dona”. Quase no final do livro acontece uma enchente no rio das Cobras, que durou mais de trinta horas, que devasta toda Tocaia Grande (Não teve como não me lembrar dos inúmeros casos de enchentes que ocorrem nas cidades brasileiras e do recente caso de Brumadinho em MG) e algo que é difícil passar despercebido é como os únicos prejudicados nesse evento são os habitantes pobres da cidade que foram os verdadeiros construtores; a casa do Capitão Natário da Fonseca é o único lugar que permanece intacto. Nisso podemos perceber uma crítica de Jorge Amado (páginas 389 e 393). Assim que finalmente chegou ao fim da enchente, alguns personagens morrem e um deles (que quase chorei) é a cachorrinha de Tição, resgatada já morta. Quando li esse momento e especialmente a cena do enterro dela confesso que meu coração deu uma boa estremecida (Ver página 408). Tocaia Grande nem bem se recupera da enchente e uma Febre sem nome (que percebe-se tratar da Febre Amarela) acaba vitimando a região, levando ainda mais personagens para a sepultura, sendo uma delas que mais me surpreendeu: Diva, mulher de Tição. Uma das poucas coisas que ainda não havia em Tocaia Grande era uma igreja e na página 477 vieram dois freis para trazer um pouco “de Deus” para aquela região “dominada pelo pecado”. A chegada desses freis em Tocaia Grande de alguma maneira me lembrou muito a chegada dos jesuítas no Brasil e sua luta pela catequização dos índios; pode-se encontrar muitas outras críticas nesse pequeno trecho. Bernarda morre ao se colocar na frente do Capitão Natário da Fonseca quando ele iria levar um tiro. O livro e a cidade começam numa tocaia e terminam numa outra tocaia, tocaia na qual morre a maior parte dos personagens. Enquanto era só mato, ninguém queria se dizer dono daquela região, contudo com o desenvolvimento de Tocaia Grande, muitos homens passaram a cobiçá-la. No fim quem sofreu, construiu e sonhou fazer nova vida na cidade acabou pobre, fugido e boa parte acabou morto. No fim podemos dizer que todos morrem, não resta um dos principais personagens para continuar contanto a estória, nem mesmo o Capitão Natário da Fonseca sobreviveu. O mandante desse assassinato em massa foi Venturinha, o único personagem que não perdeu sua vida nas páginas desse livro.
Minha opinião sobre a obra:
Leitura e apontamento de trechos e páginas.
1. Tocaia Grande - A Face Obscura é uma tentativa de Jorge Amado de relatar a história da zona de cacau, no sul da Bahia, a partir dos personagens responsáveis por construir a riqueza, mas que não obtiveram sucesso com a posse da terra, não acumularam bens, ficando à margem das relações de poder que permeavam a zona do cacau. Mesmo tendo anteriormente se desvinculado do Partido Comunista na década de 1950 (publicação do livro foi em 1984), escapando, a partir de então, dos moldes do chamado "romance proletário", o autor não abandona sua escrita denunciadora da opressão e das desigualdades que permeavam a zona do cacau baiano do início do século XX. Isso pode ser uma prova de que para defendermos ou nos solidarizarmos com as injustiças, desigualdades e problemas sociais, não temos que necessariamente fazer parte de um movimento, ideologia e muito menos de um partido político. Basta usarmos um pouco da nossa humanidade;
2. Sempre me questionei o porquê as obras Amadianas nunca foram solicitadas no período escolar e até mesmo na faculdade nas disciplinas literárias. Lendo ele hoje entendo o motivo. Jorge Amado tem uma escrita extremamente “picante”, sexualmente falando, fora o uso de palavrões. Pode-se perceber de uma forma bem simples esse tempero na escrita numa das falas de Madeleine (proprietária e amante de Tição) na página 54. O erotismo é um elemento da trama que exerce uma presença significativa no romance Tocaia Grande. Os desejos sexuais não são recriminados, são valorizados. Naquele lugar, que crescera a partir de um acampamento de tropeiros, teve nas prostitutas uma forma para distração do trabalho pesado;
3. Jorge Amado ressignificou a ideia de "pecado" nesse livro. Pois graças a carência de uma moral religiosa em Tocaia Grande, havia uma completa ausência de pudores sexuais nessa região criada pelo autor;
4. As personagens femininas de Jorge Amado são mulheres livres, donas de si. Não se prendem muito a padrões sociais nem deixam de realizar suas vontades por imposição masculina. Nessa obra podemos ver essa característica muito clara na personagem de Bernarda. Ela que é uma prostituta de Tocaia Grande, mantem relações sexuais com o Capitão Natário, que deveria ser como um pai para ela, por vontade própria. Ver esse trecho em que Fadul Abdala a convida para viver junto com ele na página 78. Outro trecho em que podemos constatar essa característica é quando Coroca (uma prostituta velha de Tocaia Grande) se oferece a Fadul Abdala para proteger seu armazém após um assalto no local enquanto ele estava ausente (ver página 184);
5. Há um momento que Tição está fazendo um “Ebó” para “Omolu” por estar apaixonado por uma moça de Tocaia Grande e acreditar que isso seria uma doença, nesse trecho da conversa com uma “Mãe de Santo” (Ver página 332), algo me lembrou muito o poema: “Amor é fogo que arde sem se ver” de Luís Vaz de Camões: “Amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer.”
