Uma antologia além do tempo e do espaço

UMA ANTOLOGIA ALÉM DO TEMPO E DO ESPAÇO
Miguel Carqueija


Resenha do livro “Além do Tempo e do Espaço” (subtítulo “Antologia de Ciencificção”) — Edart Livraria Editora Ltda., São Paulo-SP, 1966. Capa de Luiz Dias. Desenho de Renato José. Coleção Ciencificção 6.

A década de 60 foi um tempo promissor para a ficção científica brasileira! Eu vivi esse tempo. Havia inúmeras coleções especializadas e publicações avulsas; surgiram revistas. Publicava-se ficção científica brasileira, principalmente pelos editores GRD e Edart. As livrarias vendiam inclusive coleções portuguesas, notadamente a Coleção Argonauta. Havia coleções brasileiras de bolso (como de bolso era a Argonauta): Futurâmica, Galáxia, Espacial, Astronautas.
Esse tempo passou. Quem pôde aproveitou...
A antologia focalizada apresenta 13 autores nacionais. Vejamos um por um:
ÁGUA DE NAGASÁQUI (Domingos Carvalho da Silva) – É uma dupla narração em primeira pessoa. Um sujeito conhece um japonês no carro-restaurante de um trem em São Paulo, fazem amizade e o narrador acaba recebendo uma longa carta biográfica.
A narração de Takeo Matusaki dá conta de que, tendo bebido água e comido frutas atingidas pela radiação da bomba A de Nagasáki (no conto grafada Nagasáqui) ele tornou-se, sem querer, um agente da morte. Quem tinha contato mais longo com ele morria. Finalmente, descobriu que o seu esqueleto era radioativo.
O conto é válido embora um pouco deprimente e inverossímil cientificamente; mas é bem escrito.

A BOLHA E A CRATERA (Rubens Teixeira Scavone) – Scavone surgiu na década de 50 e tornou-se um dos mais representativos autores da FC nacional. Publicou diversos livros, como “O diálogo dos mundos” (coletânea de contos editada por Gumercindo Rocha Dorea, ou seja, pela Editora GRD), e contos em várias antologias.
Seu estilo é sóbrio, conservador, escorreito. Scavone escreve com nobreza. Este conto utiliza a futura colonização da Lua como pano de fundo para uma vista d’olhos em torno da natureza humana. Colonos lunares, de diversas nacionalidades, curiosamente dependem de sorteios para a obtenção de licenças para irem à Terra, reverem parentes e amigos. Quem tem pouca sorte nos sorteios vai mofando na Lua, sem poder voltar. Todos são analisados psicologicamente por meios sofisticados, de modo a evitar surpresas. No entanto pelo menos duas pessoas — um homem que foge usando de violência, uma mulher que engravida — surpreendem os cálculos humanos. O conto é ligeiramente passional e parece ter como mensagem o caráter imprevisível dos seres humanos.

A CAÇADA (Lygia Fagundes Telles) – A rigor não é um conto de ficção científica, mas de fantasia ou mais exatamente de surrealismo, mais na linha de um Jorge Luís Borges ou um José J. Veiga. A história porém, que fala num homem atraído por um tapete velho exposto numa loja de antiguidades, e cujos desenhos lhe trazem estranhas e desconhecidas memórias, não consegue ter consistência e termina sendo por demais gratuita.

UM CASAMENTO PERFEITO (André Carneiro) – Um conto de natureza conservadora, onde um casal de um futuro não-identificado e distópico vive sob a égide do Computador Central, que a tudo regula e dirige. Praticamente todas as pessoas estão condicionadas a acreditar religiosamente nas decisões cibernéticas. O marido, Val-t, encontra porém dificuldades em se entender com a esposa, A-Rubi, que insiste por exemplo em preparar a comida ela própria, em vez de “apertar um botão”. Numa sociedade em que se acredita que tudo o que os computadores decidem é bom, isto já seria um começo de rebelião.
Assim se desenvolve este conto com uma mensagem positiva em favor de uma vida mais humana; infelizmente Carneiro narra em forma de resumo, sem diálogos, resultando assim um texto irritante. Talvez o conto tenha sido escrito para a antologia, com prévia limitação de tamanho.

DA MAYOR SPERIENCIA (Nilson Martello) – Neste pequeno conto do autor da coletânea “Mil sombras da Nova Lua” deparamos o curioso relato do encontro de certo rei português do século XIV, Dom Fernando, com um ET saído de um disco voador. Martello conseguiu reproduzir — não sei com que grau de exatidão — o português macarrônico dos tempos antigos.

DESAFIO (Ney Moraes) – Conto praticamente apoiado numa piada final mas que me pareceu meio sem graça. Teria sido melhor, a meu ver, deixar a faxineira explicar como conseguiu desligar a máquina que não podia ser desligada.

