A vida secreta da mente
Desde o primeiro estágio que fiz já me interessava pelo tema ‘elaboração conceitual’. Gastava todo meu salário em uma banquinha: comia um pacote de biscoitos enquanto lia “Ensaio do sobre o entendimento humano.” Também li Popper e Nelson Goodman. O primeiro falando sobre ciência, o segundo sobre arte. Da mesma maneira os livros sobre elaboração de histórias (incluindo ‘O herói de mil face’, ‘O Cinema como arte’, ‘Story’ e ‘Da criação ao roteiro’) também falam sobre a maneira como elaboramos nossos pensamentos. E, claro, as matérias de filosofia que cursei na faculdade, especialmente as ministradas pelo professor Júlio Cabrera, também diziam respeito à elaboração conceitual. Todas estas fontes de informação me fascinaram e contribuíram para minha formação. E todas têm algo em comum: não falam sobre o cérebro.
Algumas orientações políticas (como o fascismo) se valem de características biológicas para atribuir valor a um indivíduo (por exemplo, se você é de determinada etnia vale menos). Ou mesmo para dizer como as pessoas devem se comportar (por exemplo, se você tem um pênis não pode beijar na boca outra pessoa que têm pênis). O nazismo, a frenologia, a homofobia e mesmo o racismo difuso na nossa sociedade causaram e ainda causam consequências terríveis. Pesquisas que relacionam características morfológicas a como nós somos passaram a ser muito mal vistas em diversos ambientes acadêmicos. Mariano Sigman, autor de ‘A vida secreta da mente’, atribui a dificuldade em palestrar e publicar na Argentina, sua terra natal, devido ao estigma de seus estudos. Somos seres sociais. Para nos entendermos como pensamos e agimos precisamos ir a fundo em nossas relações sociais. Também somos seres físicos. A abordagem de Mariano Sigman é assertiva. Parte de perguntas e hipóteses (às vezes formuladas por filósofos ou psiquiatras), depois as testa em experimentos. Popper (com seu conceito de ciência) ficaria orgulhoso. Abdicar do nosso aspecto biológico como fonte de conhecimento custa caro. É abdicar de autoconhecimento em favor de um benefício duvidoso. O preconceito é uma opção, não é uma decorrência do conhecimento da nossa biologia.
Quando fiz filosofia da linguagem lembro muito bem da defesa da tese de que o pensamento vem depois da linguagem, só é possível pensar em uma língua. Achei um absurdo. Tenho diversos conceitos que não consigo traduzir em palavras, seja porque sou incapaz de articular um texto coerente, seja porque não existem conceitos que traduzem minhas intuições. Na aula de filosofia me faltou argumentos para defender meu ponto. Mariano Sigman, entretanto, consegue.
Piaget faz dois experimentos que demonstram a maneira de pensar de bebês de dez meses. Os experimentos são ubíquos, em qualquer cultura bebês de dez meses têm a mesma resposta. O primeiro experimento é assim: há dois guardanapos, um de cada lado da mesa. Com o bebê vendo esconde-se um objeto embaixo de um guardanapo. O bebê encontra sem dificuldade ou vacilação. Esta resposta - que nos parece óbvia - é evidência de que os bebês têm uma elaboração abstrata: o objeto permanece mesmo sem que o vejamos.
O segundo experimento começa como o primeiro. Mas antes que o bebê faça qualquer coisa o examinador (com o bebê vendo) troca o objeto de lugar. Então algo inusitado acontece: o bebê vai ao guardanapo errado! Piaget conclui que bebês não têm formado um aparato conceitual suficiente para uma elaboração abstrata.
Entretanto, a psicóloga e neurocientista Adele Diamond acompanha meticulosamente o desenvolvimento durante o primeiro ano de vida e chega a uma conclusão diferente. A chave está no olhar. Mesmo o bebê avançando no guardanapo vazio o olhar vai para o guardanapo em que o objeto está escondido. Mas se o bebê sabe onde está o objeto por que comete o equívoco? Adele Diamond diz que é porque certas estruturas do córtex pré-frontal (do autocontrole) ainda não estão suficientemente maduras para fazer o beber corrigir sua ação. A propósito, a parte do autocontrole só fica madura quando atingimos 21 anos de idade (segundo Daniel Goleman no livro ‘Foco’).
Na faculdade discuti diversos temas interessantes através da especulação filosófica. Por exemplo, se o pensamento depende da linguagem ou não. Para mim é claro, desde David Hume, que nascemos com instintos (ou, em um jargão mais atual, memória ROM).O que Mariano mostra é que é possível investigar tais questionamentos cientificamente. Ou seja, ele parte de uma pergunta, vai a uma hipótese e testa a hipótese através de experimentos - exatamente como Popper defende que a ciência deve ser.
Vejamos o exemplo fascinante que mostra como as decisões são tomadas. Na idade média o filósofo Jean Buridan apresentou um paradoxo. Um jumento chega a dois monte de feno igualmente grandes. Qual escolher? Em sua indecisão acaba morrendo de fome. A célebre máquina de Turing foi usada na segunda guerra mundial para decifrar os conversas nazistas embaralhadas através da máquina enigma. Em teoria o cérebro, assim como a máquina de Turing, desenvolve uma paisagem de opções e desencadeia entre elas uma corrida que terá um vencedor. Os votos se acumulam até um limiar no qual o cérebro considera suficiente para tomar uma decisão.
O experimento funciona assim: uma nuvem de pontos se move em uma tela de computador, muitos pontos se movem de maneira caótica e desordenada, o resto faz de maneira coerente. O jogador (que pode ser um macaco, uma criança, um adulto e até um computador) decide até onde crê que esta nuvem se move. É a versão eletrônica de um navegador decidindo de onde sopra o vento.
Fisiologicamente o macaco responde da seguinte maneira:
1-Córtex visual percebe a direção, mas não acumula informação.
2-Córtex pariental acumulam a informação e tem percepção de tempo.
3-Quando a informação se acumula o circuito pariental - que toma a decisão - aumenta sua atividade elétrica. Quando a atividade alcança um limiar os gânglios basais disparam a ação.
Reinício do processo de decisão.
Será que esta hipótese do limiar está correta? Será que a decisão é tomada a partir dos votos (em forma de carga elétrica) que se acumulam em favor de determinada decisão? Para testar esta hipótese, no meio do experimento injetaram uma descarga elétrica nos neurônios que identificam uma opção. Enquanto um macaco via uma nuvem aleatória de pontos, os cientistas injetaram uma descarga nos neurônios que decidem pelo movimento à direita. Os macacos responderam optando pelo movimento à direita.
O livro de Mariano Sigman é bem abrangente. Trata da origem do pensamento, de como formamos uma representação da realidade, da consciência. Trata de cada aspecto em que é possível confrontar um aspecto humano em relação à fisiologia do cérebro. Para muitas pessoas tal abordagem é condenável. Defende-se que as ciências sociais são intrinsecamente diferentes das ciências exatas pois são impermeáveis ao método científico de Popper. Defende-se que que determinados assuntos nem devem ser investigados pois podem se tornar subsídio a preconceitos e a uma sociedade injusta. Mariano Sigman mostrou que os temas humanos já são investigados cientificamente. E não é o único. Há anos Daniel Kahnemann se vale de métodos científicos para estudar psicologia. Pessoalmente acredito que optar pela ignorância em determinados assuntos não protegerá quanto ao racismo ou misogenia. Acredito que o preconceito é uma opção decorrente de valores, não de conhecimentos. Ter o método científico à disposição é somar às investigações filosóficas e linguísticas. É ter mais uma porta aberta para o conhecimento.