─ Porque usais essa corda de linho presa á vossa túnica? ─ Perguntou o inquisidor Guilherme de Paris a Gerárd de Beauvais, preceptor da província templária do mesmo nome.
─ Porque é costume da Ordem, Eminência. Todos os monges a recebem por ocasião de suas recepções na Irmandade. Ela nos protege e nos guarda ─ respondeu ele.
─ De que forma ela vos protege e guarda?─ quis saber o inquisidor.
─ Ela é benzida e consagrada ─ respondeu o preceptor.
─ Por quem ela é benzida e consagrada? ─ perguntou o inquisidor, que já entrevia onde aquilo ia chegar.
─ Pela cabeça Dele ─ respondeu Gérard Beauvais.
─ Ele, quem?
─O nosso Mestre Salvador.
─ Podeis nos dizer quem e como ele é, esse vosso Salvador?
─Não sei ao certo, Eminência, pois só o vi uma vez, numa reunião do capítulo. Mas era uma espécie de cabeça barbada, que parecia com a de um homem vivo.
─ Onde e quando a vistes?
– Vi essa cabeça no Capítulo de Montpellier, dirigido pelo ir-
mão Peyráuld – disse o preceptor de Beauvais. Todos os frequentadores do capítulo a adoravam. Eu também o fiz, mas falsamente e não com o coração...
– Como se parecia? – perguntou o inquisidor.
– Parecia uma cabeça humana, um rosto com uma grande barba negra.
– Como era esse rosto?
– Terrível! Parecia que estava viva. A cada vez que olhava para ela eu era invadido por um extremo terror...
– E porque a adorou?
– Tinhamos feito coisa pior negando Cristo. Adorar aquela cabeça parecia ser pecado menor. Mas nunca a adorei com firmeza de coração...
Uma das acusações mais graves lançadas contra os templá-rios foi a de idolatria. Há muito já se falava que os membros da Ordem, em seus rituais, eram obrigados a adorar um estranho ídolo que alguns descreviam como sendo uma cabeça barbada, que usava uma espécie de turbante, á moda dos antigos rabinos judeus. Alguns diziam que ela se apresentava olhando para três direções e segundo algumas informações, possuia propriedades mágicas. Além de outros poderes, essa cabeça teria o condão de garantir, para aqueles que a adorassem, a salvação de suas almas, a segurança nas batalhas e também infinitas riquezas. Além disso, podia fazer as árvores florescerem e a terra germinar.
Coincidentemente, a primeira vez que esse assunto apareceu no processo foi durante o interrogatório de Hugues de Peyráuld.
– Consta que em algumas cerimônias rituais praticadas nos capítulos mais avançados de vossa Ordem era solicitado aos participantes que adorassem um ídolo na forma de uma cabeça humana. Como era esse ídolo e como faziam para adorá-lo? ─ perguntou o inquisidor.
– Existia, sim, uma cabeça – respondeu Peyráuld. – Eu a vi em Montpellier, quando participei de uma reunião naquela preceptoria. Fiz-lhe as reverências pedidas, assim como todos os irmãos presentes. Não as fiz de coração, mas apenas com as palavras do ritual.
─ Que palavras eram essas? ─ perguntou o inquisidor.
─ Eram palavras em uma língua estranha, que eu não conhe-cia ─ respondeu Peyráuld. ─ Apenas as repeti sem entender.
– E como era esse ídolo?
– Era semelhante a uma cabeça humana. Tinha uma barba negra. Parecia estar viva e seus olhos nos acompanhavam po toda parte.
Evidentemente, Hugues de Peyráuld mentira a esse respeito. Pois em quase todos os depoimentos dos monges que se referiram ao estranho ídolo, consta o seu nome como sendo um dos presentes nas cerimônias onde ele era apresentado.
“Peyráuld”, disseram eles, era o guardião dessa “relíquia”, que segundo alguns irmãos era o maior tesouro templário, pois era dele que vinham todas as riquezas do Templo.
Jacques de Molay e os outros dois altos dignatários do Tem-plo, Geoffroy de Charney e Geoffroy de Gonneville, pergun-tados sobre a tal cabeça, disseram nunca a ter visto. Informaram que só haviam ouvido falar dela através de uma menção que o papa Clemente V havia feito certa vez, de que em alguns capí-tulos da Ordem estaria havendo um culto idólatra. Mas fora disso, alegaram nada saber e acreditavam tratar-se de uma maledicência dos inimigos da Ordem.
Eles também mentiram a esse respeito. Jacques de Molay e Charney, especialmente, sabiam muito bem do que se tratava. No chamado Circulo Superior Interno, grupo de altos dignatários do Templo, Baphomet ─ o Rosto Sagrado ─ era bem conhecido e todos sabiam de quem era e o que era aquela sagrada relíquia que lhe era apresentada na intimidade dos capítulos. Essa era a principal precupações do grão- mestre depois que foi preso.
