Diário das minhas leituras/4
31/08/2018 – CONTO DE AVENTURAS – POE – CAROLINE GORDON
Terminei o “Maravilhas do conto de aventuras” e achei que está um nível abaixo dos demais que eu li. Não consegui entrar no clima da maior parte dos contos. Os mais interessantes para mim foram o do Simbad, de que já falei, e o de Homero, com a história do Ciclope, mas uma parte desse interesse se dá pelo fator histórico das obras. O melhor conto do livro talvez seja a “Descida do Maelstrom”, do Poe, que, no entanto, eu não li dessa vez, por já ter lido no começo do ano. As imagens que esse conto cria são realmente muito marcantes. Esse livro me ofereceu a oportunidade de ler os primeiros textos de Byron (“Mazzepa”), Júlio Verne (“O Motim da ‘Bounty”) e H. G Wells (“O tesouro da floresta”), mas não apreciei muito os seus contos. Nem o conto do R. L. Stevenson, de quem costumo gostar, foi do meu agrado (“A ilha das vozes”). O de Kipling, “Toomai dos Elefantes”, beirou o insuportável. Observei também que são poucos os contos em que não acontece alguma forma violenta, pois isso parece associado ao conceito que se tem de “aventura”. Nenhuma morte, no entanto, terá sido mais escandalosa do que a de um bebê que é segurado pelos pés e jogado de encontro ao tronco de uma árvore, rachando o seu crânio. Isso está no conto “A cativa”, de Caroline Gordon, e quem cometeu a atrocidade foi um índio. Isso também é uma coisa que me incomodou em alguns textos, as noções etnocentristas, a caracterização dos outros como “selvagens” e a atribuição a eles de atos desonrados e reprováveis. Isso talvez seja inevitável em mundo ainda por descobrir, cheio de terras desconhecidas. Agora já não há mais muito espaço para os exploradores, mas é bem possível que a aventura – e os preconceitos – continue um dia em escala cósmica. Botaram um conto de Tolstoi no livro também, “O prisioneiro do Cáucaso”, que achei razoável.
01/09/2018 – SANSÃO – ANTIGO TESTAMENTO
Lendo o primeiro volume do “Mar de histórias”, que pega, portanto, as origens do conto, topei com a história de Sansão, tirada do Novo Testamento. Foi a primeira vez que li um texto da Bíblia com olhos não religiosos. E, de fato, percebe-se na história de Sansão uma construção literária, de tal forma que é difícil supor que seja uma história literal – a menos que Sansão tenha sido um tremendo estúpido, pois só assim é que não adivinharia as intenções de Dalila, depois de outras tentativas de igual gênero. Como uma obra literária, a história é interessante. Como parte da “palavra Deus” é muito difícil de se considerar, pois não apenas Sansão comete crueldades e impiedades como o narrador da história também atribui a esses atos a ação do “Espírito do Senhor”. Quero dar uma lida melhor em outros proto-contos presentes no Antigo Testamento. Um dos mais bonitos é o do relato da criação. Mas a maioria o lê de modo literal.
03/09/2018 – GEORG ELIOT – REGNARD
Do calhamaço “Middlemarch”, a obra-prima tão pouco conhecida de Mary Ann Evans, vulgo George Eliot, tirei há alguns anos os seguintes versos, atribuídos ao dramaturgo francês Jean-François Regnard:
Não, eu não conheço prazer mais deleitoso
Que ver um bando de herdeiros atordoados
Perder a compostura e, com o rosto alongado
Ler um testamento no qual, surpresos, pálidos,
Sabem o que lhes foi deixado: um adeus e nada
Para ver in natura seu pesar profundo
Eu de bom grado voltaria do outro mundo
04/09/2018 – ARTUR DA TÁVOLA
Eis uma bela poesia do hoje desconhecido cronista Artur da Távola, que separei após ter lido em 2014.
Ato leigo de contrição
Meu talento é defesa.
Minha inteligência é acaso.
Não sou criador, sintetizo.
Meu bom senso é medo.
Não sei, sugo.
