PAISAGENS DO HIMALAIA - “O LEGADO DA PERDA” É UM ACHADO

“O Legado da Perda” (Objetiva, 2007, 292 página) levou nada mais, nada menos que oito anos para ser escrito e tem estreita relação com a experiência da própria autora. Kiran Desai, indiana de Chandigarh, no convés da fragata desde 1971, ambienta sua narrativa numa aldeia longínqua de seu belo país. Um juiz sisudo e fechado, pretendendo fugir do mundo que só trouxe a ele desilusões, se isola num casebre no sopé do Monte Kanchenjunga, no Himalaia. Diante de vários problemas com a neta adolescente que se apaixona pelo professor de matemática, e com o fiel cozinheiro que só pensa no filho que tenta a sorte trabalhando ilegalmente nos Estados Unidos, ainda tem que conviver com uma revolta indo-nepalesa prestes a eclodir que trará sérios problemas a vida de todos os moradores da região. A globalização é apenas um dos muitos assuntos abordados por Kiran. Alguns dilemas humanos enfrentados por uma gama de personagens que vão do colonialismo aos conflitos de religião, de raça e do nacionalismo. Com “O legado da Perda”, Kiran recebeu o prestigiadíssimo prêmio “Man Booker Prize” do ano passado. O detalhe é que a autora escreveu parte do livro quando esteve por algum tempo no Rio de Janeiro. Disse ela: “Não tenho dúvidas que muitas das passagens do romance situadas nas comunidades pobres do Himalaia foram influenciadas pelas impressões que levei das favelas cariocas”. Kiran soube muito bem dosar assuntos que são temas principais neste início de século. O jornal americano The New York Times comentou: “Kiran Desai explora, com muita intimidade e propriedade, praticamente todos os dramas da contemporaneidade internacional: globalização, multiculturalismo, desigualdade econômica, fundamentalismo e violência terrorista. Apesar de ambientado em meados dos anos 1980, é atual como o melhor tipo de romance pós-11 de setembro”. Atualmente Kiran reside em Nova York, mas antes de sair da Índia com apenas 14 anos morou na Inglaterra. Kiran é a mulher mais jovem a vencer o Prêmio Man Booker Prize, que é um prêmio somente para autores da língua inglesa.

TRECHO DO LIVRO "O LEGADO D PERDA"

Um

Durante todo o dia as cores tinham sido como as do anoitecer, neblina deslizando como uma criatura de água pelos grandes flancos de montanhas tomadas por sombras e profundidades oceânicas. Brevemente visível acima do vapor, o Kanchenjunga era um pico distante talhado em gelo, absorvendo o resto da luz, no topo uma pluma de neve soprada alto pelas tormentas.

Sentada na varanda, Sai lia um artigo sobre lulas-gigantes num exemplar antigo da National Geographic. De vez em quando, levantava os olhos para o Kanchenjunga, observava sua mágica fosforescência com um arrepio. Sentado num canto isolado com seu tabuleiro de xadrez, o juiz jogava consigo mesmo. Enfiada debaixo de sua cadeira, onde se sentia segura, estava Mutt, a cachorra, roncando baixinho no sono. Uma única lâmpada nua pendia do fio no alto. Fazia frio, mas dentro da casa era ainda mais frio, a escuridão, o ar gélido contidos por paredes de pedra muito espessas.

Ali, nos fundos, dentro da cozinha cavernosa, estava o cozinheiro tentando acender a lenha úmida. Mexia nos gravetos com cuidado, por medo da comunidade de escorpiões que vivia, amava e se reproduzia na pilha. Uma vez, encontrara uma mãe, inchada de veneno, com 14 bebês nas costas.

O fogo enfim se acendeu e ele colocou a chaleira em cima, tão amassada, tão encoscorada como uma coisa escavada por uma equipe arqueológica, e ficou esperando que fervesse. As paredes eram chamuscadas, encharcadas, alhos pendurados pelos caules encardidos nas vigas queimadas, chumaços de fuligem grudados como morcegos no teto. A chama lançou um mosaico alaranjado brilhante sobre o rosto do cozinheiro, e a metade superior de seu corpo esquentou, mas um vento gelado torturava a artrite de seus joelhos.

(...)

Enzo Carlo Barrocco
Enviado por Enzo Carlo Barrocco em 22/08/2007
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