Jacques de Molay lembrava-se bem, que num dos conclaves em que todos os altos dignatários do Templo estavam reunidos, ele alertara os irmãos a respeito das maledicências que estavam sendo assacadas contra a Ordem. Elas se referiam a certos comportamentos estranhos, que estariam sendo praticados em algumas preceptorias, quando da recepção de novos membros. Coincidência ou não, eram principalmente das preceptorias francesas que vinham tais informações, pelo que coube ao inspetor ─ visitador da Ordem, Hugues de Peyráuld, vestir a carapuça, quando tais assuntos foram levantados pelo grão – mestre em uma reunião do alto escalão templário.
– A que comportamentos estais se referindo? – indagara ele, já na defensiva.
– Ao modo como os veteranos exigem a submisssão dos noviços, obrigando-os a beijar, de fato, suas partes íntimas. Se tais exigências são feitas – disse de Molay, isso é degradante. Vós bem sabeis a que finalidade se destinam os beijos rituais.
– Ouvi dizer que isso acontece em algumas das nossas recepções – respondeu Peyráuld, com certa displicência. – Mas não vejo motivo para preocupação. Trata-se apenas de uma brincadeira de mau gosto aplicada pelos veteranos contra os noviços. Em todas as instituições há tradições similares que os mais antigos aplicam aos mais novos. Serve para demonstrar aos iniciandos que eles devem obediência absoluta aos seus mestres.
– Pois deveis tomar cuidado com essa, que vós chamais de “brincadeira” – disse de Molay – Lembrai-vos que existe um código de moral em nossa Ordem que nos exorta a manter um comportamento digno nesse sentido. Os beijos de recepção são somente uma simulação, que como sabeis, cumprem uma função ritual.
─ Sabemos disso, irmão grão-mestre, mas não temos como evitar que alguns irmãos mal informados tomem esses rituais como forma de trote para com os noviços ─ respondeu Peyráld.
─ E quanto a prática de sodomia, que dizem exigir dos noviços, o que tendes a dizer? ─ inquiriu de Molay.
Hugues de Peyráuld deu de ombros, como se a questão fosse de somenos importância.
─ Ao que sei, nada além do que ocorre na maioria das Ordens monásticas, onde nem todos os irmãos tem fortaleza de espírito suficiente para resistir aos apelos da carne ─ respondeu o inspetor-visitador.
─ Sabeis que a nossa Ordem exige o voto de castidade para os monges-cavaleiros que recebem o manto branco e se tornam dignos de frequentar os capítulos filosóficos. Isso porque, segundo nossa crença, as relações entre homens e mulher são como obra de porcos e de cães. Somos proibidos de nos juntar a mulheres, para não enfraquecer a fé na santidade de nossa causa. Mas o coito com homens também nos é interdito. Isso é coisa de sodomitas e, como sabeis, sodomia é pecado. Lembrai-vos que somos monges e cavaleiros. Como monges praticamos a castidade e como cavaleiros prestamos o culto ao Sagrado Feminino.
─ É por isso que cultuamos Sofia, a Santa Virgem ─ lembrou o preceptor da Normandia, Geoffroy de Charney.
E á menção de Sofia, a deusa mãe da sabedoria, todos os irmãos ali reunidos se persignaram e rezaram a prece ritual, em louvor à Virgem Maria: “Santa Maria (...) mãe sempre virgem e preciosa, Ó Maria, salvação dos enfermos, consoladora dos que a vós recorrem, triunfadora sobre o mal e refúgio dos pecadores arrependidos, aconselhai-nos e defendei-nos. Defendei a nossa Ordem, fundada por vosso santo e caro confessor, o vosso caro Bernardo (...).
─ E que São João Batista, nosso padroeiro, nos proteja e ilumine ─ completou, por fim, Jacques de Molay.
─ Amém ─ disseram todos.
─ Porque estais a perguntar-me todas essas coisas, se vós estais a par de tudo que acontece em nossas reuniões capitulares ─ indagou Peyráuld, com certo aborrecimento na vóz.
– Porque devemos ter muito cuidado em relação a essas coisas – disse de Molay. – Nós, os altos dignatários do Templo, sabemos o que significam esses simbolismos ritualísticos e para que servem. Mas nem todos os nossos irmãos os compreendem. Por isso eles são mantidos em segredo e somente os mestres do Círculo Interno Superior têm inteiro conhecimento do seu conteúdo e significado. Se esses segredos cairem em mãos profanas, temo que eles venham a ser mal interpretados e nos causem muitos danos.
Sabeis ─ continuou o grão-mestre ─ que o beijo ritual se destina a transmitir ao novo irmão a energia que percorre o plano astral e se aloja na base da nossa medula espinhal. É um sacro mistério que aqui se invoca e não deve ser usado como motivo para a prática da promiscuidade. E a negação do Cristo como filho de Deus e sua aceitação como príncipe do nosso reino Kadosh é uma prova de firmeza e fé que serve para identificar quem realmente é digno de fazer parte dos nossos sagrados mistérios.
