Diário das minhas leituras/12
25/11/2018 – DINO BUZZATI
Geralmente só se lembra (quando se lembra) que o Dino Buzzati escreveu o belíssimo “O deserto dos tártaros”. Há alguns anos eu li outro livro dele, o “Naquele exato momento”, que é composto por contos, mininovelas, crônicas, esboços, devaneios – tem de tudo. E de lá eu tirei a seguinte recomendação: “Escreva, por favor. Duas linhas, pelo menos, mesmo se a alma estiver transtornada e os nervos não aguentarem mais. Mas todos os dias. Com os dentes fechados, talvez imbecilidades sem sentido, mas escreva. Escrever é uma das nossas mais ridículas e patéticas ilusões. Julgamos fazer uma coisa importante, ao traçar retorcidas linhas pretas no papel branco. De qualquer forma, esse é seu ofício, que você não escolheu mas que lhe foi dado pela sorte, só esta é a porta em que talvez possa encontrar salvação. Escreva, escreva. No final, entre toneladas de papéis para jogar fora, uma linha poderá salvar-se. (Talvez.)".
25/11/2018 – LEONID ANDREIEV - OSAMU DAZAI
Elogiei tanto o Andreiev que busquei um livro próprio dele, o que não foi coisa fácil (achei um editado nos anos 60). É “Judas Iscariotes”, uma novela, acompanhada de alguns contos. A novela em si, como já se sugere pelo nome, se põe a desenvolver a participação do célebre Judas nos episódios que levaram à crucificação daquele incrível nazareno. Como os Evangelhos dão pouquíssimas pistas a respeito da vida de Judas e das suas motivações para a traição, há um campo e tanto para os exercícios literários. Mas a versão de Andreiev não me chamou a atenção. Ali Judas já era um crápula desde o início, e todo mundo sabia disso. Andreiev força uma amizade de Judas com Tomé, e os outros discípulos têm participações um tanto caricatas – Mateus, por exemplo, só aparece para citar frases salomônicas. É interessante que Jesus praticamente não fala no texto inteiro. Creio que ele não chega a 10 falas, e a maior parte delas é já na parte final. Naturalmente, todos sabem quais são as falas atribuídas a Jesus e, no caso, o objetivo era ressaltar a figura de Judas, mas eu senti a falta de uma relação maior entre aquilo que Jesus pregava e a maneira que Judas recebia a pregação. Também não me pareceu muito convincente o modo como se operou, em Judas, a necessidade de entregar Jesus. Achei também que essa novela está longe de ter a capacidade de questionamento de “A conversão do diabo” e “Lázaro”, contos do mesmo Andreiev. No primeiro, a fé é continuamente posta em cheque, e no segundo se evidencia que um dos milagres mais espantosos de Jesus pode não ter feito tão bem assim ao beneficiado. Em “Judas Iscariotes”, entretanto, pareceu-me que a mensagem cristã não sofre nenhum grande abalo. Claro que o Andreiev também foi muito prejudicado por eu ter feito, há poucos dias, a leitura do conto “A denúncia”, do japonês Osamu Dazai. Como disse na ocasião, o conto é a fala de Judas no momento em que decidiu entregar Jesus, e é um conto extraordinário que pinta uma imagem impressionante de Judas – apaixonado, ciumento e rancoroso, além de essencialmente contraditório. É um conto para exultar a capacidade da literatura. É claro que reconheço que seria inverossímil que Judas fizesse tamanho discurso sem ser interrompido em nenhum momento, mas, que diabo, aquilo é literatura, e literatura das mais empolgantes. Convenceu-me mais o Judas de Dazai do que o Judas de Andreiev. O japonês também teve a vantagem de ter feito um conto, e não uma novela, o que, em termos práticos, significa um texto mais breve. A novela de Andreiev foi a primeira coisa dele que não gostei – do resto, gostei MUITO. Vamos ver os demais contos dele.
