Diário das minhas leituras/11

18/11/2018 – MARAVILHAS DO CONTO JAPONÊS

A edição japonesa da maravilhosa coleção “Maravilhas do Conto” é uma delícia. O livro é dividido em duas partes, uma com os contos “tradicionais” e outras com os “modernos” (isto é, o que era moderno em 1962), e ambas são excepcionais. Na parte tradicional há, evidentemente, certo elemento místico, mas, sobretudo, um latente ingrediente poético, às vezes por meio de versos mesmo, introduzidos ao longo da narrativa. Os destaques ficam por conta do já citado “A princesa que amava insetos” e “O tambor chinês”, conto de Ibara Saikaku, escritor que viveu nos anos 1600 e que, para alguns entusiastas exagerados, é melhor até que o Maupassant. A julgar por esse conto, não é para tanto, mas sem dúvida deve ser um escritor de muitos méritos. A história em questão aborda um drama familiar de pequenos tecelões, e que chega a tal ponto em que se cogita o suicídio coletivo de toda a família. A maneira inusitada pela qual se resolveu o problema da família encerra certos interessantes ensinamentos morais. O primeiro dos contos modernos é o belíssimo “Pássaros na primavera”, de Doppo Kunikida, um sensível e poético conto que trata da trágica história de uma criança com deficiência mental. “Até Abashiri”, de Nayoa Shiga, apresenta uma situação cotidiana, isto é, um encontro no trem, mas que ressalta o heroísmo de certas mulheres. “Tatuagem”, de Junitshiro Tanizaki, é um daqueles contos em que o sensualismo feminino, que dizem ser forte na literatura japonesa, se faz presente. “A profissão de salva-vidas” é um conto fantástico escrito por Kan Kikutchi. Diz respeito a uma velha que se especializou em resgatar suicidas que pulavam de uma ponte. A história escapa do senso comum que se esperaria de semelhante trama. O grande problema do conto é o início, espécie de “nariz de cera”, com ares de ensaio, em que o escritor discute a respeito do suicídio. Acho que o conto seria perfeito se essa parte inicial fosse consideravelmente abreviada. Mas é, sem dúvida, um grande momento do livro. Há dois contos nesse livro em que os escritores fazem um grande exercício literário, qual seja, o de contar a mesma história sob múltiplos pontos de vista, conforme o personagem. É o caso de “Dentro do bosque”, de Ryonossuke Akutagawa, e de “A espingarda”, de Yasushi Inoue. Os dois resultados foram muito bons. No caso do conto de Inoue, existe uma dimensão psicológica que eu chamaria de “russa”, o que, por si só, já é um elogio. “Tempo”, de Riichi Yokomitsu, é um excepcional “thriller”, muito bem contado e conduzido. “Professor vento”, de Ango Sakagutchi, é um dos momentos que mais apreciei no livro. Trata-se de um conto surrealista que me lembrou daquilo que o Campos de Carvalho fez aqui por nossas terras e, por elementos estruturais, lembrou-me o Machado de Assis. Um conto muito ágil que se lê avidamente e se termina rindo – mas não ignorando que há muito mais ali do que o humor. Em seguida vem o formidável conto de Osamu Dazai, “A denúncia”, que já elogiei aqui. O melhor conto do livro, na minha visão, e também um dos melhores que li no ano. “Corrida de cavalos”, de Sakunossuke Oda, também é interessante, assim como “Ternuras que fenecem”, de Saisse Murou, sobre uma mulher que persegue um homem por não aceitar o fim do seu relacionamento. Em suma, há muitas peças formidáveis nesse incrível livro.

20/11/2018 – KAREN BLIXEN

Sobre os seus “Contos de inverno”: “Há alguma coisa com os escritores nórdicos, pelo menos os que li (incluindo a grande Sigrid Undset), que faz com que eles aliem uma certa simplicidade temática com um incrível envolvimento emocional dos personagens, além de uma profunda relação com a paisagem e, eventualmente, um flerte com o mágico e o místico, o que quase sempre resulta em textos bastante melancólicos, mas lindos de morrer. A crítica que eu faço à edição da Editora 34 é que faltam tradução para frases inteiras ditas em francês”.

