A.-D Sertillanges - A vida intelectual (Trechos)
O porvir cabe a Deus e a nós, mas numa dada ordem. Ele não cabe antes de tudo à força, e sim ao pensamento. Após medonha devastação, será preciso reconstruir. [1]
Por si só, um texto não é nada, tal como uma viagem por si só tampouco é nada. Uma alma se faz necessária para concatenar entre si os méritos desta e as frases daquele, fazendo jorrar do contato essa luz misteriosa que se chama verdade ou que tem por nome beleza. [2]
Toda obra intelectual começa pelo êxtase; só depois se exerce o talento do arranjador, a técnica dos encadeamentos, das relações e da construção. Ora, o que é o êxtase senão um elevar-se para longe de si mesmo, um esquecimento de se viver, de si próprio, para que viva no pensamento e no coração o objeto de nossa embriaguez? [3]
É a altitude que mede a pequenez. Quem não possui o sentido das grandezas se deixa exaltar ou abater facilmente, quando não as duas coisas ao mesmo tempo. [4]
Uma vida empurrada muito para o alto ou largada muito lá embaixo é uma vida que se desorienta. [5]
Deve haver concordância entre o que recebemos em matéria de dons - incluindo-se a coragem - e o que devemos esperar em matéria de resultados. [6]
Quando não se procura agradar o mundo, ele se vinga; se por acaso se consegue agradá-lo, ele ainda assim se vinga nos corrompendo. A única saída é trabalharmos longe dele, tão indiferentes a seu julgamento quanto prontificando-nos a ser-lhe úteis. [7]
Diante da superioridade de outrem, só resta uma atitude honrosa: amá-la, e ela se torna assim nossa própria alegria, nossa própria fortuna. [8]
O público, de modo geral, é vulgar e só gosta da vulgaridade. Os editores de Edgar Poe diziam ser obrigados a pagar-lhe menos do que a outros, porque ele escrevia melhor que os outros. Conheci um pintor a quem um marchand de arte dizia: "Seria bom tomar umas aulas, " - ? ... - "Sim, para aprender a não pintar tão bem". O homem dedicado à perfeição não entende essa linguagem; ele não aceita, por preço algum, sob forma alguma, ser um seguidor do que Baudelaire chamava de zoocracia (Governo onde mandam os que se comportam como animais. Nota nossa). [9]
Ser múltiplo por longo tempo é a condição para ser uno sem perder a riqueza. A unidade do ponto de partida não é senão um vazio. [10]
É preciso entregar-se de todo o coração para que a verdade se entregue. A verdade só está a serviço de seus escravos. [11]
Obter sem pagar é o desejo universal; mas é um desejo de corações covardes e de cérebros enfermos. O universo não acorre ao primeiro sussurro, e a luz de Deus não aparece sob nossa lâmpada sem o rogo de nossa alma. [12]
A disciplina exigida pela profissão é a melhor escola: ela é proveitosa para os lazeres do estudo. Sob pressão, concentraremo-nos mais, aprenderemos o valor do tempo, refugiaremo-nos com ímpeto nessas horas raras em que, o dever estando satisfeito, temos encontro com o ideal, em que gozamos da descontração numa ação que escolhemos, depois da ação imposta pela áspera existência. [13]
O que vale, acima de tudo, é o querer, um querer profundo: querer ser alguém; chegar a alguma coisa; ser, desde já, pelo desejo, esse alguém qualificado por seu ideal. No restante sempre se dá um jeito. [14]
Jovem, o senhor que entende esse linguajar e que os heróis da inteligência parecem chamar misteriosamente, mas que receia estar despreparado, escute-me. O senhor dispõe de duas horas por dia? Pode comprometer-se a resguardá-las com todo o egoísmo possível, a empregá-las com todo o ardor possível, e, em seguida, destinado, também o senhor, ao Reino de Deus, é-lhe possível beber o cálice cujo sabor requintado e amargo estas páginas gostariam de dar-lhe a experimentar? Se a resposta for sim, tenha confiança. Mais do que isso, encontre repouso na certeza. [...] As duas horas que eu peço, muitos declaram que elas bastam para um destino intelectual. Aprenda a administrar esse pouco tempo; mergulhe todos os dias de sua vida na fonte que sacia e torna a dar sede. [15]
A solidão vivifica tanto quanto o isolamento paralisa e esteriliza. [16]
Toda verdade é vida, orientação, caminho em vista do fim humano. Eis porque Jesus Cristo disse como afirmação única: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida". [17]