26/11/2018 – HENRY FIELDING
"Tom Jones", de Henry Fielding, um livro com mais de 250 anos, precisa ser mais conhecido. Talvez a melhor propaganda seja dizer que Jane Austen e as irmãs Brontë eram leitoras e fãs do Fielding. O livro fala "sobre a tolice do amor e a sabedoria da prostituição legal", expressão altamente irônica usada pelo autor para se referir ao casamento por interesse. O enredo tem ares de tragédia romântica, mas também é bastante cômico. Ao final de cada capítulo, Fielding faz outro em que se põe a discutir a própria obra que está escrevendo. Ele fala com o leitor muitas vezes e de uma maneira bem divertida. Esses capítulos metalinguísticos são bem interessantes para refletir sobre o “fazer literário”. Exemplo: "Um autor, para me fazer chorar, diz Horácio, há de chorar primeiro. Ninguém em realidade pode pintar bem uma aflição se não a sentir enquanto pinta; nem duvido de que as cenas mais patéticas e comoventes tenham sido escritas com lágrimas. O mesmo se verifica com o ridículo. Estou convencido de que nunca faço rir gostosamente o leitor senão quando eu mesmo rio antes dele; a menos de suceder alguma vez que, em lugar de rir comigo, ele se sinta inclinado a rir de mim". A sacada mais engraçada do livro é o capítulo chamado "Receita para recobrar a perdida afeição de uma esposa, que nunca se soube houvesse falhado nos casos mais desesperados”: é o capítulo em que o marido morre. Há momentos de novela picaresca, a la Dom Quixote, mas há momentos de incrível tensão, o que inclui uma trama em que uma mulher combina com um homem o estupro de outra. Como curiosidade, constatei o seguinte: em Cervantes, as pessoas desmaiam; em Tolstoi, elas coram; e em Fielding elas ficam sentadas uma diante da outra sem falar nada por vários minutos. Mais algumas frases que eu pesquei na obra: “É um segredo bem conhecido dos grandes homens que, ao concederem um favor, nem sempre fazem um amigo, mas criam infalivelmente muitos inimigos". "Os homens de verdadeiro saber e conhecimentos quase universais sempre se amiseram da ignorância alheia; mas os sujeitos que se distinguem nalguma artezinha baixa e desprezível desprezam sempre os que lhes desconhecem a arte". “Dá-se, porém, com o ciúme o que se dá com a gota: quando se encontram no sangue essas enfermidades, nunca se pode ter a certeza de que não se manifestem”.
27/11/2018 – LEONID ANDREIEV
É até engraçado, mas o melhor de “Judas Iscariotes e outras histórias” está nas “outras histórias”. Como já falei, a novela sobre Judas não me impressionou. Mas os contos que acompanham o livro sim, esses são quase todos muito bons. Vemos ali o Andreiev existencialista que eu já conhecia de outros contos (curiosamente, coisa que ele não é em “Judas Iscariotes”). O conto “O nada” é mais um que conta com a “participação especial” do diabo e, embora não tão brilhante quanto “A conversão do diabo” (que não faz parte dessa coletânea), é um conto forte que evidencia uma das principais angústias da alma humana. “Era uma vez” é um conto igualmente forte sobre certos personagens prestes a morrer em um hospital. “O grande slam” é mais famoso e, no meio da trama referente a uma partida de pôquer, se percebe sinais da mesma angústia existencial que justificou o conto “O nada”. Já “Valia” é um conto muito tocante sobre uma criança adotada que é levada de volta para casa pela mãe verdadeira. Só não gostei muito do último conto, “A máscara”. Em todo caso, já são oito os contos do Andreiev que li e, desses, três eu classifico como ótimos, quatro como bons e apenas um como ruim. É uma média superior à do Tchékhov.
27/11/2018 – ESCRITORAS INGLESAS ESQUECIDAS
Aphra Behn, Eliza Haywood, Charlotte Lennox, Fanny Burney, Ann Radcliffe, Maria Edgeworth. Todas escritoras inglesas pré-Jane Austen, muitas delas influências de Jane Austen, e não se encontra uma única tradução para o português de alguma delas. Em inglês existem edições recentes, inclusive daquela coleção Penguin que também existe por aqui. Por que ninguém traduz esse pessoal? Vende bem, só colocar na capa algo como "escritora que influenciou Jane Austen". Eu queria ler essa mulherada.
28/11/2018 – CONTOS AFRICANOS
Contos africanos são aquela coisa leve, historinhas que envolvem animaizinhos e tal:
"Então as pessoas jogavam crianças, para que o leão as comesse, mas o leão olhava-as e não lhes tocava".
"Então um gato selvagem empurrou a velha avó para diante de Leopardo, mas ele rosnou encolerizado dizendo: - Leva daqui esta porcaria, quero algo tenro".
"Quando Elefante engoliu Tartaruguinha, ela entrou-lhe no corpo e foi-lhe despedaçando o fígado, o coração e os rins".
"Lebre esquartejou Leão. Depois, tomou a pele e vestiu-a".
"E então Camaleão soprou nos olhos de Tartaruga. Ela começou a inchar e de tanto inchar morreu. Assim acaba".
