Diário das minhas leituras/15

18/12/2018 – MIKHAIL ARTSIBACHEV E ARKADI AVERTCHENKO

Os nomes assustam, mas são dois escritores russos, ambos hoje praticamente esquecidos. Eles fazem parte do volume 9 da antologia “Mar de Histórias”, aquela mesma do Paulo Rónai e do Aurélio Buarque. O primeiro comparece com “O toro de madeira”, escolhido pela dupla pelo seu conteúdo mais filosófico. Realmente, encontrei interessantes diálogos referentes, sobretudo, a questão da intolerância religiosa, que é tema-chave do conto. Entretanto, tive muita dificuldade com a primeira parte do conto, que a mim pareceu um nariz-de-cera tão grande quanto o do Pinóquio. E dá-lhe descrição da natureza em cima de descrição da natureza! Rónai e Buarque fazem uma comparação de trajetórias entre Artsibachev e o meu querido Andreiev, o que pode até ser, mas, a julgar só por esse conto, o Andreiev continuará absoluto. Já o outro, o tal do Avertchenko, pareceu-me deveras interessante. O conto “O crime da atriz Mariskin” é breve, de poucas pinceladas, e conta com um trama simples, mas interessante, a de uma atriz que, não se satisfazendo com o papel de pouco destaque que lhe coube em uma peça, decide improvisar e “roubar a cena”. Lembrou-me do Tchékhov, e foi justamente a ele que Rónai e Buarque remeteram ao apresentar o conto. Se alguém lembra, ainda que minimamente, o Tchékhov, é porque deve ser coisa boa e eu fiquei com vontade de ler um livro só do cara, mas isso não passa de um sonho, não existem livros do cara por aqui. No máximo vai haver um conto diferente dele nessas antologias de conto russo. É pena.

18/12/2018 – HERMANN SUDERMANN – RÓNAI E AURÉLIO BUARQUE

Eis que, lendo mais um volume de “Mar de Histórias, eu me deparo com um conto do alemão Hermann Sudermann. Animo-me, penso comigo: "Esse é bom, eu já li aquele conto da confissão na véspera do Ano-Bom e gostei". Então aparecem os famigerados Paulo Ronái e Aurélio Buarque sentenciando:

"... uma narrativa incompreensivelmente célebre, a maupassantiana "Confissão na véspera do Ano-Bom", de uma frivolidade desoladora".

O que é incompreensível, meus caros, é o pedantismo com que vocês seguidamente diminuem os próprios escritores que querem apresentar. Não bastasse o menosprezo por O. Henry, o total desdém pela literatura japonesa antiga e outros juízos de valor no mínimo questionáveis emitidos ao longo de toda a coleção, agora ainda temos o Sudermann como alvo da mais “desoladora” crítica. Para piorar, os dois dizem ainda que se “deram ao trabalho” de ler um dos romances do Sudermann. Que suplício não deve ter sido! A coleção “Mar de histórias” se destaca pela seleção abrangente, ressaltando contos de gente que até hoje é pouco ou nada publicada no Brasil. Seus méritos são imensos. Entretanto, a gente poderia passar muito bem sem os repetidos comentários depreciativos da dupla. Se não queriam cair no sempre perigoso discurso laudatório, que se limitassem a dar informações objetivas. Eu, que não sou nem um pouco famoso, tenho lá as minhas divergenciazinhas literárias, faço lá os meus próprios juízos de valor, e este diário não é prova de outra coisa. Entretanto, esforço-me por não dar aos meus comentários esse caráter absoluto que a dupla dá. Se acho que algo é de uma desoladora frivolidade, digo que EU ACHO que é de uma desoladora frivolidade, dando espaço para que outros achem o que bem entenderem. É certo que nem sempre consigo isso e, vez ou outra, provavelmente, estarei emitindo juízos absolutos. De qualquer forma, se publicasse um livro em que apresento textos desses escritores que comento, eu faria um rigoroso processo de revisão dos meus comentários e, sem dúvida, atenuaria as minhas críticas, ao menos as passaria para o campo das minhas meras preferências pessoais. Não sou, evidentemente, um crítico literário. De certo eles estavam mais capacitados do que eu para comentar. Entretanto, não vejo nos tais comentários dessa coleção nada que permita destacá-los como críticos e que os afaste da mera preferência pessoal. A “desoladora frivolidade” apontada por eles dificilmente deixará de ser uma simples questão de preferência. Eles invocariam critérios técnicos, mas provavelmente não me convenceriam. O fato é que eu gostei do conto criticado por eles e preferia não ser sopapeado de maneira indireta por eles.

19/12/2018 – QUINTANA

Quintana lia um livro que tinha como personagem um cavalheiro solteirão, coisa que o enchia de horror: "O novelista pode cometer a vulgaridade de casá-lo no fim com a mocinha".

20/12/2018 – NATHANIEL HAWTHORNE

Junto com o Poe, foi um dos precursores do conto moderno norte-americano, e eu noto outra possível aproximação entre os dois, já que por vezes Hawthorne também se valia de temáticas fantásticas em suas histórias (um elixir da juventude, um espantalho que ganha vida, etc). A diferença é que, em Hawthorne, o elemento fantástico atende sempre a um propósito moral.