Todos os tempos não se equivalem, mas todos os tempos são tempos cristãos e há um que para nós e na prática os supera todos: o nosso. [18]
Não vamos nos assemelhar àqueles que dão sempre a impressão de estar carregando os cordões do pano mortuário nos funerais de antigamente. Utilizemos o valor dos mortos para viver. A verdade é sempre nova. Como a relva da manhã recoberta de delicado orvalho, todas as virtudes antigas têm vontade de reflorescer. Deus não envelhece. É preciso ajudar esse Deus a renovar não os passados sepultados e as crônicas extintas, mas a face eterna da terra. [19]
A virtude contém a intelectualidade em potencial, pois, conduzindo-nos a nosso fim, que é intelectual, a virtude equivale ao supremo saber. [...] instintivamente, todo espírito reto declara que a superioridade em qualquer setor inclui uma dose de superioridade espiritual. Para julgar de modo verdadeiro, é preciso ser grande. [20]
Um pequeno erro inicial chega grande ao final. [...] "Dize-me o que tu amas, eu te direi o que tu és". O amor é em nós o começo de tudo, e esse ponto de partida comum do conhecimento e da prática não pode deixar de tornar solidários, em certa medida, os retos caminhos de um e da outra. [21]
Apaziguar-nos é isolar em nós o sentido do universal; retificar-nos é isolar o sentido do verdadeiro. [...] Quais são os inimigos do saber? Obviamente a ininteligência: tanto que o que estamos dizendo dos vícios, das virtudes e de seu papel na ciência pressupõe sujeitos em pé de igualdade no restante. Mas, além da estupidez, que inimigos os senhores receiam? Não pensaram na preguiça, onde ficam soterrados os melhores entre os dons? Na sensualidade, que enfraquece e entorpece o corpo, embaça a imaginação, estupidifica a inteligência, dispersa a memória? No orgulho, que ora ofusca, ora entenebrece, que acata tão plenamente nossos próprios pontos de vista que podemos perder de vista o universal? Na inveja, que renega obstinadamente a luz aqui ao lado? Na irritação, que repele as críticas e se finca no erro? [...] A pureza do pensamento exige a pureza da alma: eis uma verdade geral que nada poderá abalar. Que o neófito da ciência se deixe dela imbuir. [...] A metafísica mais segura de todas nos ensina que, em seus graus culminantes, a verdade e o bem não só estão interligados como são idênticos. [22]
A virtude própria ao homem de estudo é evidentemente a estudiosidade. [...] Santo Tomás classificava a estudiosidade sob a categoria de temperança moderada, para indicar que, em si, o saber é sem dúvida sempre bem-vindo, mas que a constituição da vida nos pede para temperar, isto é, adaptar às circunstâncias e juntar às demais obrigações um apetite por conhecer que cai facilmente nos excessos. Ao dizer excesso, refiro-me aos dois extremos. No reino da estudiosidade, dois vícios se opõem: a negligência de um lado, a vã curiosidade de outro. Não vamos nos deter aqui na primeira: se ela não for odiosa ao leitor na hora de fechar estre livrinho, é porque ele terá se cansado no caminho ou porque nós teremos traçado muito mal o percurso. Mas não direi o mesmo acerca da curiosidade. Essa pode aproveitar-se de nossos melhores instintos e viciá-los no exato instante em que simula estar satisfazendo-os. [23]
Cada ser age segundo aquilo de que dispõe quantitativa e qualitativamente, segundo sua natureza e sua força, e depois permanece em paz. Só o homem vive de pretensões e de tristeza. [...] Ao procurar subir demais ou nos rebaixar, acabamos por nos perder. [24]
Estudar tanto que não mais se pratique a prece, o recolhimento, que não mais se leia nem a palavra sagrada, nem a dos santos, nem a das grandes almas, tanto que se caia no esquecimento de si mesmo e que, de tão concentrado nos objetos do estudo, chegue-se a discutir do hóspede interior, é um abuso e uma enganação. Supor que assim se progredirá e se produzirá mais equivale a dizer que o rio fluirá melhor se sua fonte secar. [...] É novamente Santo Tomás que diz ao apaixonado pela ciência: “Orationi vacare non desinas – não abandones jamais a oração” e Van Helmont nos explica esse preceito por essas sublimes palavras: “Todo estudo é um estudo da eternidade”. [25]