29/11/2018 – MARAVILHAS DO CONTO ALEMÃO
Esse foi o primeiro livro da coleção “Maravilhas do Conto” que li. Talvez se fosse outro eu não teria tido tanta vontade de ler os demais, pois a edição alemã é, realmente, uma das melhores. Aqui vai aquilo que escrevi a respeito quando li: “Pouco se fala dos prosadores alemães, mas lendo as "Maravilhas do conto alemão" tive uma mostra de quantas maravilhas eles não escondem! Percebi duas grandes linhas mestras na temática dos contos: os amores não consolidados e as tragédias. Será por acaso que são justamente essas as características de Werther, anterior aos contistas do livro? Há muitas preciosidades, entre as quais destaco os contos "O terremoto no Chile", de Heinrich von Kleist, que escrevia contos muito antes de virar moda, "Immensee", de Theodor Storm, que foi o conto que mais me comoveu, em sua pureza e simplicidade, "A confissão da Véspera de Ano Bom", de Hermann Sudermann, precursor do húngaro Sándor Marái em seus encontros de velhos amigos para falar de um amor em comum, e "O besouro dourado", de Bruno Frank, que é forte e singelo a um só tempo, uma das melhores coisa que li no ano. O elemento "tragédia" está muito bem representado pelos contos de Gerhardt Hauptmann ("Thiel, o sinaleiro") e Jacob Wassermann ("O amuleto"), ambos com mortes violentíssimas de crianças. Há ainda Thomas Mann escrevendo texto curto, Rilke fazendo conto, um do Kafka, um de Schnitzler, um dos Irmãos Grimm, uma curiosa experimentação de Heinrich Heine, entre outros contos que encarnam bem a palavra maravilha.
29/11/2018 – BIRAGO DIOP
"Quando a memória vai remover as cinzas frias, ela traz à superfície a centelha que lhe agrada".
Com essa bela sentença, o senegalês Birago Diop (1906-1989) inicia o conto "As Mamas", que resgata uma lenda sobre duas montanhas do Senegal, "últimas terras de África que, ao fim da tarde, o sol olha longamente, antes de se abismar no Oceano". É de uma beleza arrebatadora. Faz parte de um livro chamado "Os contos de Amadou Koumba", reunião de contos tirados dos relatos do "griot" da família dele. "Griot" é um sujeito que tem o compromisso de preservar e transmitir as histórias e as canções do seu povo. Agora imagine se um livro como esse ou qualquer outro da África negra irá aparecer em listas "melhores livros da literatura universal". Eu li apenas dois contos e fiquei querendo ler o livro todo. Foi publicado no Brasil, dá pra achar em sebo, mas super caro.
30/11/2018 – MARAVILHAS DO CONTO AFRICANO
Foi uma experiência muito bacana ler um livro só de contos africanos, uma literatura pra lá de ignorada (os mais lidos são os brancos, Coetzee e Mia Couto). Mas os contos desse livro são todos de negros. São contos da Nigéria, do Senegal, do Togo, do Mali, do Zimbábue e de outros lugares que nem imagino. É preciso que se diga que a maioria dos contos são histórias populares ou folclóricas que ganharam uma versão escrita (e escritas na língua dos colonizadores). Mas é muito interessante ter contato com o tipo de histórias que se contava na África. O livro é dividido em “O Gênese Africano”, com histórias que tratam sobre “a origem das coisas” (e não podia haver continente melhor para falar disso), como “Por que o mundo foi povoado”, “Como Deus se separou do homem” e “Por que o Sol e a Lua vivem no Céu”; em “O Reino dos Animais”, que, como demonstrei em outra nada, não tem NADA a ver com fábulas insossas (embora elas tenham também certo fundo moral), como “A lagarta e os animais selvagens” e “O leopardo, o esquilo e a tartaruga”; em “O Reino do Homem”, com curiosas histórias sobre a trajetória e as aventuras de pessoas naquele majestoso continente, como “O rapazinho que foi levado por um leão”, “Uma mulher por cem cabeças de gado” (notável história em que a mulher sai por cima diante de três homens) e “A mulher gorda que se derreteu”; e, por fim, em “Contos de escritores cultos”, nome que está longe de ser politicamente correto, mas significa o sujeito que escreveu de forma ocidentalizada. É uma literatura bastante diferente de tudo o mais que já li. Todas as coisas falam, tudo se transforma em outras coisas, a própria ressurreição não é difícil, e em tudo parece haver a violenta luta pela sobrevivência, o que também se entende, mais do que nunca, no continente africano. Não vou negar que nem sempre foi uma leitura fácil. Mas isso acontece muito mais porque estamos muito mal acostumados com a visão francesa e inglesa de literatura do que por eventuais deméritos da literatura africana. É uma literatura diferente, de formas de expressão diversas e de valores que o pobre homem europeu há muito não compartilha e por isso não entende. Ele apenas percebe que é muito bonito – e por essa simples impressão, quem sabe, ela poderá se aprofundar mais, até o ponto em que irá entender. Na parte final, nos contos ditos “cultos”, a distância já foi reduzida, e aí encontramos tesouros incríveis como os contos do senegalês Birago Diop, de quem já falei, e também “O Pehl e o Bozo ou o Cóccis Calamitoso”, do malês Amadou Hampâté Bâ (uma inusitada epopeia que tem os seus ares de novela picaresca). Uma literatura a ser conhecida.