Pode o subalterno falar?
Ler Spivak é um verdadeiro exercício intelectual, trata-se de uma leitura densa, complexa e prolixa. O texto “Pode o subalterno falar?”, remete-nos quase que instantaneamente a ideia de inferioridade, de invisibilidade, submissão, submissão esta que imporia ao subalterno a condição do silêncio, dependente de outros para se fazer ouvir, ou de outros para transmitirem sua mensagem, nunca autêntica, nunca inócua, entretanto, pelo que compreendi, não era bem isso que Spivak desejava expor. A leitura do texto de Spivak é complicada, e devo ressaltar que é necessário muita atenção e principalmente não se pode deixar passar nada, os mínimos detalhes são importantes para compreensão do todo, não é o tipo de texto que conseguimos “decifrar” nas primeiras páginas.
Para “decifrá-lo” fui buscar em minhas leituras anteriores referências, parâmetros que auxiliassem na compreensão. Iniciei pela reflexão acerca dos processos sociais, os processos que constroem a “vida social”, os seres humanos, os indivíduos, estabelecem entre si e com o meio diversos tipos de relação, ao estabelecerem relações de produção criam, recriam, reproduzem uma estrutura social baseada em relações de poder e dominação.
Spivak inicia sua reflexão fazendo uma crítica à produção do conhecimento ocidental e à construção dos sujeitos do conhecimento, em contraposição aos sujeitos que se encontram às margens desta produção epistêmica, e questiona neste contexto, o papel do intelectual e, mais precisamente, da mulher intelectual enquanto representante ou porta-voz desses sujeitos “fora do eixo” ou como ela diria, excêntricos (fora do centro), quando toma o ocidente como eixo central da produção epistemológica.
Acredito ser oportuno fazer menção aqui a um termo ainda pouco utilizado, o Epistemicídio, termo cunhado e utilizado por Boaventura de Sousa Santos desde “Pela Mão de Alice” até as obras seguintes, também tem sido utilizado por autores e autoras que analisam a influência da colonização europeia e do imperialismo capitalista sobre os processos de produção e reprodução da vida. O epistemicídio é, em essência, a destruição de conhecimentos, de saberes, e de culturas não assimiladas pela cultura branca/ocidental. É um resíduo do colonialismo implantado pelo avanço imperialista europeu sobre os povos da Ásia, da África e das Américas. Desde as Grandes Navegações à globalização da cultura ocidental, o fenômeno tornou-se ainda mais intenso, o capitalismo de mercado, selvagem contribuiu de maneira determinante para a distorção, desconfiguração, desaparecimento e deturpação do conhecimento popular/tradicional.
Para darmos continuidade a esta reflexão é necessário esclarecer quem seriam os subalternos que seriam expostos ao epistemicídio, neste caso, para Spivak, eles constituem “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”. “Pode o subalterno falar?” é considerado um ícone do chamado “pós-colonialismo” para alguns, Spivak parte de “uma crítica aos esforços atuais do Ocidente para problematizar o sujeito, em direção à questão de como o sujeito do Terceiro Mundo é representado no discurso ocidental”, analisa os efeitos políticos, filosóficos, artísticos e literários deixados pelo colonialismo nos países colonizados.
A autora busca argumentar, em debate com Foucault e Deleuze, que o chamado sujeito subalterno é um resultado do próprio discurso dominante. Spivak se faz valer das teorias de pensadores de diversas áreas do conhecimento para pensar sobre duas questões: a dependência dos chamados subalternos e o papel do intelectual.
Colonialidade do poder é um conceito que dá conta de um dos elementos fundantes do atual padrão de poder, e que se encaixa perfeitamente à crítica de Spivak, a classificação social básica e universal da população do planeta em torno da ideia de “raça”. Essa ideia e a classificação social baseada nela foram determinadas há mais de 500 anos junto com América, Europa e o capitalismo. São a mais densa, intensa e duradoura expressão da dominação colonial e foram impostas sobre toda a população do planeta no curso da expansão do colonialismo europeu. Desde então, no atual padrão mundial de poder, saturam todas e cada uma das áreas de existência social e constituem a mais profunda e eficaz forma de dominação social, material e intersubjetiva, e são, por isso mesmo, a base intersubjetiva mais universal de dominação política dentro do atual padrão de poder. (Colonialidade, poder, globalização e democracia* Aníbal Quijano, Novos rumos, ano 17, número 37, 2002.)
