Diário das minhas leituras/25

11/03/2019 – BOCCACCIO

Eu já li todo o “Decameron”, mas agora reli uma de suas histórias no âmbito de um livro voltado ao “conto amoroso”. A proposta é, a partir de histórias representativas de cada época, contar a própria evolução do conceito do amor. Houve uma época de que o Decameron é exemplar: a de que todas as farsas e todas as burlas são plenamente justificáveis se tiverem como fim conseguir o amor de alguém – pouco importa se a pessoa é casada ou não. Hoje, entretanto, por mais “libertários” que sejam os nossos costumes, o efeito de contos como “Catela no banho” é de repugnância, sendo que ninguém classificaria o “amor” de tal conto como amor de fato – está mais para alguma patologia, sem falar nos crimes envolvidos. Ora, o sujeito do conto está totalmente apaixonado por uma mulher casada e extremamente fiel. Aliás, também ele é casado. Faz todo tipo de investida contra a mulher, mas ela se mantém fiel. Entretanto, sabe que o “fraco” daquela mulher é o ciúme e então arquiteta uma tremenda burla dando a entender que o marido dela tem um encontro com a mulher dele. A mulher que se acreditava enganada foi ao tal encontro, se passando pela outra. O encontro se deu totalmente às escuras. Ela achava que o homem que estava lá era o seu marido, mas não, era o “herói” da história. O herói da história se passa pelo marido e a possui. Ao término do ato, ainda no escuro, a mulher revela a “verdade”, recriminando duramente o marido por seu ato de infidelidade. Então, tchã-ram, o herói conta a verdade, que não era o marido coisa nenhuma, que era ele, que há tanto tempo buscava o amor da mulher e apenas através desse meio pode obtê-lo. A mulher quer gritar, quer fugir, mas o homem não deixa, o homem a faz calar e o homem a ameaça. E faz isso usando o argumento do amor, com todas aquelas frases patéticas da época, de quem se diz servo da sua beleza e coisa e tal. A mulher cai no papinho e, a partir de então, sempre traiu o marido com esse cara, e “muitas vezes gozaram do seu amor”, e “que Deus nos faça gozar do nosso”. Isso era o amor. Hoje em dia, esse amor seria enquadrado no Artigo 215 do Código Penal.

14/03/2019 – GORKI

Duas frases tiradas do conto “A história de Platão Bacrof”, a primeira do próprio narrador e a outra de um personagem que mal aparece:

“O lado ridículo do homem é a primeira coisa que a mulher vê”.

“Esta é a lei: – na infância, o homem tem sarampo e escarlatina, na juventude, apaixona-se, faz versos e sonha com façanhas... São perdas de tempo muito dolorosas na vida, porém, vale mais tudo isso do que a sabedoria da idade madura!...”.

