Diário das minhas leituras/6
25/09/2018 – JOSÉ ANTONIO CAMPOS
Vocês vejam como ninguém entende de literatura latino-americana. O Aurélio Buarque de Holanda e o Paulo Rónai colocaram um conto divertidíssimo do equatoriano José Antonio Campos no volume 4 da coleção "Mar de histórias", voltado ao período do romantismo ao realismo, com histórias de 1845 a 1885. Disseram que o autor nasceu em 1805, morreu em 1884 e era conhecido pelo pseudônimo "Jack the ripper". Ocorre que esse José Antonio Campos, na verdade, nasceu em 1868 e morreu em 1939. Não tive acessos à fonte dos organizadores do livro, mas sem dúvida ela estava errada. Até porque, o próprio pseudônimo do escritor já é revelador do equívoco, pois o verdadeiro "Jack the ripper", o serial killer inglês, surgiu em Londres em 1888. Ou seja, José Antonio Campos não faz parte do período abrangido pelo livro e não deveria estar nele. Não me consta que mais alguém tenha percebido um erro tão grave.
26/09/2018 – MAUPASSANT – MAUGHAM
Li agora “As joias”, do Maupassant, e percebi que o argumento do conto foi aproveitado pelo Maugham no conto “O Dr. Sabe-Tudo”. Em Maupassant, o sujeito descobre depois de viúvo que todas as joias que a sua esposa usava não eram falsas como ele pensava, mas legítimas e caríssimas. Como não foi ele quem comprou as joias, conclui-se que a esposa as ganhou de presente de alguém com quem o traia. E no Maugham, um marido também acredita que as joias de sua esposa são falsas. Está tão convicto disso que faz uma aposta com o Dr. Sabe-Tudo, especialista em joias, que as tem como verdadeiras. O tal do doutor avalia as joias que a esposa usava e rapidamente se convence que eram realmente verdadeiras, mas olha para a mulher e percebe pelo olhar de súplica dela que havia uma história por trás daquilo. Por isso ele resolve dizer que havia se equivocado, que as joias eram realmente falsas – e, com isso, salva o casamento dos dois. Certamente Maugham conhecia o conto de Maupassant, pois é à sua escola que o estilo dele está filiado. Os mesmos personagens poderiam ter vivido as duas histórias, afinal. O marido que teve a verdade ocultada pelo Dr. Sabe-Tudo descobre tudo quando a esposa morre. Eu gostei dos dois contos, mas o argumento do Maugham, com o gesto do Dr. Sabe-Tudo, me agradou mais.
27/09/2018 – ALPHONSE DAUDET
No Volume 4 da coleção “Mar da histórias” também existem dois contos do Alphonse Daudet que foram muito do meu agrado: “Os velhos” e “As empadas”. E o engraçado é que eu havia lido este ano o conto mais famoso dele, “O elixir do Padre Gaucher”, sem me sentir especialmente tocado por ele. O que prova que muitas vezes ler um único conto não é suficiente para apreender o estilo de um escritor. Isso já me aconteceu com o Stefan Zweig também, que num primeiro momento não havia me chamado a atenção e depois me apareceu com um dos melhores contos que li na vida. Então é provável que eu leia a antologia do Daudet chamada “Cartas do meu moinho”. Quem sabe tenha algumas boas surpresas por lá.
29/09/2018 – ERICO VERISSIMO
Gosto bastante do Erico Verissimo. Esse trecho aqui foi tirado do belíssimo “Olhai os lírios do campo”: "Se naquele instante - refletiu Eugênio - caísse na Terra um habitante de Marte, havia de ficar embasbacado ao verificar que num dia tão maravilhosamente belo e macio, de sol tão dourado, os homens em sua maioria estavam metidos em escritórios, oficinas, fábricas... E se perguntasse a qualquer um deles: 'Homem, por que trabalhas com tanta fúria durante todas as horas de sol?' - ouviria esta resposta singular: 'Para ganhar a vida'. E, no entanto, a vida ali estava a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa. Os homens viviam tão ofuscados por desejos ambiciosos que nem sequer davam por ela. Nem com todas as conquistas da inteligência tinham descoberto um meio de trabalhar menos e viver mais. Agitavam-se na Terra e não se conheciam uns aos outros, não se amavam como deviam. A competição os transformava em inimigos. E havia muitos séculos, tinham crucificado um profeta que se esforçava por lhes mostrar que eles eram irmãos, apenas e sempre irmãos."