Spivak almeja refletir sobre uma possível reinterpretação dos modelos coloniais de construção do Outro como diferenciado e, posteriormente, aponta para o fato de que o sujeito subalterno representado pelos discursos hegemônicos ocidentais apenas se faz representar pelo colonizador. Sendo assim, as mulheres, no caso indianas, representadas por esse discurso, acabariam ficando ainda mais na obscuridade.
Vale a pena ressaltar que a construção da masculinidade e da feminilidade e do que ambas representam acontece, se dá entre homens e mulheres, corpos masculinos e femininos, imersos, submergidos em um determinado contexto social, econômico e político, num todo social que transforma e é transformado, por isso as relações sociais entre elas, as afetivas e até mesmo de poder e dominação vão se conformando e legitimando social e historicamente.
Spivak realiza uma discussão com as duas mais importantes correntes teóricas que convergiram nos estudos subalternos indianos, a marxista e a pós-estruturalista, embasando-se na reflexão a respeito das possibilidades de fala e representação subalterna e qual o papel que o intelectual deveria assumir neste processo. Spivak se debruça especialmente nesta última corrente, com Foucault, Deleuze e Guattari. A “fala” ou a voz dos sujeitos subalternos seria a sua agência, a sua autonomia diante da sociedade excludente em que eles se encontram, abarca a consciência dos sujeitos, a sua capacidade de formar alianças políticas.
Para a autora, Foucault e Deleuze tomariam uma posição particular e privilegiada de fala: o Primeiro Mundo, sob a padronização e regulamentação do capital socializado. Ao falar dos “homens e mulheres entre os camponeses iletrados”, dos “tribais”, e dos “estratos mais baixos do subproletariado urbano”, Deleuze e Foucault suporiam que tais sujeitos, se tiverem a oportunidade e a possibilidade de formarem alianças políticas, “podem falar e conhecer suas condições”.
Aprofundando a concepção de Foucault, o poder interfere materialmente, alcançando a realidade mais sólida dos indivíduos - o corpo - e que se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro poder ou sub poder. Essa tecnologia e novos saberes organizam sobre o corpo uma compreensão, uma inteligência, eminentemente instrumental. O corpo é aquilo que deve estar sempre submisso e dócil, ainda mais o corpo feminino.
Ao propor uma análise do poder, Foucault considera que, a partir da era moderna, o poder não pode mais ser tomado como um fenômeno de dominação forte e hegemônico de um indivíduo sobre os outros ou de um grupo sobre os outros, tal como se pode constatar no modelo da Soberania. O poder problematizado como “bio-poder” seria algo que circula, que funciona em rede, fazendo com que o indivíduo não seja o outro do poder, mas um dos seus primeiros efeitos.
Spivak nos elucida como a agência, de acordo com Deleuze, estaria localizada no campo do desejo, o qual desempenharia uma relação mecânica com o objeto desejado, faltando apenas um sujeito para se acoplar a eles. Essa definição de desejo tornaria o sujeito “homogêneo e monolítico”. Por ligar a consciência à esfera do desejo, e este sendo generalizado, temos a existência de um sujeito indiferenciado às peculiaridades de um sistema econômico globalizado marcado pela divisão internacional do trabalho.
Spivak buscou reconstituir a importância da ideologia para se entender como concretiza-se o poder, algo que é negligenciado por Foucault e Deleuze, segundo a autora, visto que seus trabalhos manifestaram uma relação mecânica entre desejo e interesse e uma visão de um sujeito oprimido não questionada que trataria o sujeito como indivisível e autônomo.
