"Novelas da erosfera" de Emmanuelle Arsan: quando o erotismo dialoga com o realismo fantástico em um texto criativo e provocativo, numa tradução de Clarice Lispector
Livro "Novelas da erosfera", da escritora francesa Emmanuelle Arsan, com tradução de Clarice Lispector.
Clarice é uma das mais importantes escritoras do Brasil, autora de romances, ensaios e contos. Essa é uma faceta que todos nós conhecemos. Contudo, é sempre importante lembrar que grande parte das obras de Clarice não foram como autora, mas como tradutora. Por dominar diversos idiomas, Clarice traduziu mais de trinta livros, em gêneros literários diversos, principalmente na década de 70. Em 1975, seu ano mais prolífico como tradutora, Clarice traduziu 8 obras. Uma delas foi esse livro que terminei de ler, da editora Artenova.
"Novelas da erosfera" é um conjunto de oito novelas eróticas escritas por Emmanuelle Arsan, lançado originalmente em 1969. Arsan é a criadora da personagem que leva seu próprio nome, "Emmanuelle", de traços autobiográficos, uma mulher que explora sem tabus sua própria sexualidade e que aparece em uma série de livros e, posteriormente, filmes.
O livro se divide em duas partes: "novelas inacreditáveis" e "novelas verdadeiras". Na primeira parte, há um foco maior de Arsan no realismo fantástico dialogando com o erotismo. Já na segunda metade do livro, o erotismo é mais "tradicional", por assim dizer, sem o elemento místico, apenas focado na interação entre as pessoas.
O diálogo do erotismo com o realismo fantástico é, além de inusitado, interessante e de uma criatividade ímpar.
O texto de Arsan, muito longe de ser vulgar, é rico, tanto no lirismo quanto no vocabulário, valorizando a ambientação e explorando o pensamento de seus personagens e/ou a interação entre os mesmos. Há também uma dose de humor, bem sutil, refinado.
A literatura erótica sempre esteve presente na história da literatura universal. No Império Romano com "Satyricon" de Petrônio, na Idade Média com "Decameron" de Boccaccio, passando pela ascensão do Marquês de Sade no Século XVIII, passando pelas obras anônimas da Era Vitoriana, até chegar no Século XX, com Henry Miller, Pauline Réage, Anaïs Nin, Pierre Louÿs, etc. Esse gênero literário, sempre se deparou com censuras de todo tipo, baseadas numa base supostamente moral. Em diversos períodos da História, a mesma sociedade que condenava os prazeres carnais era a mesma que, de forma hipócrita, explorava o obsceno às escusas. Logo, é compreensível que a literatura erótica, muitas vezes na clandestinidade, tenha servido como um grito, uma provocação, uma revolução diante da moral vigente.
Esse conceito de revolução está presente no texto de Arsan seja na forma natural como ela encara temas tabus como a homossexualidade (o lesbianismo, principalmente) e o amor livre/poliamor, seja em opiniões dadas por seus personagens:
"(...)
- Não se faz a revolução para criar, a morena lhe grita no ouvido. Faz-se a revolução para conquistar o direito de criar.
- Para estabelecer as condições que tornarão a criação possível, especifica um rapaz que as escutava."
A literatura erótica não serviria para criar as bases de algo, mas para permitir que cada um viva sua sexualidade da forma como bem entende, desde que isso não viole os direitos de outros, naturalmente. Essa visão se faz presente em outro trecho:
"- O que nos desagrada é o tom com que nos falam do amor.
- Isto tudo são razões para se fazer a revolução, mas não é a revolução, pensa Mary em voz alta. O que é preciso é mudar a maneira de se fazer amor. Não somente poder fazê-lo da maneira que se quiser e com quem se quiser. Inventar outra coisa. Fazer tudo, de uma outra maneira."
Eis aí, provavelmente, a síntese do pensamento de Arsan e que, somado a um texto rico e envolvente, cativou Clarice Lispector, levando-a a nos presentear com a tradução para o português. E, nessas horas, tinha vontade de dominar o idioma francês para poder comparar o livro original (Nouvelles de l'érosphère) com essa tradução, identificando possíveis pontos onde Clarice enriqueceu a obra com sua conhecida maestria literária.
(ARSAN, Emmanuelle: tradução de Clarice Lispector. Novelas da erosfera. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, 166 páginas)
P.S.: Resenha escrita em 2018.