29/09/2018 – MAR DE HISTÓRIAS
Terminei o volume 4 da coleção “Mar de histórias”. Como todos os outros três, tem belos momentos e outros que, se não são tão agradáveis, são, ao menos, bastante interessantes. Este é o primeiro volume que tem um conto brasileiro, no caso, do Álvares de Azevedo. Os destaques para mim foram o conto que já falei do José Antonio Campos, que não devia estar nesse livro, os dois do Daudet, um de Jens Peter Jacosen, chamado “Um tiro no nevoeiro” e os do Maupassant, entre eles “As joias”. Mas há o célebre “Uma alma simples”, do Flaubert e dois contos do Jan Neruda que também não fazem feio. Há ainda um conto do Baudelaire, que aparece mais por força do nome. Alguns contos eu já havia lido, como “A sorte do Acampamento Uivante”, bom conto do Bret Harte. Achei interessante ainda “O ninho das águas”, do Björnstjerne Björnson e os contos do Multatuli. Enfim, valeu a leitura, em breve vamos para o volume 5.
01/10/2018 – GEORGE ELIOT
Outra tirada de Middlemarch: “Pra mim é um crime expor pecados de um homem, a não ser que haja certeza de que é preciso fazê-lo para salvar um inocente”. (fala do personagem Caleb Garth).
03/10/2018 – RAYMOND CARVER
Raymond Carver é da turma da John Cheever. Li pela primeira vez os seus contos, através do “Fique quieta, por favor” e fiquei realmente com a sensação que o seu estilo é bem próximo ao do Cheever, que não é muito do meu agrado. Como os dois são escritores um pouco mais recentes, fico pensando se não é por causa da minha preferência por escritos antigos e clássicos. Sou meio romântico. Mas o Carver me parece que foca mais em miudezas do cotidiano, fatos que não precisam sequer colaborar com o enredo. Um belo exemplo disso é o conto em que um casal está no supermercado e, antes de pagar, o marido se lembra de colocar no carrinho algumas barras de chocolate. A mulher vê aquilo e diz “oba!”. Nada mais prosaico. Muitas histórias correm em um ambiente de incompreensão dos gestos dos personagens, mas ao término do conto é revelado um drama particular que os justifica. É curioso também o modo como o Carver dá título para os seus contos, pois geralmente são tirados de uma frase dita por um personagem e que não necessariamente nos parece a que mais dá sentido à trama. O conto que mais gostei está já no final, “Bicicletas, músculos, cigarros”, que, como tantos, foca em dramas familiares aliados aos pessoais.
05/10/2018 – CONTOS HISTÓRICOS
É boa a antologia “Maravilhas do Conto Histórico”. Se não está à altura das versões “nacionais” desta coleção, ao menos contou com uma seleção mais feliz do que a dos contos de aventura. A proposta do livro é percorrer a história da humanidade (e mesmo seu eventual futuro) a partir de textos ficcionais que retratem algumas situações ou personagens mais significativos que tivemos em nossa jornada. E o livro começa muitíssimo bem com “A caverna das renas”, de um desconhecido Jean Rivois, o qual se propôs a escrever um conto que se passa na pré-História. Isso é claramente algo muito difícil de se fazer, e acho que ele se saiu muito bem. Vemos ali os primeiros desenhos na caverna e o impacto terrível que tiveram na mentalidade daquelas pessoas. Toda a brutalidade e violência da época (que hoje disfarçamos tanto) também marcam presença. Foi o meu conto favorito do livro. Mas também se mostraram interessantes contos como “Rodas do destino”, de H. Bedford-Jones, que se passa no Egito e fala da invenção da biga, “Os fantasmas vêm à noite”, de um certo Michael Galister que não consta sequer no Google, e que fala sobre Hernán Cortés, “Conspiração na corte”, de Rafael Sabatini, onde o personagem é Colombo, “Mona Lisa”, de Alexander Lernet-Holenia, curiosa história envolvendo Da Vinci e seu quadro mais famoso, e “De como o brigadeiro Gérard foi tentado pelo demônio”, do ótimo Conan Doyle, que conta uma história de Napoleão. Não gostei muito do conto de Hermann Hesse sobre a meninice de São Francisco de Assis e nem do conto de Inez Haynes Irwin sobre Shakespeare (“Arroubo de primavera”). E, definitivamente, não gostei nada de “A perfeição”, do Eça de Queiroz, escritor de cujos contos estou pegando birra. Tive que abandonar no meio da leitura. Tem alguma coisa a ver com a Grécia o conto dele. Sobre a seleção de José Paulo Paes, tenho a dizer apenas que um livro que se proponha a falar sobre conto histórico, penso eu, deve fatalmente contar com algum conto do Walter Scott, mas ele só é citado na introdução. Também acho que o livro deveria contar com uma minibiografia dos autores, como nos livros “nacionais”.