Se obedecerem à carne, estarão prestes a se tornar carne, enquanto têm de se tornar inteiramente espírito. [26]
A ideia e a ostentação, a ideia e a dissipação são inimigas mortais. [27]
Se o homem casado é, de certa forma, “dividido”, que ele se torne também “dobrado”. Deus lhe deu uma ajuda semelhante a si: que ela não se torne outra. Os conflitos ocasionados pela incompreensão da alma gêmea são fatais à produção; eles levam o espírito a viver numa inquietação que o corrói; não lhe sobra nenhum entusiasmo e nenhuma alegria, e como poderia um pássaro voar sem suas asas, o pássaro e a alma sem seu canto? [28]
Muitas palavras fazem o espírito esvair-se como água; paguem com sua cortesia para com todos o direito de frequentar verdadeiramente apenas aqueles poucos com quem o relacionamento é proveitoso; evitem, mesmo com esses, uma familiaridade excessiva que rebaixa e desorienta; não corram atrás das novidades que ocupam o espírito em vão; não cuidem de ações e de conversas seculares, isto é, sem repercussão moral ou intelectual; evitem os trâmites inúteis que desperdiçam as horas e favorecem a ociosidade do pensamento. [...] O retiro é o laboratório do espírito. A solidão interior e o silêncio são suas duas asas. Todas as grandes obras foram preparadas no deserto, inclusive a redenção do mundo. Os precursores, os continuadores e o Mestre se submeteram ou devem submeter-se à mesma lei. Profetas, apóstolos, pregadores, mártires, pioneiros das ciências, inspirados de todas as artes, simples homens ou Homem-Deus, todos pagam um tributo ao isolamento, à vida silenciosa, à noite. [29]
“Nunca estive entre os homens sem ter de lá regressado menos homem”. Levem a ideia mais adiante e digam: que não tenha de lá regressado menos homem do que sou, menos eu mesmo. Na multidão, nós nos perdemos, a menos que nos seguremos com firmeza, e primeiro é necessário criar essa amarra. Na multidão, nós nos ignoramos, estando atravancados por um eu estranho a nós que é múltiplo. [30]
Disse Ravignan: “A solidão é a pátria dos fortes, o silêncio é sua prece”. [...] O prazer, explica Santo Tomás, aperta a alma contra seu objeto, tal como uma ferramenta de serrar; ele reforça a atenção e expande as capacidades de aquisição, que a tristeza ou o tédio comprimiriam. [...] Antes de dar a verdade, adquira-a, e não jogue fora o grão de sua semeadura. [31]
Para conhecer a humanidade e para servi-la, é preciso entrar para dentro de si, lá onde todos os nossos objetos ficam em contato conosco e tomam de nós quer nossa força da verdade, quer nossa potência de amor. [32]
Unir-se ao que quer que seja só pode ocorrer na liberdade interior. Deixar-se dominar, perturbar, seja por pessoas ou coisas, é trabalhar pela desunião. Longe dos olhos, perto do coração. [33]
Seria o momento certo para conceber e fundar a oficina intelectual, associação de trabalhadores igualmente entusiasmados e zelosos, livremente associados, vivendo na simplicidade, na igualdade, nenhum deles tentando impor-se aos demais, mesmo que possuísse uma superioridade acatada por todos e que lhes fosse de grande valia. Alheios a rivalidades e ao orgulho, procurando apenas a verdade, os amigos assim reunidos seriam, se me é permitida a expressão, multiplicados um pelo outro, e a alma incomum comprovaria uma riqueza para a qual não haveria explicação suficiente em parte alguma. [34]
A amizade é uma maiêutica; ela extrai de nós nossos mais ricos e nossos mais íntimos recursos. Ela faz com que se abram as asas de nossos sonhos e de nossos obscuros pensamentos; ela controla nossos julgamentos, experimenta nossas ideias novas, entretém o ardor e inflama o entusiasmo. [35]
“A dificuldade dos romancistas em nossos dias me parece ser a seguinte: se eles não frequentam a sociedade, seus livros são ilegíveis, e se a frequentam, eles não têm mais tempo para escrevê-los”. [36]
Os próprios tolos também nos são úteis e nos ajudam a completar nossa experiência. Não os procurem: deles já há o bastante! [...] A sociedade é um livro a ser lido, apesar de ser um livro banal. A solidão é uma obra-prima; mas lembrem-se das palavras de Leibniz, que até do mais imprestável dos livros sempre conseguia tirar algum proveito. [37]