6. Passado todo esse momento da enchente, podemos perceber um bela crítica ao próprio povo brasileiro numa das falas de Fadul Abdala, na página 415. Dizendo que somente um imigrante como Fadul era, fora capaz de se lembrar e se orgulhar da data da Proclamação da Independência da República;
7. Outro detalhe é a forma como Jorge Amado construiu a imagem dos coronéis nessa obra. Percebe-se que houve uma tentativa de passar uma imagem positiva dos coronéis, ao menos uma imagem um pouco mais humana. Muito disso podemos considerar sobre a mudança de posicionamento político que estava ocorrendo com Jorge Amado nesse período. Afinal sabemos que depois de muitos anos como comunista, o escritor se decepcionou ao ver as barbaridades praticadas por Stalin.
• Aspectos negativas observados:
1. Uma das poucas coisas que posso dizer que encontrei nessa leitura que talvez não tenha me agradado muito é a forma como Jorge Amado acaba narrando algumas relações sexuais entre os personagens e acaba comparando-os com animais. Tais como ele narra um desses momentos entre o capitão Natário da Fonseca e Bernarda e termina comparando-os com “Cão e Cadela”. Na minha opinião isso acaba soando um pouco ofensivo;
2. Quase no final do livro há um momento que os habitantes de Tocaia Grande decidem fazer um “Reisado” (Festa popular que se realiza na véspera e no dia de Reis; difundindo-se no Norte e Nordeste, constituído de um figurante acompanhado por um coro cantando peças em sequência; reisada). Nessas páginas quase estava lendo sem entender nada, somente passando os olhos nas palavras. O que na minha opinião a obra tem de empolgante, nessas poucas páginas teve sua parcela de maçante.
• Aspectos positivos observados:
Ao mesmo tempo em que o livro tem muitos palavrões e a maioria das relações amorosas envolverem prostitutas, os capítulos em que aparece Fadul Abdala e Zezinha do Butiá me tocaram o coração. Paradoxalmente uma relação como essa, Jorge Amado conseguiu trazer até uma boa dose de inocência. Ver página 159;
• Uso de palavras no sentido conotativo para se referir a várias coisas, especialmente aos órgãos genitais tanto feminino quanto masculino. O que obviamente me exigiu um pouco de pesquisa, pois algumas dessas palavras eram de origens indígenas, algumas de origem estrangeira (palavrões nas falas de Fadul Abdala, na língua Árabe, tais como “Charmuta” que significa “Puta”; “Begume” que tem um significado parecido como “uma mulher muçulmana saliente”); “Abebê” que é o nome dado ao espelho mágico utilizado pela orixá Oxum e também por Iemanjá, além de expressões próprias regionais da Bahia e também daquela época e até mesmo alguns termos que possivelmente já caíram em desuso, como por exemplo a palavra “Amásia”, que tem um sentido parecido como de amante, alguém que mantém uma relação afetiva com alguém; “Fovoco”, algo como Baile, forró; “Peji”, termo utilizada no Candomblé para designar o local sagrado dos Orixás, um altar. Onde são colocados os assentamentos dos Orixás e restrito aos filhos da casa. Muito parecido com o “Congá” da religião brasileira Umbanda;
• Um termo que o leitor vai se deparar muito ao longo da obra é "Grapiúna". O termo grapiúna é utilizado pelos próprios moradores da região sul da Bahia para designar a população que compunha a região da zona de cacau. Ali juntavam-se pessoas de diversas origens, de Alagoas, Pernambuco, Sergipe, da capital da Bahia, e gente vinda até de outros países, atraídas pela prosperidade da zona do cacau;
• Os diálogos entre os personagens é um dos aspectos que eu dei muitas risadas. De uma simplicidade e humildade, Jorge Amado nos leva através das falas dos personagens ao cenário de Tocaia Grande, um povo simples, humilde e com uma linguagem muito própria dessa região.
Finalizo essa resenha com uma das falas de Jorge Amado que é impossível não bater palmas:
“Disseram certos críticos que não passo de um limitado romancista de putas e vagabundos. Creio que é verdade e orgulho-me de ser o porta-voz dos mais despossuídos. Disseram-me também que tenho a paixão da mestiçagem, e dizem-no com raiva racista. Honro-me infinitamente de ser um romancista da nação mulata do Brasil. Creio que, querendo ofender-me, esses críticos me exaltaram e definiram.”