Diário das minhas leituras/26

30/03/2019 – MARAVILHAS DO CONTO MITOLÓGICO

É realmente bastante abrangente a coleção “Maravilhas do conto”, que, depois de apresentar os volumes de acordo com as nações, concentrou-se também em aspectos temáticos do conto. Uma obra voltada ao “conto mitológico” é, claramente, algo muito raro de se ver. Por outro lado, essa edição conta com alguns “contos” que nunca foram contos, mas foram transformados, ou resumidos, para o formato do gênero. A estratégia não me agrada muito, embora tenha oferecido a possibilidade de eu ter uma ideia melhor do que há na “Ilíada” de Homero, por meio da história de “A Guerra de Tróia” (cheguei à conclusão que não quero ler Homero tão cedo). Há textos de mitologias mais famosas, como a grega, a egípcia e a indiana, mas outros há provenientes de culturas pouco conhecidas no resto do mundo. Chama a atenção, por exemplo, a linda história de “A Via Láctea”, que é, simplesmente, um conto da mitologia estoniana. Achei muito interessante a história de “O Ramanaya”, o épico indiano que, creio, foi publicado na íntegra. Também achei muito curioso como “Píramo e Tisbe”, da mitologia grega, antecipa a trama de “Romeu e Julieta” (que já é uma versão de uma lenda italiana). Deve ter sido a inspiração da história italiana na qual Shakespeare se inspirou. Outro destaque é “Beowulf”, que provém da mitologia dinamarquesa, embora tenha sido escrito na Inglaterra. É um daqueles textos de heróis e de monstros, mas escrito de forma muito interessante e bonita (apesar da violência da trama). Há textos conhecidos pelo “inconsciente coletivo”, como Prometeu, Édipo e Hércules. Há “Os Nibelungos”, da mitologia alemã, também abreviado. Vou confessar que este é o livro mais difícil da coleção, pois muitos contos parecem exigir ou uma boa bagagem cultural e histórica ou, no mínimo, um interesse temático na questão das antigas mitologias e suas sociedades. De outro modo, não é muito provável que saibamos apreciar textos como “Os avós”, que é da mitologia da Guatemala. É interessante o “conto” final do livro, “Mitos sobre a origem do fogo”, que é, como o nome sugere, uma reunião de mitos das mais diversas partes do mundo relacionados ao surgimento do fogo. Ali estão inclusive relatos dos indígenas brasileiros. Alguns desses relatos não são dos mais fáceis de se ler também, mas outros há que permitem vislumbrar muito bem o que representava para o ser humano passar a ter acesso e domínio ao fogo, algo tão fascinante que não se podia pensar em uma história para ele que não fosse repleta de elementos lendários, míticos, mágicos. Muitos desses mitos reunidos ao longo do livro, afinal, são tentativas de se explicar o surgimento das coisas. Vale saber mais sobre essas histórias, mas com a ressalva de que muitos não são contos e nem muito fáceis.