20/12/2018 – LITERATURA ESCANDINAVA

O “Maravilhas do Conto de Natal” (agora é época, afinal) conta com mais dois escritores escandinavos que poderiam figurar em uma nunca antes feita antologia de contos daqueles países: o sueco Henning Berger e o finlandês Johannes Linnankoski. Quando uma editora preencherá essa terrível lacuna?

20/12/2018 – MAR DE HISTÓRIAS (VOLUME 9)

Esse volume contém um dos meus contos favoritos, o pungente “Um episódio no lago de Genebra”, do Stefan Zweig, que vem muito a calhar numa edição em que todos os contos foram publicados durante a Primeira Guerra Mundial. Mesmo que nem todos os contos sejam tão arrebatadores como esse do Zweig foi para mim, o nível ainda é muito elevado, e várias vezes, durante a leitura, eu fiquei pensando coisas como “puxa vida, como é bom estar lendo esses contos!”. Há o citado conto do Chesteron, boa surpresa. Há um sensível conto de Miguel de Unamuno (“O semelhante”). Uma boa brincadeira feita pelo Massimo Bontempelli (“O colecionador”). O Joyce, de quem já falei, e seu conto meio russo. O Saki com duas boas sacadas (“A porta aberta” e “O contador de histórias”). Um daqueles japas incríveis, o Akutagawa, com “Num bosque”, que eu já havia lido há pouco tempo sob o título “Dentro do bosque” e que, seja lá como chamem, é um excelente exercício literário. O Joseph Conrad com um texto um pouco mais difícil para mim, mas ainda assim interessante (“Por causa dos dólares”). O Pirandello com os contos que já citei. Os dois russos, também citados. O indiano Rabindranath Tagore com o sensível “O homem de Cabul”, conto e biografia tão interessantes que me deram vontade de ler mais coisas dele e fiquei feliz ao saber que há na biblioteca que frequento o livro “O casamento e outros contos”, que pegarei emprestado. Há ainda o vilipendiado Sudermann com “A viagem a Tilsit”, que me surpreendeu, já que não podia imaginar que ele tivesse escrito algo como “contos lituanos”. Bem interessante a situação que ele cria nesse conto, pois, na dita viagem, a esposa oscila o tempo todo entre a certeza e a dúvida de que será morta pelo marido. Valery Larbaud com “O trinchante”, elogiado pelo Proust, mas que para mim foi um pouco estranho (como o Proust, aliás). O livro termina com o brasileiro Valdomiro Silveira, que aparece com o conto regional “Camunhengue”, que eu já havia lido e achado difícil, mas agora me pareceu mais bonito. Fora isso, há outros nomes que não me chamaram tanto a atenção, mas eu que gostei muito de conhecer. É realmente uma coisa muito boa essa coleção, apesar dos rompantes do Rónai e do Buarque de Holanda. Nesse volume também se percebe claramente como o espaço das biografias dos escritores é muito desigual. Por vezes, dá-se um espaço enorme a quem escreve contos, sim, mas é famoso pelos romances. Enfim, chatices minhas. Seja como for, agora só falta um volume de “Mar de histórias”, que ficará para 2019.

22/12/2018 – ANNA BRONTË

“Agnes Grey” (que também aparece como “A preceptora”) é um dos poucos livros publicados por aqui da irmã mais desconhecida das três Brontë. O livro é bonzinho. Sem dúvida tem uma trama mais simples do que os livros escritos por suas irmãs Charlotte e Emma, mas eu achei interesse o fato de o enredo de “Agnes Grey” não ser muito retilíneo e só se tornar realmente óbvio quando está perto do desfecho.

23/12/2018 – DAPHNE DU MAURIER

"Feliz Natal" é um conto da inglesa Daphne Du Maurier. Uma família se vê obrigada a hospedar um casal de refugiados judeus na véspera de Natal. Instalam os dois numa garagem, isolados de tudo. Não se preocupam com eles. Ouvem deles um "Feliz Natal" e acham estranho. Pensam que essa gente nem sabe o que significa o Natal. Durante a noite, a mulher judia dá à luz. O pai se vira sozinho com o parto e para levar a mulher até o hospital. O casal que hospedou, quando fica sabendo de tudo pelos criados, se sente culpado. Os filhos perguntam por que Jesus nasceu em um estábulo. Será que eles também eram refugiados?