Dessa forma, o sujeito é, para Spivak, heterogêneo e descentralizado. Como não há um sujeito indeterminado a guiar a agência segundo um desejo mecânico, a questão da ideologia, que foi desconsiderada pelos filósofos, segundo a autora, fica evidente. Neste momento, Spivak mostra como o sujeito monolítico imaginado pelos filósofos franceses abarcaria dois sentidos de representação, equivocadamente por eles conectados. O primeiro sentido é sinônimo de “falar por” (vertretung), possuindo o sentido político de representar um grupo, e a suposta capacidade de conhecer a realidade do representado. Já o segundo sentido que Spivak chama de “re-presentação”, está ligado à arte e à encenação (darstellung). O sujeito descentralizado e heterogêneo de Spivak mostraria uma descontinuidade entre esses dois sentidos de representação, nela residindo as dificuldades de agências do sujeito subalterno, como também de eles formarem alianças políticas.
De acordo com Spivak, acompanhar a ideia do sujeito soberano dos autores originaria um fazer teórico livre de dimensões ideológicas, na qual seria admissível para os intelectuais representarem os subalternos. No entanto, não é a representação no sentido que permite agência deste grupo, fazendo com que eles saíssem do lugar da subalternidade. Seria a representação no sentido “falar por” (vertretung), relacionada com as instituições políticas e a suposição de conhecimento e substituição do representado, e como “re - apresentação” (darstellung), vinculada a dimensões estéticas e de encenação.
Para Spivak, ao deixarem de considerar as relações entre desejo, poder e subjetividade e ao assumir um compromisso de hipótese “genealógica”, se encontraram “incapacitados” de articular uma teoria dos interesses, destarte, Spivak pondera que esses autores se equipararam aos sociólogos burgueses ao assumir o lugar da ideologia como um “inconsciente” continuísta ou como uma “cultura parassubjetiva” que conduz ao “sujeito”.
Os acontecimentos evidenciariam e determinariam como a representação do oprimido que, escondido por uma capa libertária, acaba por auxiliar na manutenção de práticas essencialistas e imperialistas que redundam em violência epistêmica cotidiana. Spivak aponta os perigos das análises que procuram a “consciência” dos grupos subordinados, uma vez que tanto o pesquisador quanto os movimentos sociais teriam dificuldade de verdadeiramente desafiar a ideologia hegemônica.
Para dar cabo do problema, resolve-lo Spivak recomenda um restrito uso “estratégico” da noção de consciência, sabendo de sua artificialidade e transitoriedade que, não obstante, pode provocar uma percepção crítica proveitosa. No campo político, paralelamente, pode-se recorrer a um “essencialismo estratégico” que leve em conta o caráter provisório das identificações, único modo de se limitar os perigos da adoção de um discurso representativo, vertretung e darstellung.
O intelectual pode ser engajado, envolver-se nas lutas, afinal é o engajamento que dá sentido à liberdade, como disse Merleau – Ponty, existe hoje uma ausência de interpretações das contradições do presente, e a despolitização e o imediatismo nos conduzem a substituição do intelectual pelo “especialista, técnico, competente”, deste modo a classe hegemônica atinge seu objetivo de calar o subalterno, uma vez que esse não sente-se muitas vezes empoderado e capaz de falar por si mesmo, e o intelectual engajado tornou-se uma figura em extinção.
Spivak abre um grande leque para a reflexão, análise, prática do intelectual que desejar estudar grupos marginalizados, realiza um esforço significativo de autorreflexão sobre o seu lugar de fala. Tenho algumas ressalvas quanto ao intelectual representar o subalterno sem que este intelectual tenha sido um subalterno anteriormente, é possível questionar se o sujeito subalterno não possui formas distintas de autorrepresentação, que ao meu ver em vários momentos não irão corresponder às expectativas dos intelectuais, que almejam uma ação coordenada e política específica, deste modo, acredito que as várias manifestações culturais populares, a criação e surgimento de coletivos, iniciativas verdadeiramente endógenas, são uma autêntica voz subalterna, representativa de toda a realidade da vida dos sujeitos, e representatividade importa.
Representatividade, legitimidade e autonomia, são, ao meu ver, primordiais, no exercício da cidadania e no lugar de fala, o valor da representatividade pode ser mensurado pela quantidade e pela qualidade da informação e da interlocução regular com os representados, pela condução das ideias, opiniões, vontades e interesses dos mesmos representados, pela intervenção na resolução de problemas e conflitos relacionados com o grupo que representa, pela representação e participação institucional que realiza, e pelas lutas, propostas reivindicativas e negociações coletivas que desenvolve.