Falar para dizer o que deve ser dito, para expressar um sentimento oportuno ou uma ideia útil, depois disso calar-se, é o segredo para se resguardar sem deixar de se comunicar, em vez de permitir que a tocha se apague para depois acender outras. A palavra pesa quando se sente por baixo dela o silêncio, quando ela oculta e deixa adivinhar, por detrás das palavras, um tesouro que ela libera progressivamente como convém, sem precipitação e sem agitação gratuita. O silêncio é o conteúdo secreto das palavras que contam. O que faz o valor de uma alma é a riqueza do que ela não diz. [38]
As ideias estão nos fatos, elas não vivem por si próprias, como acreditou Platão: esse ponto de vista metafísico tem consequências práticas. [39]
A solidão útil, o silêncio e o retiro do pensador são realidades abrandadas, mas fundamentadas num espírito com alto grau de exigência. É com vistas ao retiro, ao silêncio e à solidão íntima que a ação e os relacionamentos são tolerados e é em função deles que são dosados. Assim deve ser, se verdadeiramente o intelectual é um consagrado, e se não se pode servir a dois senhores. [...] Diz-se às vezes que a solidão é a mãe das obras. Não, e sim o estado de solidão. Tanto que podemos, a rigor, conceber uma vida intelectual fundada num trabalho com duração de duas horas por dia. Seria possível pensar que, estando essas duas horas a salvo, a conduta subsequente se daria como se elas não existissem? Seria um erro de entendimento muito grave. Essas duas horas são ofertadas à concentração, mas nem por isso deixa-se de requerer a consagração da vida inteira. [40]
[1] SERTILLANGES, A.-D. A vida intelectual: seu espírito, suas condições, seus métodos; tradução Lilia Ledon da Silva. Prefácio. 4ª impressão. - São Paulo: É realizações, 2010. p. 9.
[2] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 10.
[3] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., pp. 12-13.
[4] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 14.
[5] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 14.
[6] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 15.
[7] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 15.
[8] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 15.
[9] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 16.
[10] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 17.
[11] SERTILLANGES, A.-D. A vida intelectual: seu espírito, suas condições, seus métodos; tradução Lilia Ledon da Silva. 4ª impressão. - São Paulo: É realizações, 2010. p. 22.
[12] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 23.
[13] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 25.
[14] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 25.
[15] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 26.
[16] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 27.
[17] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 28.
[18] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 29.
[19] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 29.
[20] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 31.
[21] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 32.
[22] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 34.
[23] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 36.
[24] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 38.
[25] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 39.
[26] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 46.
[27] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 48.
[28] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 49.
[29] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 51.
[30] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 53.
[31] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 54.
[32] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., pp. 54-55.
[33] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 55.
[34] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 56.
[35] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 57.
[36] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 59.
[37] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 60.
[38] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 61.
[39] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 63.
[40] SERTILLANGES, A.-D. Op., cit., p. 65.