Mercadores e Banqueiros da Idade Média (Jacques Le Goff)
Jacques Le Goff nasceu em Toulon (França), em 1924. É considerado um dos mais importantes e influentes historiadores franceses das últimas décadas e, independente do seu trabalho mais específico como medievalista e da sua contribuição para a historiografia como um todo, é quase sempre associado automaticamente a Nouvelle Histoire – um movimento de historiadores franceses que muitos historiógrafos consideram como constituído por uma terceira geração da célebre Escola dos Annales.
Em Mercadores e Banqueiros da Idade Média (1956) são mostrados os negociatores, os mercatores. Homens de negócios, como se diz, expressão que exprime a extensão e a complexidade de seus interesses: comércio propriamente dito, operações financeiras de todos os tipos, especulação, investimentos imobiliários e prediais. Contenta-se em evocar, para nomeá-los, os dois pólos de sua atividade: o comércio e o banco.
Ao optar por uma exposição sistemática - sempre procurando os vínculos entre as diferentes atitudes de um mesmo homem -, se considerou o mercador-banqueiro primeiro em seu gabinete ou no mercado - isto é, em sua atividade profissional -, depois em face do nobre, do operário, da cidade, do estado - isto é, em seu papel social e político - em seguida, diante da Igreja e de sua consciência - ou seja, em sua atitude religiosa e moral - e, por fim, perante o ensino, a arte, a civilização - vale dizer, em seu papel cultural.
Deve-se ressaltar que, por ser um livro com a principal finalidade de descrever a profissão dos mercadores e banqueiros na idade média, não aborda problematizações a respeito de tais descrições, muito menos faz um paralelo com a atualidade. Assim, é uma leitura muito melhor aproveitada por quem tem curiosidade a respeito do assunto, do que por quem busca respostas a problemas atuais relacionados ao âmbito comercial.
Capítulo 1
Em seu primeiro capítulo o livro traz como ponto central a revolução do comércio e o renascimento das cidades. Fatores como o fim dos combates, a segurança, o começo das trocas pacíficas, a melhora da alimentação e da subsistência e o surto demográfico possibilitaram a transformação da sociedade e a formação das bases para um novo sistema com um novo personagem principal: o mercador itinerante.
Tais mercadores trabalhavam transportando e vendendo mercadorias através de rotas terrestres, vias fluviais e vias marítimas. O transporte terrestre era geralmente feito por animais de carga e costumava ser mais oneroso por causa dos obstáculos terrestres (montanhas), ineficiência do transporte, falta de segurança das estradas, taxas altas e outros. Esses contratempos tornavam o exercício da atividade comercial inviável. Uma alternativa a este problema foi o transporte fluvial. Ao utilizar os rios para transportar mercadorias, os mercadores evitavam assaltos e taxas, assim a atividade se tornou mais lucrativa. Entretanto, nenhuma modalidade de transporte foi tão eficiente e obteve tanto destaque quanto a via marítima que, apesar dos riscos de naufrágio, da pirataria e da fraca capacidade de armazenamento dos navios, proporcionou a produção e difusão de inventos que auxiliassem na navegação, como a bússola, o leme de cadaste, a cartografia, etc. Com as novas invenções, a navegação se tornou mais rápida, segura e barata, o que aumentou os lucros das vendas. Além disso, permitiu o desenvolvimento de várias cidades, formando entrepostos comerciais.
Outro aspecto importante da profissão dos mercadores são as feiras. No princípio, eram constituídos de acampamentos provisórios nas praças ou fora das cidades, depois foram se tornando permanentes e contribuíram para o desenvolvimento das regiões e para a sedimentação do comércio. Porém, no início do século XIV, as feiras entraram em declínio, devido à insegurança trazida pela Guerra dos Cem Anos, dentre outros motivos. Surge, então, uma organização mais complexa e a figura do mercador sedentário.