Legitimidade liga-se à ideia de autêntico, genuíno, válido, legítimo, deste modo, não pode ser substituída. Autonomia refere-se à faculdade de conduzir-se a si mesmo. Liga-se à ideia de liberdade ou independência moral e intelectual, bem como à capacidade de autogoverno, auto-organização e autodeterminação. Autonomia pressupõe independência e desvinculação.
Empoderar significa promover a conscientização e a tomada de poder de influência de uma pessoa ou grupo, é dar a alguém ou a um grupo o poder de decisão em vez de tutelá-lo, promovendo conscientização, por meio de educação comunitária, palestras e produção de conteúdo. O objetivo é dar instrumentos necessários para que esse grupo reivindique políticas públicas que beneficiem ou diminuam suas dificuldades específicas e não falar por eles.
Inversamente ao que acreditavam Foucault e Deleuze, o intelectual não só pode, como deve, representar o subalterno, de acordo com Spivak. Todavia, nesse percurso, ele deve ficar atento para não calar o subalterno, e sim ser um veículo, um meio, um portador, para que este possa falar e ser ouvido. Não há, assim, autorrepresentação. Da mesma forma, o subalterno não deve configurar apenas um “objeto” a ser revelado ou conhecido pelo intelectual que deseja falar pelo outro.
De acordo com Spivak, o trabalho de Gramsci sobre as classes subalternas, amplia o argumento de posição de classe/ consciência de classe encontrado no 18 Brumário de Luiz Bonaparte, talvez pelo fato de Gramsci criticar a posição vanguardista do intelectual leninista, ele se preocupe com o papel do intelectual no movimento cultural e político do subalterno no âmbito da hegemonia (intelectual orgânico). Esse passo deve ser dado para determinar a produção da história como uma narrativa da verdade.
Ao concluir o texto, Spivak empenha-se a ilustrar as questões que permeiam o cerne das relações de agenciamento dos sujeitos subalternos de uma realidade periférica em um contexto global, e exemplifica com a menção ao sacrifício das viúvas indianas, e fala sobre o suicídio da jovem Bhuvaneswari Bhaduri. Esta ocorrência na vida das mulheres indianas, o suicídio através do sacrifício de viúvas, desvelaria dois pontos categóricos: a violência epistêmica encravada no posicionamento do Império Britânico ao tornar a prática fora da lei, que terminou por ser um discurso “homem branco salva mulheres de pele escura de homens de pele escura”, desconsiderando de forma vil a identidade cultural hindu. O segundo ponto concerne ao papel inferior da mulher numa cultura extremamente patriarcal.
Entre o patriarcado e o imperialismo, a constituição do sujeito e a formação do objeto, a figura da mulher desaparece, não em um vazio imaculado, mas em um violento arremesso que é a figuração deslocada da “mulher do Terceiro Mundo”, encurralada entre a tradição e a modernização. (:157)
O suicídio Bhuvaneswari Bhaduri, no ano de 1926, por enforcamento, trouxe a baila uma série de questionamentos e dúvidas, a jovem estava em seu período menstrual, o que descartava a hipótese de uma gravidez ilícita/ ilegítima, Spivak pesquisou em muitas fontes e terminou por descobrir que Bhaduri era membro de um grupo armado secreto que lutava pela independência da Índia, e lhe foi dada a ordem de cometer um assassinato político, como sentiu-se incapaz de cumprir tal ordem, a jovem viu-se sem saída, não podendo voltar atrás e envergonhando-se não cumprindo a ordem terminou por dar fim a própria vida
Cometer o suicídio durante o período menstrual simbolizou uma tentativa da jovem de ir contra os costumes de sua cultura, contra o papel da mulher subalterna indiana, assim analisa Spivak. O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à “mulher” como um item respeitoso nas listas de prioridades globais. A representação não definhou. A mulher intelectual como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar com um floreio. Cabe concluir com a afirmação de Spivak acerca da ambiguidade da posição da elite colonial nativa, revelada na romantização nacionalista da pureza , força e amor dessas mulheres que se sacrificam.