Cap.Da Geração Que Dissipou Seus Poetas, do livro Poesias da Recusa, de Augusto Campos, Ed. Perspectiva

Além de tecer algum comentário sobre esse livro excepcional, este texto tem por fito esclarecer um poema meu, Poetas Dissipados, já publicado aqui no Recanto das Letras. Muitos entenderam-no como um libelo em favor da liberdade de poetas, pode ser, mas a intenção mesma era de homenagear poetas russos perseguidos, sobretudo aqueles perseguidos por Stalin e , dentre esses, ÓSSIP MANDELSTAN.

Óssip foi meio que um Gregório de Matos russo, não escrevia seus poemas.

Boa parte do que restou de sua poética deveu-se à sua esposa, que decorava e transcrevia os poemas. Entretanto, no poema anexo Vivemos Sem Sentir os Pés no Chão, bajuladores de Stalin compilaram a caricatura e levaram-na ao ditador. Essa simples caricatura , que não foi sequer escrita, rendeu-lhe perseguição, isolamento, degradação e morte por inanição sob prisão.

Augusto Campos traduziu do russo vários poemas dessa geração de poetas avessos às propostas estéticas impostas pelo regime stalinista,

o que , naturalmente, tornou-os alvos de difamações, desmoralizações, ridicularizações e isolamento, para que fossem simplesmente apagados da história literária. Campos oferece-nos um breve apanhado biográfico e sobre a poética e o faz brilhantemente pelo livro todo.

É sabido o valor que russos dão aos poetas. No caso de Óssip, era poeta de meio acadêmico, desconhecido do público. Gozava de um certo prestígio entre alguns intelectuais. Stalin dispôs-se a investigar pessoalmente sobre o poeta, procurou Boris Pasternak (Dr.Jivago et al), a quem, na época, respeitava, indagando-lhe se Óssip era ou não um "mestre"; as evasivas de Pasternak foram-lhe suficientes...

Stalin tinha grande temor de ser denegrido pela posteridade e , como possuía a mórbida propensão de condenar pessoas à fome, não poupou o poeta, assim como não poupou 14 milhões de ucranianos, entre 1931-33, à morte por fome (Abordarei isso no poema Holodomor).

Incluo um poema de Anna Ackmátova, também perseguida, pois nele fica bem claro, e em poucos versos, o desespero desses poetas. Há outros nomes, mas detive-me em Óssip, o mais desgraçado e talentoso deles.

Eis o poema de Óssip Mandelstam (1891-1938) que custou-lhe a vida:

VIVEMOS SEM SENTIR O CHÃO NOS PÉS:

Vivemos sem sentir o chão nos pés,

A dez passos não se ouve a nossa voz.

Uma palavra a mais e o montanhez

Do Kremlin* vem : Chegou a nossa vez.

Seus dedos grossos são vermes obesos,

Suas palavras caem como pesos.

Baratas, seus bigodes dão risotas.

Brilham como um espelho as suas botas.

Cercado de um magote subserviente,**

Brinca de gato com essa subgente.

Um mia, outro assobia, um outro geme,

Somente ele troveja e tudo treme.

Forja decretos como ferraduras:

Nos olhos! Nos quadris! Nas dentaduras !

Frui as sentenças como framboesas

O Amigo Urso***abraça suas presas.

Notas: * Stalin;

** Stalin passou a nomear diretamente funcionários públicos entre seus comparsas:

***Stalin era nascido na Ossétia ( algo como "Ursolândia"...).

Dos poemas que Campos traduziu de Óssip, este foi o que mais gostei: ESTE MEU CORPO :

Este meu corpo, que alguém me deu,

Que fazer dele, tão um, tão meu?

Respirar, este quieto prazer

-Digam-me - A quem devo agradecer?

Sou jardineiro ou só flor que fana ?

Não estou só na prisão humana.

Sobre as vidraças do infinito

Eis meu calor, meu sopro inscrito.

Minha marca está ali impressa

mesmo que não a reconheça

Que escoe a borra desta hora,

Ela está ali - não vai embora.

Poema de Anna Ackmátova :

" Eu vivo como um cuco de relógio

Não invejo os pássaros livres.

Se me dão corda, canto.

Só aos inimigos

Se deseja

Tanto".

Camilo Jose de Lima Cabral
Enviado por Camilo Jose de Lima Cabral em 30/09/2018
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