O trabalho desse mercador é marcado por contratos e associações, ele dirigirá uma rede de associados ou empregados que farão os transportes em seu lugar. As associações lhe permitiram aumentar o ritmo e o alcance dos seus negócios, partilhando de riscos e lucros. O contrato mais popular era o de “commenda”, em que o comanditário avança o capital necessário para uma viagem a um mercador itinerante. Se há perda, o que empresta suporta todo o peso financeiro, perdendo o que pediu emprestado apenas o valor de seu trabalho. Se há ganho, o emprestador é reembolsado e recebe parte dos lucros. Este contrato era acordado geralmente para uma viagem e podia trazer especificações quanto ao destino do empreendimento, sua natureza e em qual moeda seriam pagos os lucros.
Ponto que merece destaque é o poder político que adquiriram os mercadores sedentários. Os comerciantes enriquecidos passaram a emprestar aos soberanos, assim, aumentando sua participação estatal. Isso lhes gerava certos privilégios, como a legislação comercial da época, que beneficiava somente aos mercadores. Diferente, por exemplo, da legislação atual, uma vez que o Código de Defesa do Consumidor exerce papel fundamental na proteção ao consumidor, parte geralmente considerada hipossuficiente da relação comercial.
Por fim, ressalta-se que os séculos XIV e XV foram de progressos significativos. Leva-se em consideração a importância dos mercadores para o desenvolvimento das cidades, além das contribuições com técnicas e inventos surgidos da prática mercante.
O autor termina o capítulo primeiro propondo uma indagação: o mercador medieval foi um capitalista? Como o sistema econômico e social da época foi o feudalismo, seria mais correto classificar o mercador como um pré-capitalista, é ele quem, através da concentração dos meios de produção e da transformação dos camponeses em assalariados, dá origem à acumulação primitiva do capital. Sendo assim, afirma-se que o mercador-banqueiro tem um espírito capitalista pela sua mentalidade, estilo de vida e lugar que ocupa em sociedade.
Capítulo 2 –
No segundo capítulo, o autor explica o papel social e político do mercador, que ascende no quadro urbano, em consequência do desenvolvimento das cidades e de seu poderio econômico. Chegou a estes resultados através das relações complexas com outras classes sociais: nobreza, artesãos, camponeses e a Igreja.
Em relação aos nobres, houve luta de uma camada nova de mercadores contra a antiga, com a vitória da burguesia de negócios sobre a nobreza fundiária. Chegou ao ponto em que os nobres, devido ao declínio da economia rural do tipo feudal, se fundiram com a nova classe comerciante, por vezes entregando-se aos negócios, ou fornecendo capital. De repente era difícil distinguir entre a aristocracia quem eram os antigos feudais e quem os novos ricos. Assim, também a classe mercadora buscou sua evolução social, desassociando-se das camadas populares e indo se aliar com a nobreza, pelas vias do casamento ou por meio da compra de terras e inserção social no meio dos nobres. De fato, não houve antagonismo profundo entre o mercador e o nobre, salvo durante o curto período de luta violenta contra os constrangimentos feudais da Alta Idade Média.
Em muitas cidades, todavia, os mercadores continuavam a fazer parte do povo, mas é errôneo considera-los como uma classe única, já que os ricos e os banqueiros formavam uma categoria à parte, que dominou por muito tempo. Havia ainda uma contradição visível entre mercadores e artesãos, classes antagônicas que representavam, de um lado, o futuro, a modernização das relações comerciais, o aumento do mercado e, de outro, o tradicional meio medieval de produção, restrito a um bairro ou uma cidade. Estes dois mundos estavam igualmente organizados sobre a dupla base das leis morais da Igreja e das leis jurídicas da cidade e das ‘artes’. Mas havia também um mundo onde estes dois se encontravam: o das corporações. Porém, a relação de dominação dos mercadores sobre artesãos era evidente e muito maior quando se tratavam de operários. Os meios de pressão e opressão dos primeiros sobre estas categorias eram múltiplos e poderosos. Contudo, as reações eram por vezes violentas. Às greves e aos motins sucederam-se verdadeiras revoluções que fizeram do século XIV repleto de crises sociais, cujo aspecto essencial reside na revolta dos artesãos e trabalhadores explorados contra o grande mercador. Nestes casos, os revoltosos esbarravam em seu poderio político, advindo do êxito comercial e da fortuna.