Meu equilíbrio tem as deformações do que é normal.
Minha lucidez nasceu da doença.
Não sou, suo.
Minha simpatia é falta de naturalidade.
Meu galanteio é corruptor.
Não tenho gostos, tenho intenções.
Minhas admirações são inveja.
Meu espanto é covardia.
Não invento, formulo.
Minha diferença arde de desejos.
Minha doçura é timidez.
Minha versatilidade é esquizoide.
Não planto; colho, espertamente, a emoção comum.
Não fecundo porque sou hábil.
Não educo porque sou fraco.
Não desagrado porque sou dependente.
Não abalo porque sou medroso.
Meu brilho é a mascara do meu vazio.
Meu vazio é a minha verdade.
Minhas palavras são “flatus vocis".
Não sou expulso porque acomodo.
Não crio porque pouco ouso.
Não abro caminhos, sou mero tradutor.
Não renovo porque repito.
Não ameaço porque prefiro o mais fácil.
Não espanto porque me deixei amansar.
Não sangro porque desisti.
Meu NÃO tem disfarces demais.
Meu SIM, quando será integral?
Meu eufemismo é hipócrita.
Não perco o emprego porque aprendi a sobreviver.
Não digo todas as minhas verdades por medo e preconceito.
Não escrevo o que sei e sim o que finjo saber.
Não sei, nem, tudo o que finjo.
Minha frase é esconderijo.
Meu prestígio é minha insegurança.
Minha palavra não é o "sal da terra".
Minha alegria é de estufa.
Meu elogio é demolidor.
Não sou a imagem que projeto.
Não mereço os carinhos que recebo.
Não valho sua admiração.
Não sinto, sentindo, o que sinto escrevendo.
Minha modéstia é arrogante.
Minha agressão é ressentimento.
Minha ironia dá úlcera.
Minha vitória é menoridade.
Não me decido a ser definitivo.
Não venci as derrotas antigas.
Não derrotei as vitórias fáceis.
Meus ideais são ambições fantasiadas
Minha crítica é projeção.
Minha frustração escreve melhor do que eu.
Minha amargura me finge simpático.
Não consegui vencer a minha infância.
Minha coerência foi parar no sanatório.
Meu sarcasmo tem cara de anjo.
Meu riso é amortecedor, emoliente e trânsfuga.
Não sou bom, preciso da bondade.
Minha esperança e minha salvação: saber de tudo isso.
E confiar e prosseguir.
03/09/2018 – ORIGENS DO CONTO – NOVELLINO – VORAGINE – BRACCIOLINI
Realmente foi uma ótima ideia ler os primeiros volumes da coleção “Mar de histórias”. Terminei agora o primeiro volume, que pega desde as origens do conto, há milhares de anos, até o final da Idade Média. Em verdade, boa parte dos textos são esboços do que viria a ser conto, mas é uma experiência das mais enriquecedoras conhecer a “genealogia” do gênero. Tem conto egípcio, tem conto grego, tem conto da Bíblia e do Talmude, tem histórias de tradição hindu e budista. Embora boa parte dos contos não escape do natural “envelhecimento”, não causando mais, hoje, o mesmo efeito que tiveram à época, a leitura é bastante simples e sem grandes problemas de entendimento. Interessante como muitas das histórias de que se serviam os escritores foram sendo reaproveitadas e adaptadas em diferentes partes do mundo. As notas introdutórias de Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai são essenciais para compreendermos o contexto da publicação dessas histórias. Um dos contos que mais gostei foi “De um sábio grego que era retido em prisão; como julgou de um corcel”, que faz parte da coletânea italiana “Novellino”, anterior ao próprio Boccaccio. Mas a divertida história deve ser mais antiga, como sugerem os editores. Interessante também os contos referentes à “vida dos Santos”, do Jacobus a Voragine – que, entretanto, não tinha a intenção de fazer literatura. Na parte final, há o próprio Boccaccio, com três contos, e depois tem alguns dos seus “seguidores”. Das “Mil e uma noites” há uma história também, que vem a ser a de abertura, isto é, a que explica como foi que a Sherazade principiou a narrar as suas histórias. Bem divertida também é a história que encerra o livro, “Como um defunto, levado vivo ao túmulo, se pôs a falar e provocou riso”, do Poggio Bracciolini. Quase todos os contos são curtos e se lê rapidamente, com exceção do célebre “Amor e Psique”, de Apuleio. É um livro muito interessante de ser lido não apenas por aqueles que estão interessados em saber mais sobre as origens do conto, mas da própria arte de se contar histórias.