31/03/2019 – CONTOS BÚLGAROS

Mais uma literatura ignorada no Brasil é a búlgara. Por sorte, encontrei uma antologia de contos editada em Lisboa nos anos 40 e voltada aos “Contos Búlgaros”. Assim já tenho uma melhor ideia daquilo que se produziu no gênero naquele país. Devo ressaltar, entre os contistas presentes no livro, o nome de Dimitr Ivanov (vulgo Elin Pelin). Ele participa com dois contos que, somados a outro que já havia lido no “Maravilhas do Conto Universal”, me permitem concluir que se trata de um mestre da história curta. E é uma lástima que seja solenemente ignorado por aqui. “O advogado” é um divertido conto, muito incisivo na sua crítica ao sistema judiciário em geral, ao mesmo tempo em que ressalta toda a simplicidade dos campônios búlgaros. “O acusado, levante-se!”, por sua vez, coincidentemente também diz respeito a um caso judiciário. O escritor se mostra atento às mudanças tecnológicas do seu tempo e o impacto que elas podem provocar nas simples vilas búlgaras. No caso, o personagem se revolta contra o que o cinema estava fazendo com a sua família e por isso resolve sair pela cidade queimando quantos visse. Hoje, um conto como esse falaria provavelmente do celular. Outro conto que apreciei bastante foi “Anka, a filha de Dona”, de Theodor G. Vlaikov, texto bastante realista sobre as agruras da doença em meio a uma família pobre, quando a própria morte de uma criança pode ser vista como uma bênção para todos. Mas isso não vale para uma mãe, que apresenta uma moral própria com a qual se fortalece e justifica cada esforço para tentar preservar a vida dos seus pequenos. “A alegria não é só para os que têm vida desafogada. É bela também para aqueles que vivem com privações”, diz ela. Há uma grande capacidade de adaptação ou de conformação com a dura realidade, fortalecida na ideia de que outros vivem em condições piores. São descritos episódios prosaicos domésticos que, por sua “alegria calma e franca”, acabavam por fazer se esquecer das agruras do ambiente em que viviam. Tudo isso acaba levando a um bonito resultado. Um bom momento também é “O sonho dum órfão”, de Eugenia Ermazov, mas, nesse, fica a impressão de que o conto é mais positivo do que seria a realidade. “O dragão”, de Nicolas Ras. Rakitine, apresenta uma história romântica trágica. “Tártaros”, de Emmanuel Pope-Dimitrov, é mais um daqueles contos em que se evidencia a crueldade e o absurdo da guerra, essa contando com um pai que se voluntaria entre os condenados à morte no lugar do filho, que só descobriu o gesto mais tarde. “Terceira classe”, conto de Constantino Constantinov, é outra peça ótima, evidenciando a dura condição social de búlgaros vindos do interior para trabalhar na capital Sofia. “Debaixo das ameixeiras” é outro conto de Constantinov no livro e, como o anterior, também reforça desigualdades sociais, agravadas ainda pela questão da guerra recente. Um grupo de mulheres haviam assaltado algumas fábricas de queijo, aparentemente devido à miséria que grassava pela região. “Bolgara”, de Pantcho Mihailov, trata de uma invasão de circassianos em uma aldeia onde havia uma grande cantora, mantida cativa para que cantasse, mas ela se recusa. Há ainda “O dinheiro”, de Vladimir Polianov”, admirável peça sobre um filho que havia ido para muito longe, a fim de fazer fortuna, e que volta depois de quinze anos, mas decide fazer uma surpresa aos pais e não se revelar a eles ao aparecer na casa deles e pedir hospedagem. Os pais não o reconhecem e todos vão dormir, mas durante essa ausência muita coisa havia se passado na cabeça do pai, bastante endurecido pela dureza da vida, e esse pai decide matar aquele hóspede para roubar o dinheiro, sem saber que era um filho seu. O gesto, no entanto, não se concretiza, pois, bem em tempo, chega a filha do casal, que já sabia da chegada do irmã. Notável a crise que se desenrola na cabeça do velho ao saber da verdade. “Uma confissão”, de Fanny Popova-Mutafova, também é interessante, com uma velha que se culpa pela morte do filho na guerra. Ela havia tido apenas filhas mulheres e era humilhada por isso. Então fez uma promessa a Deus para que mandasse um filho homem, ainda que o tomasse depois, e foi o que ocorreu. Há ainda outros contos de que gostei menos: “Búlgaros doutros tempos”, de Liubene Karavelov, “A alma do outro mundo”, de Constantino Vélitchkov, “Lyda Druganova”, de G. P. Stamatov, “O combate”, de Petko Y. Thodorov e “Nestinari”, de Constantino Petkanov. No geral, foi bom conhecer esses búlgaros.

03/04/2019 – FERREIRA DE CASTRO

Leio as "Maravilhas do conto português" e já pesquei algumas maravilhas lá, como "O Senhor dos Navegantes", do Ferreira de Castro. Sujeito tá descansando perto de uma igrejinha em uma montanha quando aparece um homem, entra na igreja, pega todos os ex-votos oferecidos pelos fiéis e começa a jogá-los despenhadeiro abaixo, enquanto fala:

- Nunca salvei ninguém... Ninguém! Eu bem o desejaria fazer, mas já não tinha força para isso. Se estes se livraram da morte, foi apenas por circunstâncias favoráveis.

O homem é, ou julga ser, Deus. Um Deus em crise existencial, um Deus com remorso pelo que deu errado na sua criação. Um Deus que não queria a passividade dos fiéis, mas que lutassem para melhorar o que ele havia feito. E que acredita, inclusive, que nós já estamos fazendo isso:

- O senhor não vê que os homens estão todos os dias a procurar corrigir os defeitos do meu trabalho? O que é um avião ou um escafandro senão um remendo à minha obra?

Esse Deus considerava um erro ter se fundido com os humanos:

- O homem ficara com todas as aspirações dum deus e não era completamente deus. O homem queria ser eterno como o deus que ele guardava dentro de si e era, pelo contrário, tão efêmero como os outros animais. Queria ser feliz, impelido, por aquela obscura reminiscência de quando uma parte dele me pertencia a mim, sua divindade, e havia de passar milênios sobre milênios a lutar para ser feliz, sem nunca o poder ser por muito tempo. Só o era integralmente por alguns minutos e justamente quando fecundava novas dores humanas.

O homem por trás desse Deus havia fugido de um manicômio, mas, como todos os julgados loucos, era de uma lucidez espantosa.

03/04/2019 – EÇA DE QUEIROZ

Eu estava com um pé atrás com esses contos portugueses, pois, embora nunca houvesse lido um livro só com eles, havia tido experiências não muito boas com contos portugueses espalhados por outros livros, e um dos responsáveis por isso era Eça, de cujos contos que li não gostei quase nada. Entretanto, admito que o conto escolhido para o “Maravilhas do conto português” foi do meu agrado. Trata de “Singularidade de uma rapariga loura”. Tem lá as suas descrições que um tanto exageradas, mas a história flui bem.