Se, por um lado, os contatos dos mercadores com os camponeses foram menos estreitos que com as outras classes sociais, foram, contudo, mais numerosos e mais importantes do que se imagina. Primeiro, os mercadores nas áreas urbanas ajudaram a emancipar os camponeses dos nobres senhores feudais, porque ofereciam outras oportunidades na cidade. Mas não seria correto pensar que promoveram essas melhorias no campo e na cidade senão para lucrar com isso. Os camponeses passaram a ter outras obrigações (mudaram de senhor), e os lucros ficavam nas mãos dos mercadores. Nos campos de Messina, segundo J.Schneider, os camponeses das propriedades pertencentes à burguesia ganharam a liberdade pessoal à custa da sujeição econômica. Ao mesmo tempo, sobretudo na indústria têxtil, os mercadores começaram a procurar nos campos mão de obra barata.
Assim, baseada no dinheiro, na rede dos negócios e no poder político que detém nas cidades, a burguesia mercadora constituiu, na Idade Média, uma verdadeira classe que a dominação política dos homens de negócios estabeleceu. Apesar da opinião controversa de historiadores, não pode deixar de chamar-se patriciado, uma classe social cujos contornos não receberam uma confirmação jurídica. O apogeu desse patriciado se situa no século XIII, visto que, nos séculos seguintes, as crises econômicas e a evolução social e política virá limitar a onipotência dos patrícios. Embora os movimentos revolucionários urbanos não tenham passado de breves chamas, a classe média dos artesãos, por vezes, chegou a partilhar com os mercadores o poder político nas cidades.
Todavia, houveram muitos momentos francamente revolucionários e “democráticos”, em que alguns desses grandes mercadores, elementos do patriciado, desempenharam papel relevante. Foi o interesse que, muitas vezes, colocou estes ricos do lado dos pobres. Mas, em muitos casos, esses ‘democratas’, conscientes do egoísmo e dos injustos privilégios de que gozavam os patrícios de sua classe, não fizeram senão seguir a voz da consciência e da inteligência.
Capítulo 3 –
O capítulo três fala sobre o papel moral e religioso do mercador e sua relação com a Igreja. Afirma-se frequentemente que a classe mercante era rechaçada pela cristandade. De fato, encontram-se diversas referências a esse tipo de condenação em textos medievais. S. Tomás de Aquino dizia que “o comércio, considerado em si mesmo, tem um certo caráter vergonhoso”. Os motivos dessa condenação estavam diretamente ligados à questão do lucro, característico da profissão do mercador e que ia contra os valores da igreja. Inevitavelmente, os mercadores eram acusados de cometer um dos pecados capitais, a avareza, ou seja, a cobiça, devido ao objetivo que se propõem a alcançar, o lucro e a riqueza. Quando confrontados com a luta dos cristãos com os infiéis, muitas vezes os mercadores tomavam o partido destes, isto porque as relações de comércio que tinham com povos de outras culturas e religiões era mais importante e poderosa do que sua relação pessoal e moral com a religião.
Contudo, o livro afirma que as noções teóricas sobre a relação da Igreja com os mercadores era diferente do que acontecia na prática. Em verdade, a Igreja protegeu a classe mercante diversas vezes. Pode-se ver, igualmente, os mercadores serem considerados como bons cristãos e, longe de serem afastados, ao contrário, serem acolhidos pela comunidade cristã. Na maior parte das vezes, a Igreja fechava os olhos para as transgressões, tanto que os mercadores e banqueiros encontraram modos de ladear as interdições eclesiásticas, disfarçando a usura e camuflando o juro. A noção de utilidade e de necessidade dos mercadores foi o que veio coroar a evolução da doutrina da Igreja e lhes valeu o direito definitivo à cidadania na sociedade cristã medieval.
