A LUZ SEMPITERNA DE UM CONDENADO – A LITERATURA CRIATIVA DE SALMAN RUSHDIE
Mês passado caiu-me às mãos o livro Cruze Esta Linha (Companhia das Letras, 2007, 48 páginas) do romancista, cronista e ensaísta anglo-indiano Salman Rushdie (Bombaim 1947), famosíssimo por ter sido condenado à morte pelo Ayatollah Ruhollah Khomeini (Khomein 1900 — Teerã, 1989) líder religioso iraniano, por ter publicado um livro contrário às convicções religiosas mulçumanas, cujo título é “Os Versos Satânicos”. O livro Cruze Esta Linha se reporta a vários assuntos escritos entre 1992 e 2002. Rushdie aborda a literatura, o rock, a fotografia, o cinema, a política. O eixo principal deste livro, entretanto, é uma seção intitulada “Mensagens dos Anos da Peste”, cujos textos referem-se ao tempo em que o autor vivia ameaçado pelo Fatwa, que era a sentença de morte proferida pelo Aiatolá. Rushdie tenta buscar nos assuntos enfocados, novos prismas, tratando-os de maneira objetiva, colocando à margem dogmas políticos, religiosos e culturais. A ironia, por vezes, toma conta da prosa de Rushdie se misturando, em certas ocasiões com a doçura latente dos escritos. É importante dizer que a diversidade desses ensaios, conferências e artigos não entediam o leitor que busca a informação. O periódico The New York Times Book Review, escreveu: “Salman Rushdie é um escritor prodigioso capaz de extrair do ar rarefeito toda uma gama de geografias, criaturas, costumes, climas e relações”. Portanto, Cruze Esta Linha, se dá ao luxo de, ao mesmo tempo, informar e entreter. Da edição brasileira, porém, foram cortados cerca de trinta textos, incluindo escritos de “Mensagem dos Anos da Peste; ainda assim, é um livro excepcional. A tradução ficou por conta de José Rubens Siqueira.
TRECHO DO LIVRO Cruze Esta Linha
Lá em Kansas
Escrevi meu primeiro conto em Bombaim, com dez anos de idade. O título era "Over the rainbow" [Além do arco-íris]. Não passava de uma dúzia de páginas, aplicadamente datilografadas pela secretária de meu pai em papel fino, que acabaram perdidas em algum ponto dos labirínticos deslocamentos de minha família entre a Índia, a Inglaterra e o Paquistão. Pouco antes da morte de meu pai, em 1987, ele me informou ter encontrado uma cópia embolorando em um velho arquivo, mas apesar de meus pedidos nunca me mostrou. Esse incidente sempre me intrigou. Talvez ele nunca tenha encontrado de fato o conto e nesse caso teria sucumbido à tentação da fantasia, e esse foi o último dos muitos contos de fadas que me contou. Ou então ele realmente encontrou o conto e guardou-o para si como um talismã e lembrete de tempos mais simples, considerando-o um tesouro dele, não meu - seu pote de ouro nostálgico e paternal.
Não me lembro de muita coisa do conto. Era sobre um menino bombainense de dez anos de idade que um dia se vê no começo de um arco-íris, um lugar tão ilusório quanto qualquer final com pote de ouro e igualmente tão promissor. O arco-íris é largo, tão largo quanto uma calçada, e construído como uma escadaria grandiosa. Naturalmente, o menino começa a subir. Esqueci quase todas as suas aventuras, exceto um encontro com uma pianola falante cuja personalidade era um improvável híbrido de Judy Garland, Elvis Presley e os "cantores de fundo" dos filmes indianos, muitos dos quais faziam O Mágico de Oz parecer realismo de vida cotidiana.
Minha fraca memória - que minha mãe chamava de "esqueçória" - é, provavelmente, uma bênção. Enfim, me lembro do que é importante. Lembro que O Mágico de Oz (o filme, não o livro, que não li em criança) foi minha primeiríssima influência literária. Mais que isso: lembro que quando foi mencionada a possibilidade de eu ir para a escola na Inglaterra, isso me soou tão excitante quanto qualquer viagem além do arco-íris. A Inglaterra parecia uma perspectiva tão maravilhosa quanto Oz.
O mágico, porém, estava bem ali, em Bombaim. Meu pai, Anis Ahmed Rushdie, era um pai mágico para filhos jovens, mas tendia também a ter explosões, ataques de raiva trovejantes, relâmpagos de faíscas emocionais, baforadas de fumaça de dragão e outras ameaças do tipo das também praticadas por Oz, o grande e terrível, o primeiro Mago De Luxe. E quando a cortina se abriu e nós, seus filhos em crescimento, descobrimos (como Dorothy) a verdade sobre a impostura adulta, foi fácil para nós pensar, como ela, que nosso homem devia ser um homem muito mau mesmo. Levei metade da vida para entender que a grande apologia pro vita sua do Grande Oz cabia igualmente bem para meu pai; que ele também era um homem bom, mas um mago muito ruim.
Comecei por essas reminiscências pessoais porque O Mágico de Oz é um filme cuja força motriz é a inadequação dos adultos, mesmo dos adultos bons. No início do filme, a fraqueza deles força uma criança a assumir o controle do próprio destino (e do de seu cachorro). Assim, ironicamente, ela começa o processo de se tornar adulta também. A jornada de Kansas a Oz é um rito de passagem de um mundo em que os pais substitutos de Dorothy, tia Em e tio Henry, não têm a capacidade de ajudá-la a salvar seu cachorro, Totó, da saqueadora Miss Gulch para um mundo onde as pessoas são do seu tamanho e no qual ela nunca é tratada como criança, mas sempre como heroína. Ela conquista esse status por acaso, é verdade, não tendo desempenhado papel algum na determinação com que sua casa esmaga a Bruxa Má do Leste; porém, ao final da aventura ela, sem dúvida, cresceu o suficiente para calçar aqueles sapatos - aqueles famosos sapatos de rubi. "Quem haveria de dizer que uma menina como você iria destruir a minha bela perversidade?", lamenta a Bruxa Má do Oeste enquanto derrete - um adulto que se torna menor que uma criança e deixa seu lugar para ela. Enquanto a Bruxa Má do Oeste "diminui", vê-se Dorothy crescer. A meu ver, é muito mais satisfatória essa explicação do poder recém-conquistado de Dorothy sobre os sapatos de rubi do que as razões sentimentais fornecidas pela inefavelmente chocha Bruxa Boa Glinda, e depois pela própria Dorothy, naquele final enjoativo que considero pouco fiel ao espírito anárquico do filme. (Falaremos disso mais adiante.)
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