23/12/2018 – MARAVILHA DO CONTO NATAL

Como é a época, deixei para ler apenas agora o “Maravilhas do Conto Natal”. O livro, como não poderia deixar de ser, conta com o hors concurs “Conto de Natal”, do Charles Dickens, a história de Natal mais bem sucedida da história. Outro conto também célebre, embora não tanto, é o ótimo “O presidente dos reis magos”, de O. Henry. São contos praticamente obrigatórios em uma antologia natalina. Em relação aos outros, o destaque, para mim, fica por conta de “Feliz Natal”, da Daphne Du Maurier, do qual falei acima. Cito também “Meu conto de Natal”, de Budd Schulberg, parecia mais uma crônica sobre o Natal de uma família super rica, até ter a virada em que é exposta toda a hipocrisia daquele cenário. Já “Raio do sol, flor do sol”, do romeno Victor Eftimiu, é um dos mais bonitos. Um casal de velhos extremamente pobre recebe a estranha visita de uma criança fugitiva na noite de Natal. É um conto cheio de poesia e encanto, além de uma visão quase mística do poder do fogo. Esses romenos precisam ser mais lidos. Gostei também de “A boneca”, de George Lenotre, “Um presente de Natal”, de Henning Berger, “Noite de Natal”, de Vick Baum. Notei, em alguns contos, que a nota do sentimentalismo estava um pouco acima do que seria recomendável, o que é um pouco justificado, afinal, trata-se de contos focados no Natal, mas isso prejudicou um pouco o tal do “prazer estético” para mim. São contos como “Árvore de Natal”, de Louise Brooks, “Venha passar o Natal conosco”, de Kathleen Norris e “A maçã de Natal”, de Marguerite Eyseen. Há ainda dois contos de brasileiro, o belo “Conto de Natal”, do Rubem Braga (que, afinal, não fez só crônicas) e “Um peru de Natal”, do Mário de Andrade. Os contos portugueses me pareceram difíceis, coisa que me acontece com muita frequência. No caso, Antônio Sardinha com “D. Gil Cabral” e Maria Archer com “Natal”. Há ainda um interessante conto do finlandês Johannes Linnankoski (“O Natal do mestre ferreiro”), um lírico conto da Selma Lägerlof (“A lenda da rosa de natal”), um conto um pouco estranho de Claude Farrère (“Natal no mar”) e mais algumas outras peças. O Natal realmente suscita boas e emocionantes histórias e acho que algumas delas podem ser lidas nessa bela antologia.

24/12/2018 – GERHART HAUPTMANN

Reli “Thiel, o sinaleiro” e constatei como ele é um conto forte, não apenas pelas terríveis tragédias com que ele as conclui, mas pelo próprio desencadeamento das emoções conflituosas do personagem. Que cena impressionante quando Thiel chega de surpresa em casa, descobre a mulher maltratando o filho do seu primeiro casamento e não tem força para dizer nada a ela, quanto mais uma palavra áspera. E que perturbadora a imagem de “Minna”, a falecida primeira mulher, e como ela continua presente na vida de Thiel, e como é determinante para que, ao fim de tudo, o sinaleiro, se bem que já desajuizado, pratique a escabrosa vingança. Sabia que o conto era bom, mas ele ainda ganhou pontos comigo na releitura.

24/12/2018 – STEFAN ZWEIG

Outro conto que reli foi “A ruela, à luz da lua”. Impressionado pelo “Episódio no lago de Genebra”, afinal, decidi voltar a ler o único conto que havia lido do Stefan Zweig para ver se ele já anunciava o grandioso escritor que conheci depois. Não chega a tanto, mas também saí gostando mais do conto do que após a primeira leitura. Há uma introdução um tanto impressionista na qual tive mais dificuldade. Mas depois se desenvolve um belo drama, com um homem completamente subjugado à força de sua ex-amante, depois de tê-la afastado de si, por duas vezes, por questões de dinheiro, ao qual ele dava especial apreço. Tem um belo final também, não se sabendo se o sujeito chegou a executar o crime que havia prenunciado.

24/12/2018 – ARTHUR SCHNITZLER

É tempo de releitura. Assim como Zweig, também fui reler Schnitzler porque, depois de “O tenente Gustl”, um dos melhores contos que já li, achei que, por certo, o talento dele já estava espalhado por aí. Então li outra vez “A mulher do filósofo” e também este conto pareceu, nesta leitura, melhor aos meus olhos. Um belo drama também (esses alemães adoram um). Sujeito se encontra por acaso com uma paixão, ou não, não foi uma paixão não, com uma mulher que, no dia de uma despedida, surpreendeu-o com um beijo. Beijaram-se e, enquanto se beijavam, o marido da mulher apareceu à porta, viu a cena e logo se afastou sem interferir. Ele se lembra de tudo o que aconteceu e agora quer pôr em prática as promessas que aquele beijo encerrava. Só não sabia do grande perdão que havia envolvido aquela mulher sem que ela sequer suspeitasse. E a partir de então ele perde o interesse por ela, chega a sentir até asco. Enfim, é um drama emocional muito bonito. Esse Schnitzler realmente manjava dos paranauês.

24/12/2018 – HERMANN SUDERMANN

Ah sim, reli ainda o “A confissão da véspera de Ano-Bom”. Ele não me pareceu tão forte quando havia parecido da primeira vez. Mas de maneira nenhuma eu o achei tão “desolador” como Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holanda deram a entender. É outra prosa dramática e existencial dos alemães.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 24/12/2018
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