15/03/2019 – MARAVILHAS DO CONTO AMOROSO

Outra viagem das mais interessantes promovida pela maravilhosa coleção “Maravilhas do conto” é a que trata do “conto amoroso”, pois permite que acompanhemos não apenas o desenvolvimento da literatura sob essa temática, mas também o do próprio conceito de amor na sociedade. Sim, pois esse conceito sofreu evoluções com o passar dos anos. O amor de “Catela no banho”, conto de Boccaccio presente no livro, seria visto, ao olhos de hoje, não apenas como algo doentio, mas, principalmente, criminoso. É que naquela época a ideia de amor justificava todas as torpezas e baixezas de caráter, e não havia nenhuma preocupação moral quando o objeto da paixão já tinha algum tipo de compromisso. O livro começa com um conto do Mahabharata (“Savitri”) e outro das 1.001 noites (“Uma história de amor”), sendo que este também impressiona pelas incríveis peças engendradas para vingar uma desfeita amorosa, as quais, ao fim de tudo, resultam em arrependimento e amor entre as partes. Há aqui também a famosa fábula de “Amor e Psiquê”, de Apuleio. “Os três cavaleiros e a camisa”, de Jakes de Basin, fala sobre o tempo em que os homens se colocavam em combate simplesmente para atender os agrados de uma mulher, sendo capazes dos maiores sacrifícios unicamente para satisfazer a sua vontade. Interessante observar nesse conto o papel do “corno”, que sequer considera que tinha alguma obrigação de censurar as aventuras cavalheirescas da esposa, de certo por ser homem pacífico, o que não devia ser bem visto. “Louise e Thérèse”, de Restif de la Bretonne, conta uma boa história de um sujeito que descobre a felicidade em uma jovem e sua amiga, mas se vê obrigado a abandoná-las por ser casado. Há Stendhal, com o conto “Vanina Vanini”, em que a pátria se coloca como empecilho ao amor, e então vem o imenso Dostoievski com “Noites brancas”, a melhor obra do livro, ainda que não seja exatamente um conto, mas uma novela. Ali há o platonismo das mentes sonhadoras e o amor visto como resgate das tragédias pessoais. Há um conto do Gorki, “A historia de Platão Bacrof”, mas eu não acharia ruim se o conto escolhido fosse outro, “Por desfastio”, embora os dois tenham o mesmo fim trágico após a incompreensão alheia. Na história de Platão Bacrof, no entanto, a crueldade também vem do próprio objeto amado. “Belas de dia”, da Colette (escritora que precisa ser resgatada) apresenta um interessante ponto de vista a respeito da “produção” feminina, a sedução dos homens e o momento em que a mulher se mostra como ela realmente é. Há o Thomas Mann com o estranho “O armário”, Virgínia Woolf com o não menos estranho “Lapine-Lapinova”, apesar do enredo original em que, para suportar o casamento, um casal cria um universo imaginário em que ambos são coelhos. James Joyce com “Casa de hóspedes” trata da obrigação de se casar com uma mulher a quem o homem, digamos, conheceu. “O pântano”, de D. H. Lawrence é outra grande pedida do livro. Começa de forma despretensiosa, mas a história cresce e conduz a um improvável romance, em circunstâncias das mais inusitadas. Já “Raquel”, de Erskine Caldwell, que encerra o livro, é um conto dolorosíssimo, em que se mostra o amor a partir da perspectiva da pobreza. O livro é do começo dos anos 60 e certamente contaria com ainda outros tipos de romances se abrangesse os dias de hoje.

18/03/2018 – LINDOLFO PAOLIELLO

De uma das crônicas desse escritor mineiro, hoje bastante obscuro:

“A partir do momento em que estão na multidão, o ignorante e o sábio são igualmente incapazes de discernimento”.

20/03/2019 – MACHADO DE ASSIS

De uma crônica de 1893:

"Conversando com um senhor, um estrangeiro, creio que polaco, disse-me ele que os que perdem não creem jamais que tudo se passe naturalmente; há de haver milagre ou corrupção, isto é, intervenção de Deus ou do diabo."

22/03/2019 – OS CORCUNDAS NA LITERATURA

Se me sobrasse disposição, eu escreveria a história dos corcundas na literatura. E faria isso com interesse de causa, pois me chamavam disso na escola, graças à minha cifose. Há muito mais do que aquele famigerado de Notre Dame. O jardineiro Belchior, o corcunda de "A escrava Isaura", era desprezado e humilhado pela própria Isaura (isso não aparece nas novelas, mas lá no livro do Bernardo Guimarães ela o chama de coisas como "mísero idiota" e "um disforme"). Luís da Câmara Cascudo tem um conto chamado "Os compadres corcundas", um pobre e o outro rico. O pobre termina sem a corcunda, e o rico, por sua ambição, termina com uma corcunda nas costas e outra no peito. O escritor senegalês Birago Diop contou uma lenda sobre as duas principais montanhas do seu país e, adivinhem, elas eram originalmente duas corcovas de uma mulher corcunda. Agora descobri que no "Ramayana", uma das principais epopeias do hinduísmo, há uma mulher corcunda e malvada que envenena os pensamentos de uma princesa para ela impedir que o herói da trama assuma o trono do reino.Rubem Fonseca apresenta um corcunda conquistador em "O corcunda e a Vênus de Botticelli", mas é também dele essa sentença verdadeira: "Aos corcundas não se concedem eufemismos".