20/11/2018 – AUGUST STRINDBERG – L&PM – FEMINISMO

A L&PM anuncia na própria capa do livro "Casados e descasados" do Strindberg que é "um dos primeiros grandes clássicos feministas". Ocorre que essa é uma propaganda enganosa, pra não dizer que é uma mentira deslavada. Já na primeira frase da introdução feita pelo próprio autor lemos: "O movimento feminista sobre o qual, segundo se afirma, se apoiam, atualmente, os fundamentos da sociedade, me parece superestimado". Ou seja, está claro desde o início que o autor não se considera parte do movimento feminista. E, de fato, ao longo da introdução ele tenta mostrar equívocos do feminismo e dá a sua própria interpretação de como se deve dar a igualdade de gêneros. Aí a mulher vê a capa, lê a sinopse, compra o livro e se depara com frases em que até eu, sendo homem, me sinto ofendido, como "Uma mulher sem filhos não é mulher". Que clássico do feminismo pode conter uma frase dessas? O pensamento do Strindberg sobre o assunto não se filia a outra corrente que não ao "strindbergismo". A L&PM está enganando as suas leitoras e está desrespeitando o próprio Strindberg, que não se incluía no movimento feminista. Afora isso, verei agora como ele se sai nos contos do livro.

21/11/2018 – CONTOS TCHECOSLOVACOS

Como estou cada vez mais mergulhando em contos, acabo resgatando textos de literaturas ainda muito desconhecidas aqui no Brasil. É o caso das literaturas tchecas e eslovacas, dois países de histórias bem distintas, mas que, durante a maior parte do século XX, formaram um único país. A “Antologia de Contos Tchecoslovacos” é um livro raríssimo publicado no Brasil pela Editora Leitura em 1966. São apenas sete escritores e todos do século XX. É significativo que, entre esses escritores, não estejam os dois que hoje mais são conhecidos no resto do mundo como “escritores tchecos”, isto é, o Kafka (que é visto bem mais como literatura alemã) e o Kundera. Não há Kafka nem Kundera nesse livro. O que há então? Bem, sete escritores de que eu nunca havia ouvido falar: Dusan Kuzel, Ivan Vyskocil, Jaroslava Blazkova, Peter Karvas, Vladimir Vondra, Peter Balgha e Josef Nesvadba. São escritores contemporâneos ao momento de publicação do livro, alguns ainda muito jovens. Esperei encontrar pelo menos uma boa surpresa no meio desse livro, um escritor que eu dissesse “esse sim, você deveriam ir atrás dele”, mas não achei. O livro não é dos mais fáceis. O conto de Ivan Vyskocil tem um quê de absurdo que faz lembrar do Kafka. O de Vladimir Vondra flerta com o fantástico, pois uma estátua ganha vida. O de Peter Balgha talvez seja o que mais me agradou, sobre um homem que, abaixado no meio da calçada, observava o movimento de uma legião de formigas. Mas também apreciei um pouco o de Peter Karvas, que trata de um pai que se viu obrigado a levar o filho, ainda criança, à polícia por conta de uma molecagem. O livro termina com um conto de ficção científica de Josef Nesvadba, que tem lá os seus momentos interessantes, como tudo o que se refere ao futuro da humanidade, mas que eu achei um tanto ingênuo. E há ainda outros contos que eu não achei muito fáceis. De toda forma, fiquei contente em conhecer um pouco mais a respeito da literatura feita por esses países no século XX. Assim como falei da literatura escandinava, faz falta algo como um livro chamado “Maravilhas do Conto Tcheco”, uma antologia que pegasse toda a história do país, e não apenas o século XX. Aí poderia até entrar o Kafka, apesar de tudo. E entraria nomes como o Jan Neruda, que poucos sabem, mas é o Neruda verdadeiro (o Pablo apenas se inspirou no Jan, o que já é um bom indicativo dos méritos literários que ele deve ter). Mas acho difícil sair alguma obra como essa.