06/09/2018 – LAZARILLO DE TORMES
Há quatro anos eu lia o Lazarillo de Tormes, certamente influenciado pelo Dom Quixote, que considero até o hoje o meu livro favorito, de sorte que me agradaria ler qualquer coisa que se assemelhasse, ainda que minimamente, ao estilo que encontrei em Cervantes. Desgraçadamente, só guardei da leitura do Lazarillo uma frase, que me chamou a atenção: “Quantos deve de haver no mundo que fogem dos outros porque não se veem a si mesmos”. Hoje eu acho que essa frase ficaria muito melhor sem aquele “não”.
07/09/2018 – JOHN CHEEVER
Estou lendo o livro com 28 contos do John Cheever. Chama-me a atenção a predominância dos assuntos que abordam relacionamentos familiares. Quase sempre a trama envolve um casal que tem algum tipo de problema entre si, eventualmente com os filhos. Todos estão tentando viver da melhor maneira possível, mas raramente alguém consegue. O normal é que se batam daqui para lá, que troquem de pessoas, que troquem de estratégias, mas no fundo nada muda. Existem alguns contos bastante desconsoladores: a situação não vai mudar nunca. Há certa veia lírica em alguns contos, e eu sinto que eles deveriam ter me emocionado, pois eu gosto desse tipo de coisa, mas a verdade é que não me emocionou muito. Não sei precisar exatamente o que seja, mas sinto qualquer coisa que afasta a narrativa da verossimilhança, e isso, por certo, está impedindo que eu aproveite melhor as narrativas. Ainda não cheguei à metade dos 28 contos, mas já me parece que o número é excessivo. Sinto mesmo uma repetição de motivos ou pelo menos de cenários. A vida dos personagens, no jeito americano de se viver, com todos os objetivos que ela traz, me parece sem muita razão de ser. Se fosse um personagem de Cheever, já teria me matado. Eu descobri também que a palavra favorita do escritor (ou ao menos do seu tradutor) é “adstringente”.
09/09/2018 –FRANÇOIS MAURIAC – BARBUSSE – L’ISLE ADAM – ANATOLE FRANCE – GAUTIER
Algumas impressões que tive do “Maravilhas do conto francês”, lido antes que eu iniciasse as anotações deste diário. “Este é o primeiro livro da maravilhosa coleção "Maravilhas do Conto". Conto + Literatura Francesa é igual a "Maupassant e os outros". De fato, o conto de Maupassant, "O Campo das Oliveiras" é um dos que se sobressaem nessa antologia. Mas eu chamo a atenção para outros contos, principalmente para o esplêndido "O segredo dos Dupruoy, de François Mauriac. Que conto bem construído, que história significativa! Prosper Merimée também faz bonito com o cruel "Mateus Falcone", assim como Henri Barbusse com o sensível "Os últimos passos". "O segredo da guilhotina", de Villiers de L'Isle Adam, conta com uma premissa interessantíssima: uma experiência para ver se a consciência sobrevive à guilhotina. Anatole France se mostra extremamente criativo no conto "O procurador da Judeia", sobre o que aconteceu a Pilatos após a morte de Jesus. Quem também abusou da criatividade foi Théophile Gautier, com "Avatar", que trata de uma experiência de troca de corpos. Fora isso, há ainda aqueles nomes imprescindíveis, como o Stendhal, o Balzac e o Zola. Estou lendo vários livros dessa coleção e ressalto que a antologia francesa não está entre as melhores, mas o nível ainda é alto e vários contos compensam muito bem a leitura”.