MASSA E PODER: UMA ANTROPOLOGIA PATOLÓGICA
Não é possível em algumas poucas palavras registrar a contento o impacto da leitura de um clássico como Massa e Poder de Elias Canetti. Sua matéria prima, em sentido amplo, é nossa própria condição humana e o processo civilizatório. Mas a partir de um ângulo “selvagem”, ou seja, não domesticado pela sociologia ou pela ciência politica. Esta é a maior virtude de sua densa e bem fundamentada narrativa que pode ser considerada uma critica radical ao poder através de uma espécie de antropologia patológica.
O mito moderno do contrato social é aqui substituído pelo marco arcaico de uma associativismo instintivo. A exploração levada a cabo por Canetti das entranhas do comportamento coletivo e arcaico que configura nossas praticas sociais, bem como sua associação visceral com o poder, nos sugere diversas hipóteses para analise das origens do totalitarismo e do mal estar civilizacional que, em certos meios intelectuais, marca a primeira metade do século XX.
Significativamente, uma das imagens chaves deste livro é o arquetípico da luta pela sobrevivência. Questão que anima a história humana desde seus primórdios e compreende uma das motivações instintivas mais preeminentes. Afinal, foi ela quem inspirou ao home arcaico a superação do medo do desconhecido, do pavor de ser tocado, mesmo por seus semelhantes, permitindo, através do contato, o advento da malta e, posteriormente, da massa, como padrão elementar da associação humana.
A definição e tipificação de massa elaborada por Canetti, sua diferenciação e relação com a malta, é questão que por sua complexidade não comporta aqui uma apresentação resumida e apressada. Cabe apenas apontar que Canetti revela um conhecimento singular das culturas arcaicas, mas é mediante o reconhecimento da permanência de alguns elementos deste arcaísmo em nosso comportamento contemporâneo mais cotidiano, que ele tece os contornos de uma psicologia da multidão que tem na expressão corporal/motora um de seus meios mais concretos de expressão cognitiva.
Assim, o ato de agarrar, de triturar, de morder, de permanecer ereto, subordina-se a constituição de uma economia simbólica da performance do poder e da potencia de existir. O próprio poder, neste contexto, entendido como um produto da própria luta pela sobrevivência, associada à distinção do herói civilizador, do grande líder, posteriormente ungido pela metafisica religiosa. O líder é legitimado pela multidão, glorificado como a personificação do sobrevivente por excelência.
Com a decadência das religiões monoteístas da lamentação, fundamentadas no imperativo do uno e do universal, que legitimava e fundamentava o prestigio e autoridade do líder, o poder encontrou na malta, no conteúdo da malta da multiplicação, para usar uma categoria do autor, um novo e secular princípio para a manutenção do amalgama coletivo. Assim, não surpreende que hoje em dia todos os países estejam mais inclinados a proteger sua estrutura produtiva do que a vida de seus próprios membros. O líder, personificação ideal do sobrevivente, do todo que é apenas um, é aquele que realmente importa diante das multidões cujo destino tem nas mãos.
Sendo desta maneira, Canetti assim define a distinção entre o rico, o detentor do poder e o famoso no que diz respeito a gloria:
Para o rico o que importa é o dinheiro, não montes e rebanhos. Os homens não interessam; basta o fato de poder compra-los. Já o detentor do poder, coleciona homens. Os montes e rebanhos também não lhe interessam, a não ser como meio para adquirir homens. Já para o famoso, o que importa são os coros que gritam seu nome. Não importa se vivos, mortos ou não nascidos, o imperativo é multiplicar aqueles que gritam seu nome, independente dos montes e rebanhos. Assim, cada um a sua maneira exerce seu poder diante da massa anônima.
A terapêutica que o autor parece insinuar diante do patológico e arcaico fascínio do líder que personifica para todos o drama da sobrevivência, nutrindo uma relação irracional com as massas, potencializando sua tendência ao crescimento, ao expansionismo constante, na paradoxal afirmação do um que é todos, é a aceitação franca de nossa própria vulnerabilidade e limitações.
A prosa densamente literária do denso estudo de Canetti esta longe de alguma forma ter sido aqui minimamente apresentada, muito menos resumida. Neste caso, nenhuma resenha possível nos prepara para a experiência da leitura e sentimento de perplexidade diante da fragilidades de todo humanismo quando confrontado com a concretude da condição humana.