22/11/2018 – AUGUST STRINDBERG – L&PM – FEMINISMO

O comportamento da L&PM no livro "Casados e descasados", do August Strindberg, é ainda mais repulsivo do que eu imaginei. Na contracapa, eles destacam a seguinte frase de um conto do livro: "E, acredite em mim, são as mulheres que governam o mundo, ainda que não tenham direito a voto". Aí você pensa "puxa vida, ele faz uma bela defesa mesmo das mulheres, realmente é um macho muito feminista". Só que não. Vejamos o trecho de onde foi tirado a frase: “- Você é homem e, portanto, aquele que detém a iniciativa. Por consequência, em quase todos os casos, é o homem que se torna escravo. Aquele que ama é o escravo. Quase todos os casamentos são realizados por amor da parte do homem. É assim na natureza. Os machos atacam; as fêmeas ficam sentadas, esperando. Quem? Aquele que chega! E, acredite em mim, são as mulheres que governam o mundo, ainda que não tenham direito a voto. Ela se casou para sair de casa, e isso é o que faz a maioria das mulheres. Você se casou para ter a sua casa! ela é depravada? Não! É da natureza dela ser poliândrica. E você, é da sua natureza ser monogâmico. Foi azar terem se encontrado um com o outro! Foi azar, meu amigo!”. Foi desse trecho constrangedor que a L&PM tirou a frase que considerou a mais feminista do livro, a ponto de destacar na contracapa! Olha, se eu fosse mulher, eu processaria a editora por propaganda enganosa.

23/11/2018 – WILLIAM SAROYAN

Grata surpresa os contos de “O jovem audaz no trapézio voador e outras histórias”, do William Saroyan. Lembrei-me muito do Campos de Carvalho, pergunto-me inclusive se o Saroyan não chegou a influenciá-lo, em seu estilo anárquico, libertário, mas profundamente humano. Saroyan tem uma verve impressionante, um estilo muito envolvente e procura, intencionalmente, quebrar padrões do gênero. Para isso faz algumas experimentações e, embora nem todas tenham dado certo, consegue passar uma imagem e uma visão de mundo bastante singulares. É muito interessante o modo como ele aplica a metalinguagem. Encontrei no conto "Um dia frio" algumas das mais expressivas recomendações para o "fazer literário". A autobiografia se alia completamente à temática de Saroyan, e seus contos também se destacam pela sinceridade. Há muita coisa no que ele escreve que no Brasil seria crônica, como as do Campos de Carvalho mesmo. Vale a pena ser conhecido, há momentos pungentes, entre os quais destaco o conto "A gargalhada", além de "Setenta mil assírios", que parece ser mais famoso.

23/11/2018 – AUGUST STRINDBERG – L&PM – FEMINISMO

Bem, terminei os contos do homem. Se bem entendi o espírito das suas tramas, o autor, entre outras coisas, se volta contra o emprego fora de casa das mulheres. Ele espera que as mulheres exerçam apenas funções domésticas, inclusive a guarda do dinheiro da família, e as faz parecer mais louváveis e mais agradáveis do que aquelas a que o homem se sujeita em seu emprego. Entretanto, ele insiste na observação que isso se deve dar “nas circunstâncias atuais”, o que, no fundo, é já uma confissão de que a medida não é justa. Esse adendo, que Strindberg julga muito inteligente, mas pode ser apenas cínico, é como quando, no tempo da ditadura, se dizia que as pessoas não estavam preparadas para a liberdade. Outra coisa que o Strindberg insiste o tempo todo é na necessidade de os casais terem filhos. Escreveu histórias bem ingênuas para mostrar o erro em que incorrem todos os casais que acham que podem viver sem filhos e em como conquistaram a verdadeira felicidade a partir do momento em que eles vieram. No entendimento do autor, quem casa e não quer ter filho é porque está interessado apenas em diversão. Dane-se se os casais não têm condições para ter um filho: eles PRECISAM ter porque assim manda a natureza segundo Strindberg. Quem não tem filho e quem permanece solteiro são vistos como desvios da natureza. Se por acaso nasce um filho e o casal se vê em difícil situação financeira, isso parece ser muito mais resultado de crenças românticas equivocadas e amores “espirituais”, coisa que não agrada ao autor, homem prático, do aqui e do agora. Agora imagine que toda essa embrulhada foi chamada pela L&PM de “um dos primeiros clássicos feministas”! Tenha dó. Strindberg é terrivelmente incomodado pela peça de Ibsen, a célebre “Casa de bonecas”, mas se mostra, ele próprio, tão desastrado no trato com as mulheres na introdução e nos contos desse livro que o mais provável é que as mulheres terminem a leitura com grande vontade de ler a peça de Ibsen, na esperança de que seja o contraponto às patacoadas do sueco. Gosto do conto “Amor e pão”, que eu já conhecia, mas agora fico com um pé atrás por saber que as motivações do escritor com ele são muito diferentes das minhas ao lê-lo. Feminista, diz a L&PM.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 23/11/2018
Código do texto: T6510361
Classificação de conteúdo: seguro