06/10/2018 – GRAÇA ARANHA
Pouco se fala no Graça Aranha e muita gente, quando fala nele, torce o nariz. Entretanto, “Canaã” foi um dos romances que mais marcaram a minha vida, graças à minha profunda identificação com Milkau, seu personagem principal. É um livro que tem muito de filosófico, o que me agrada. Essa aqui é uma das falas de Milkau que deixei registrado para sempre consultar: "A natureza inteira, o conjunto de seres, de coisas e homens, as múltiplas e infinitas forma da matéria no cosmos, tudo eu vejo como um só, imenso todo, sustentado em suas ínfimas moléculas por uma coesão de forças, uma recíproca e incessante permuta, um sistema de compensação, de liga eterna, que faz a trama e o princípio vital do mundo orgânico. E tudo concorre para tudo. Sol, astro, terra, inseto, planta, peixe, fera, pássaro, homem, formam a cooperação da vida sobre o planeta. O mundo é uma expressão da harmonia e do amor universal”.
06/10/2018 – FLANNERY O’CONNOR
Demorei bastante até conseguir pegar emprestado os “Contos Completos” da Flannery O’Connor, mas foi uma bela coincidência que eu tenha lido “O barbeiro”, segundo conto do livro, justamente na véspera de uma das eleições mais controversas da história do Brasil. A história trata justamente da impossibilidade de convencer alguém, racionalmente, a deixar de lado suas posições políticas preconceituosas. Sempre é um sentimento de desespero e de impotência, até chegar a parecer inutilidade mesmo: não vão mudar de ideia. O “liberal” da história tem lá os seus preconceitos também, mas ao menos não os vê como virtude. Acho que poucos contos conseguiram traduzir tão bem o que se passa nesse período eleitoral por aqui.
08/10/2018 – MARAVILHAS DO CONTO ESPANHOL
De “Maravilhas do Conto Espanhol”, lido em junho deste ano, colhi a seguintes impressões: “Chama-me a atenção nessa boa seleção de contos espanhóis os melancólicos e os que contam com alguma morte, geralmente trágica. No mínimo um terço do contos apresentam essas características. São vários contos comoventes. Os meus favoritos foram o sensível "Adeus, Cordeirinha!", de Clarim, o trágico "A explosão", de Victor Catalá, o excepcional "Dois homens entre duas mulheres", de Zunzunegui, o angustiante "Só", de Palácio Valdéz, e o realista "A bolsa”, de Unamuno. Outros belos contos tristes são: "As Sereias", de Azorín", "O rival", de Zamacois e "A torrente", de Concha Espina". Há bons momentos também em "A novela do ônibus", de Péres Galdós. E há, naturalmente, um do genial Cervantes, o expressivo "A força do sangue". Os primeiros contos, depois do Cervantes, podem parecer um pouco estranhos e com momentos difíceis, mas eu recomendo que insistam na leitura”.
08/10/2018 – JUAN RAMÓN RIBEIRO
E de “Só para fumantes”, do peruano Juan Ramón Ribeiro, registro o seguinte: “Um ótimo escritor, que vale a pena ser mais conhecido entre os grandes da América Latina. Seu estilo é ágil e seus contos são bem elaborados. Destaco o realismo cruel "Urubus sem asas". Alguns contos são como que pequenos romances. Os personagens masculinos desempenham papel importante. O texto que dá nome ao livro é um ensaio. Também há contos que se assemelham a crônicas”.