O ELO PERDIDO (Jeronymo Monteiro) – Este conto é mais extenso e dividido em capítulos. Seu autor, Jerônymo Monteiro, assinou um razoável número de obras de ficção científica e policiais, inclusive romances como “Três meses no século 81” e “Fuga para parte alguma” e é um dos mais importantes autores da FC nacional e dono de estilo e imaginação atraentes. Nada disso é aqui comentado, aliás uma grande deficiência do volume é a falta de informação sobre os escritores selecionados, apesar de ostentar as suas fotografias na contra-capa.
“O elo perdido” é uma história muito triste, trágica, sobre um casal que gera, por algum estranho atavismo, um menino que não era inteiramente humano. Um caso de regressão evolutiva. Não há muito suporte científico na história, que se concentra na questão do preconceito, da exclusão, do drama de ser “diferente”. Flávio, o pai do garoto, acaba por odiá-lo, provocando a tragédia final. O menino Carlos com onze anos mal falava, tinha aparência vagamente antropoide e gostava de andar nu na mata. A impressão que eu tenho é que o autor simplificou bastante a problemática apresentada, mesmo assim é um dos melhores contos do volume.

O ESPELHO (Nelson Leirner) – História muito sem pé nem cabeça, avançando pelo surrealismo, numa narrativa muito apressada. Um astronauta, narrando na primeira pessoa, vai sozinho até a Lua e depois pensa que volta para casa. Mas, ao chegar em casa, ninguém abre a porta. Ele fica nisso, indo e vindo, sentando em frente à casa, faz amizade com uma moça e acaba concluindo que está no mundo do espelho, por isso ninguém o conhece. Esse deve ter lido “Alice no País do Espelho” de Lewis Carrol.
GEORGE E O DRAGÃO (Álvaro Malheiros) – A ideia em si deste conto não é ruim — um astronauta acidentado que enlouquece — mas o desenvolvimento chega a ser absurdo.
O autor coloca o primeiro vôo tripulado à Lua num futuro incerto porém muito à frente, tendo em vista a grande modificação da geopolítica. Ele se refere a centros de exploração espacial da União Latina, da Liga Asiática, das Nações Unidas. Ora, isso não existia nos anos 60 e a chegada à Lua deu-se em 1969.
Outro detalhe, ainda mais exdrúxulo, é que o astronauta George “não sabia se poderia chegar até a vitória final, a conquista das galáxias, a aventura no mundo das estrelas, o gosto da posse do “universum nostrum”. Mas, no primeiro andar, ele sempre quis por os pés.” Ora essa, quanto tempo vocês acham que demoraria — se tal fosse possível — a “conquista das galáxias”?
HOMENS SOB MEDIDA (Nelson Palma Travassos) – Conto bastante irônico onde dois sujeitos discutem as supostas maravilhas de sua época, reservando o autor um final-surpresa inteligente.
TRANSFERT (Antônio D’Elía) – Vinheta mal-ajambrada, com excesso de referências técnicas sem pé nem cabeça e um final hermético que eu não entendi. Basicamente trata do romance entre um homem terrestre e uma mulher não-humana de outro planeta, com número diferente de dedos e até braços.
TUJ (Walter Martins) – História mais comprida e mais deprimente, onde um cientista chamado Carley é lançado num experimento atômico num mundo estranho povoado por seres alados mas que não são de lá; todos foram parar num mundo sem volta onde não há o que comer e só há água quando chove; a raça dos alados às vezes envia comida para os extraviados mas não consegue trazê-los de volta. A história é original mas muito gratuita e seu final de todo infeliz.
Walter Martins é autor de um conto cômico e fantástico, “A volta de Adalbeu”, que saiu na revista “Magazine de Ficção Científica” que a Editora Globo editou nos idos de 1970-71. É um talento perdido da FC e fantasia brasileiras.
O VELHO (Clóvis Garcia) – Uma dessas histórias de FC que imaginam um mundo futuro de valores perdidos (mais do que já estão) e o destino dos idosos é ir morar em casas de recolhimento do Estado fora os poucos que insistem em viver aqui fora. O velho sem nome do conto “apaixona-se” por um robô obsoleto encontrado num antiquário e o compra com o maior sacrifício. Torna-se o seu companheiro de final de vida. A mensagem humanista tentada por esse autor conhecido no fandom brasileiro de ficção científica dos anos 60 dilui-se porém na inverossimilhança. Segundo o texto, “era raro um velho nas ruas da cidade”. Uma civilização fria e impiedosa, manifestada no desprezo aos mais velhos; mas talvez pelo limite de espaço da antologia, Clóvis não elaborou melhor a situação e nem mesmo o relacionamento com o robô, visto de forma perfunctória.
Rio de Janeiro, 3 de julho a 21 de agosto de 2017.