“Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!”
Vozes da África, de Castro Alves
A relação entre a obra e seu condicionamento social como ponto crucial para compreendê-la em certo modo se deve ao vínculo que há entre obra e ambiente, além de existir uma correlação com o tempo em que a obra é escrita. A formação da literatura maranhense, assim como a brasileira em geral, de seu devido aos diversos tipos de manifestações trazidas ao longo da colonização que trouxe ao local diferentes culturas, como as dos portugueses, franceses e holandeses (estes dois muito presentes na formação da cidade de São Luís), além, é claro, da cultura vinda com os escravos africanos.
Pode-se argumentar que a literatura maranhense se deu a partir do momento em que se desejava obter manifestações próprias do povo e por meio do povo por este pretender mostrar seus desejos e necessidades por meio da literatura, a qual era feita principalmente sob o víeis do outro. Deste modo, percebeu-se que a literatura local começou a delinear-se sob o seu próprio olhar, fato que começou a ser feito a partir do século XIX através do Romantismo.
É notório que os romances brasileiros, desde o período oitocentista, traziam muito daquilo que era visto e vivido no cenário social e político. É nesse sentido que o romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (São Luís, 11 de março de 1825 – Guimarães, 11 de novembro de 1917), é construído: mostrando, por meio de narrativas pessoais de alguns personagens, como era a sociedade escravocrata da época. Dividida em quatro blocos, nos dois primeiros o enredo do romance conta como Tancredo e Úrsula se conheceram no momento em que salvam a vida de um cavalheiro que conta toda a sua vida cheia de conflitos familiares, assim como ocorre nos dois últimos em que Úrsula comenta como fora sua vida de escrava, além de a Mãe Susana descreve qual o verdadeiro sentido da liberdade, explicando como conseguiu sobreviver a uma viagem dentro de um navio negreiro.
Há, assim, comparações sobre o passado não vivido de acordo depoimento dos outros, ou seja, há uma impressão sobre lembrança própria e na dos outros ao serem realizadas descrições por diversos pontos de vista. Pode-se notar que a narrativa traz a memória do passado do negro africano que se torna agente do romance, logo mostra sua história através de seus próprios conceitos e vivências, fato muito difícil de acontecer na literatura brasileira na época da publicação do livro. Deste modo, argumenta-se que o romance Úrsula apresenta grande forma e estrutura por não se preocupar apenas com a estética, como também com o modo pelo qual a história ser descrita e passada ao leitor, fato observado logo no primeiro parágrafo do prólogo: “Mesquinho e humilde livre é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume”.
Percebe-se que o elemento social – a escravidão – e utilizado por Maria Firmina como modo de crítica a sociedade da época com o objetivo de mostrar o verdadeiro valor de ser ético em sociedade. A intenção central do livro é descontruir a condição social do negro, visto por muito tempo como objeto e transformado em escravo. Assim, essa desconstrução escravocrata é debatida fortemente no enredo do livro, assim como o patriarcalismo é desmitificado no enredo ao ser mostrado a relação amorosa entre Úrsula, Tancredo e o tio comendador. Além disso, há um fato externo livro: era difícil de se encontrar uma escritora no Brasil em meados do século XIX, e mais difícil ainda era encontrar uma escritora negra e pobre. Por este motivo que Maria Firmina lançou seu livro sob o pseudônimo “Uma maranhense”.
Todos esses argumentos demonstram o quão grandioso é o livro Úrsula, o primeiro livro abolicionista da literatura brasileira por mostrar fatos sobre resistência tanto dentro da obra como na vida da autora, fato que contribui para entender que os fatores sociais atuam na formação da obra e na vida social do autor.