Capítulo 4 –
No capítulo quarto o autor evoca o papel cultural que a atividade mercantil teve durante a idade média, quando se acreditava que apenas a igreja detinha esse papel. Destaca a revolução comercial e o desenvolvimento urbano como marcos da laicização da cultura. Foi graças ao capital, à necessidade de conhecimentos técnicos e à mentalidade racional do mercador que houve esta mudança de perspectiva sobre a religião e a laicidade.
A influência da classe mercantil no ensino é apontada em quatro domínios: escrita, cálculo, geografia e línguas.
Desde as civilizações antigas, a escrita está associada às necessidades de registro das atividades mercantis. A produção de memória e provas escritas, registros, listas e agendas fez parte da revolução comercial, que tornou a escrita mais clara e objetiva, útil e corrente nas escolas primárias.
Os instrumentos de calcular também foram desenvolvidos nesta época. O ábaco, o tabuleiro e os manuais de aritmética tiveram importância singular para a ciência da matemática. Os mapas cartográficos, tratados científicos, narrativas de viagem revolucionaram a geografia e o comércio internacional. Também o conhecimento das línguas, aspectos culturais e história dos principais portos e países facilitaram o intercâmbio cultural e as relações mercantis. Foram essas técnicas e conhecimentos que permitiram, v.g., Colombo partir em uma jornada arriscada e audaciosa que o levou a conhecer as Américas.
De fato, a influência dos mercadores no ensino se deu por sua necessidade e foi de enorme importância, mas não se estendeu a todas as classes sociais. A impossibilidade de ministrar uma formação técnica nas escolas religiosas fez com que mercadores recorressem à educação particular para seus filhos, o que restringia a profissão às mesmas famílias que já eram de mercantes e comerciantes.
Além do ensino, a influência dos mercadores se estende à literatura e à arte. Através do mecenato, mercadores adquiriam obras de arte como forma de investimento, o que acabou por contribuir, obviamente, para a produção artística da época, trazendo à tona obras e artistas consagrados até hoje. Jacque faz uma ressalva aos motivos políticos e sociais que levavam mercadores a investir nestes setores. Constituía uma manifestação de riqueza e de posição social comprar obras e contratar artistas, mas principalmente, era um modo de controlar meios de influência sobre o povo, uma forma de dar-lhes diversão através de panfletos, folhetos e peças teatrais, para que se interessassem menos pela política. Isso nos faz refletir, por exemplo, em como, na nossa conjuntura atual, o povo é tão dissociado da política e os banqueiros e empresários têm muito mais contato com ela. Mas este não é um ponto abordado no livro.
É claro que os mercadores e a igreja exerciam poder sobre os artistas, porém estes também tinham sua independência e, vez ou outra, encontravam meios de exprimir em suas obras suas próprias ideias e não somente as de seus patrões. Jacque ressalta que a sociologia da arte é um campo complexo e ainda muito controverso.
Outro dos motivos pelos quais mercadores investiam na arte era a valorização de suas cidades. Patriotismo esse que era também interesseiro, visto que suas cidades eram os centros de seu comércio, assim, quanto mais valorizadas, melhor para aqueles que viviam de sua imagem. Mas o patriotismo nem sempre prevaleceu quando o assunto era questão de guerra. Muitos mercadores recusavam-se a ser soldados. A extensão de seus negócios não lhes permitia perder tempo na guerra, assim, passaram a recorrer a mercenários e o mercador tornou-se um civil. É aqui que o autor termina sua obra, falando do amor que os mercenários sentiam por seus centros urbanos, amor esse que nunca foi completamente transferido para a pátria unificada quando surgiram os Estados.
O livro termina sem conclusões. Não é de fácil leitura pela quantidade de nomes, dados e datas que expõe. Mas é interessante como uma viagem no tempo.