07/04/2019 – JOSUÉ MONTELLO

Em meio à monumental reconstrução que Josué Montello promove do período escravocrata no Maranhão (e, pode-se dizer, também no Brasil) em “Os tambores de São Luís“, há uma renitente questão de fundo, sempre a assolar o pensamento do negro Damião, cuja história o livro acompanha: por que Deus permite o sofrimento dos negros em seus cativeiros? Afinal, a imagem que cultivava de Deus, e com ele a sociedade em que estava inserido, era a de alguém que não apenas representava o bem e a justiça, mas que inclusive era capaz de intervir na Terra para auxiliar aqueles que sofressem por conta da maldade dos homens. E a cada dia, inclusive na própria pele, Damião sentia os efeitos dessa maldade, como se Deus inclusive a permitisse, já que nada também impedia. Teria a escravidão a anuência divina? Certamente pensariam assim os proprietários de escravos, que não chegavam a ver nenhum tipo de contradição entre o cativeiro do negro e o conteúdo do Evangelho. É, afinal, com um ar compungido que o dr. Lustosa, cruel proprietário de Damião, assiste ao sermão do Bispo em sua fazenda. É segurando um terço entre as mãos que a sádica Ana Rosa Ribeiro, depois de matar friamente um dos seus escravos, acompanha um julgamento que não a condenará. Esses proprietários não tinham, a apertar-lhes a consciência, tampouco a voz oficial da igreja, na figura dos sacerdotes. Todos os percalços da luta de Damião para se tornar padre evidenciam que a igreja estava mais preocupada em não causar escândalos (dessa maneira entendiam um padre negro) do que em pregar as palavras de Jesus (um homem que causou escândalos por onde andou). Envolvida em uma teia de relações com os poderes mundanos, a igreja escolhia salvaguardar o preconceito, a fim de não perder as benesses da elite local. A salvação, para os negros, viria unicamente com a morte, no pós-vida. Damião, no entanto, considerava que a salvação era coisa para o aqui e o agora, e era nas vestes de um sacerdote que ele pretendia, no próprio púlpito, fazer a denúncia do crime dos brancos e conclamar os negros à revolta. A visão que fazia do cristianismo não podia conceber a exploração de uma raça por outra, e o passar dos anos, com a evolução do pensamento, viria a lhe dar razão. Mas, ao seu tempo, quanta decepção enfrentou, vendo frustrados todos os seus movimentos para a libertação do negro! Era quando se questionava o que Deus poderia estar fazendo, já que não intervinha de uma forma direta. Era o velho problema do mal, de como um Deus bom lida com um mundo mal, que tanto tem incomodado teólogos ao longo dos séculos, sem que se tenha dado a ele uma resposta definitiva. E tampouco Damião pensa em uma saída. Quem lhe apresenta uma alternativa original ao problema é o seu amigo Barão, velho escravo, já um tanto cínico, mas o mais metafísico dos personagens do livro. Sugere o Barão que o mundo, na verdade, foi criado pelo Diabo. Isso, por si só, já explicaria todo o mal do mundo. Deus teria vindo depois, e com ele a bondade e a justiça. Dessa maneira, aquilo que pode ser entendido como “bem” seria apenas uma louvável exceção em mundo originalmente mal. O Barão faz até uma adaptação curiosa do episódio da queda do homem, quando Eva comeu o fruto da árvore proibida. Para ele, foi ali, depois de comer da árvore do conhecimento, que o ser humano se iluminou, adquiriu sabedoria para distinguir o bem do mal – e, assim, chegou até Deus. Nessa visão, o próprio demônio teria expulsado Adão e Eva do Paraíso. Esta não é uma teoria que encontre muitos adeptos em nossa realidade, e o próprio Barão não parecia a levar tão a sério assim, pois, ao fim, atribuía tudo à sua cabeça já caduca pela muita idade. Damião apenas ouve e não chega a opinar sobre as ideias do seu amigo. Chegará um dia em que ele, tão desesperado de saídas para o problema da servidão, pensará que, se preciso for, os negros devem se unir inclusive contra Deus. Mas foi um desabafo, pois nunca deixou de acreditar que havia uma força ordenando o mundo e a quem injustiçados poderiam recorrer. E não via problemas em conciliar o Deus cristão com os ritos do candomblé e seus tambores. Veio a liberdade, afinal, e veio não exatamente do jeito certo, trazendo problemas novos para os negros que foram libertos. Haverá um momento em que os próprios negros que apoiava se voltarão contra Damião. A realidade, afinal, nunca é simplista, nunca se sabe exatamente o que é o bem e o que o é mal – Eva, talvez, devesse ter dado mais algumas mordidas. E, no meio de uma realidade sempre caótica e multifacetada, até pode ser que Deus seja perdoado.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 07/04/2019
Código do texto: T6617748
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