22/03/2019 – ERSKINE CALDWELL

Quem gosta da tradição do conto norte-americano, sobretudo de seus grandes expoentes no século XX, como Flannery O’Connor, John Cheever e Raymond Carver, precisa dar uma lida também nos contos do hoje esquecido Erskine Caldwell. “Frenesi de verão” é uma mostra interessante das suas habilidades. As histórias podem versar, com grande sensibilidade (apesar da linguagem crua), sobre as descobertas do mundo adolescente, seus sentimentos e paixões (como em “A estação dos morangos”, “Evelyn e nós outros” e “O dia solitário”, no qual se nota ainda o impacto da repressão familiar no despertar de uma adolescente), e também podem tratar de violências inimagináveis que assomavam as pequenas aldeias do sul do país, marcado por um impressionante racismo, levado até as últimas consequências (vide “Sábado à tarde” e “Dia de pagamento no rio Savannah”). Por vezes, o ambiente até “exige” a violência, mesmo contra a natureza pessoal (caso de “Molly Rabo-de-Algodão”). Os contos são repletos de personagens e “tipos”, muitas vezes arrancados da memória do narrador. Há conflitos de toda espécie entre eles, pode-se dizer que um, em geral, não sabe exatamente quem seja o outro, não o compreende bem, e por vezes só irá se dar conta do que tinha diante de si depois da morte, como no belo “A velha de Joe Craddock”. O ambiente do interior, com seus costumes, seus orgulhos e seus preconceitos, domina as narrativas. Crises familiares naturalmente abundam, e aí se destaca “John, o índio e George Hopkins”, sobre a disputa de duas filhas pelo cadáver do pai. “As calças de veludo” expõe o absurdo no caso de uma desavença entre dois amigos. “O sonho”, por sua vez, oferece uma ambiente quase fantástico, e termina deixando ao leitor o cargo de concluir em que medida aquilo tudo faz sentido. Nota-se, portanto, um grande arsenal de tramas. Suas histórias são curtas, poucas páginas, ágeis, fáceis de ler.

25/03/2019 – KAFKA

Trecho de um de seus contos:

“A causa de que a posteridade julgue mais acertadamente ao morto, reside neste. A verdadeira índole se desenvolve tão-somente depois da morte. Estar morto é para cada qual como a noite do sábado para o moageiro. Tira-lhe o pó do corpo. E fica explícito se os contemporâneos lhe fizeram mais mal do que ele a eles. No último caso foi um grande homem”.

28/03/2019 – CYRO DOS ANJOS

A inspiração no Machado de Assis chega a ser gritante em “O amanuense Belmiro” e isso me incomodou bastante. Mas o livro não é de todo mal, embora eu prefira, nessa estratégia de um personagem apagado escrever suas memórias, "O braço direito" do Otto Lara Resende.

28/03/2019 – BERNARDO ÉLIS

De início, a narrativa de “O tronco” pode não chamar muito a atenção, e mesmo ser um tanto enfadonha no que se refere à linguagem, mas chega um momento em que a tensão toma conta da história e os fatos se desenvolvem no ritmo de um filme de ação, prendendo a atenção do leitor. Uma pena é que o exemplar que eu li (10ª edição da José Olympio) está repleto de erros de revisão, e errinhos bobos, coisa que qualquer corretor do Word acusa.

28/03/2019 – ADOLFO CAMINHA

“A normalista” é, de certa forma, um retrato duro e corajoso da vida provinciana do seu tempo. A leitura flui com naturalidade, mas não deixei de notar que em alguns momentos faltou ao autor objetividade e em outros sobrou! Assim é que há descrições absolutamente desnecessárias de paisagens, por um lado, e, pelo outro, há revelações importantes para a trama da história que são feitas à queima-roupa!

28/03/2019 – AUTRAN DOURADO

“Ópera dos mortos” é muito bem arquitetado e executado. A fluidez dos monólogos interiores é notável. Uma história triste e com personagens marcantes. Sem dúvida o autor precisa ser mais conhecido.

28/03/2019 – JORGE AMADO

O realismo e a crueza, a precoce perda da ingenuidade e a crítica social em “Capitães de areia” me fizeram lembrar do Zola em "Germinal". O acentuado lirismo me remeteu ao Górki, à Carson McCullers e mesmo ao Aluísio de Azevedo.

28/03/2019 – JOSÉ CÂNDIDO DE CARVALHO

É como a Rachel de Queiroz observou na orelha da edição de “O coronel e o lobisomem” que eu li: você esquece que existe um autor por trás e só presta atenção no coronel. É um tipo singular que consegue cativar com toda a sua fanfarronice. Interessante a ruptura que acontece quando ele sai da roça para viver na cidade. Sobressaem-se achados de linguagem em que atributos físicos ganham uma definição burocrática, do tipo "bem municiada na sua repartição dos fundos". Gostei muito do recurso utilizado para encerrar o livro, que termina de forma triste.

30/03/2019 – VISCONDE DE TAUNAY

“Inocência” é um livro que prende a atenção e que pode ser interessante. Mas é preciso insistir, ir além do primeiro capítulo, que realmente é uma das coisas mais enfadonhas da literatura brasileira. Depois dessa prova de fogo, a leitura flui bem e o livro vale a pena ser lido, até para conhecer o seu papel histórico.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 30/03/2019
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