─ Compreendo vossa preocupação, irmão grão-mestre. Mas como sabeis, a compreensão desses mistérios não faz parte dos ensinamentos dados aos cavaleiros iniciantes, nem aos que não fazem parte do Círculo Superior. Por isso alguns levam na brincadeira, achando que se trata de um deboche que deve ser aplicado aos noviços ─ disse Hugues de Peyráuld.
Jacques de Molay franziu a testa em sinal de preocupação. Ele não podia deixar de reconhecer que o inspetor-visitador tinha razão. Como aqueles homens iletrados e ignorantes, que constituiam a maioria dos cavaleiros templários, iriam entender a sutileza de tais concepções? Ele mesmo era analfabeto e mal as entendia...
De certo que ele sabia para o que servia aquela tradição que havia sido implantada na Ordem, que obrigava o noviço a negar Cristo por três vezes e cuspir na cruz. Ele mesmo fora incitado a fazer aquilo por ocasião de sua iniciação. Tal procedimento se afigurara como uma monstruosidade ritual aos seus olhos e ele se recusara a fazê-lo. Como ─ pensara ele ─ uma Ordem que se propunha a defender a fé cristã ordenava a seus iniciados que renegassem o seu próprio Senhor? Como um cavaleiro que era convidado a tomar a cruz, poderia ofendê-la daquele modo, cuspindo nela? Jacques de Molay se recusara a cumprir aquele estranho e maligno ritual. Por isso sofrera tortura, execração e todo tipo de molestação por parte dos veteranos. Mas ele permanera firme na sua fé e na sua convicção, e depois que os mestres viram que a sua postura era firme, tudo mudara. Ele fora informado sobre a razão daquele estranho ritual e concordara com a sua intenção. Subiu rapidamente na hierarquia da Ordem. Em menos de vinte anos tornara-se grão-mestre.
─ Foi o Irmão Robert de Creon, quando era preceptor da Provença que iniciou essa prática ─ lembrou Peyráuld. ─ Ele a fez para que ela funcionasse como uma espécie de prova de coragem e firmeza. Como sabeis, muitos dos nossos irmãos foram capturados pelos sarracenos durante as batalhas na Terra Santa. E quando submetidos á tortura, a eles era pedido que renegassem Cristo e cuspissem na cruz. Muitos se negavam a isso, preferindo morrer a abjurar nossas crenças. Mas houve irmãos que não tinham essa fortaleza de espírito e o fizeram, para ter suas vidas poupadas. O Irmão Robert então instituiu esse ritual para verificar quem, entre os noviços, seria capaz de mostrar tal fortaleza de espírito, se um dia se visse numa situação dessas – lembrou Peyráuld.
– É como eu a entendo ─ disse de Molay. É uma prova de fortaleza e firmeza na fé. Pois se o noviço consentir em fazê-lo, de coração, só por causa dos castigos que lhes aplicam os veteranos, quanto mais facilmente não o fará se submetidos a verdadeiras torturas pelo inimigo?
─ Pois é ─ disse Peyráuld. ─ Mas como os irmãos de menor grau não entendem o significado desse ritual, acham que tudo não passa de uma brincadeira que deve ser aplicada aos novições. E acabam exagerando.
─ Essas “brincadeiras”, como o irmão Peyráuld as chama ─ disse de Molay ─ poderão trazer complicações para a Ordem. Peço ao irmão-visitador que instrua todas as preceptorias da Europa sobre o assunto e que as suprima, daqui por diante. Como sabeis, a Ordem tem inimigos que só estão esperando que cometamos alguns deslizes para atacá-la. Peço também a todos os preceptores aqui reunidos que tomem muito cuidado em relação a esses assuntos.
─ E quanto ao culto á Sagrada Cabeça? Desejais também aboli-lo? ─ peuguntou Peyráuld.
─ Não, isso não ─ disse de Molay. ─ Ele é o que há de mais belo e importante em nossa liturgia.
─ Há quem diga que se trata de um culto demoníaco ─ disse Peyráuld. Que a Sagrada Cabeça é a representação do demônio.
─ Também dizem que é a cabeça de São João Batista, o mestre que batizou e instruiu o Senhor Jesus. E igualmente que ela é o símbolo da Sabedoria, que os sábios muçulmanos chamam de Abhulaphia, o Pai da Compreensão, a Cabeça da Sabedoria; ou então a Inteligência Suprema, como o chamam os nossos monges que estudam essa sagrada ciência dos judeus, chamada Cabala...
─ Muitos dizem que se trata da cabeça do fundador da nossa Ordem, Hugues de Payns ─ observou Geoffroy de Gonneville, preceptor de Aquitânia.
─ E outros, que se trata da cabeça de Santa Úrsula, a rainha das Dez Mil Virgens─ disse Willian de La More, Grão-Mestre do Templo inglês.
O semblante de Jacques de Molay relaxou, com a menção de todas essas informações. Nem mesmo entre os irmãos da Ordem o estranho culto tinha um consenso. Era isso mesmo o que os altos dignatários do Templo pretendiam. Que esse segredo se diluísse em mitos e estórias de conteúdo difuso e extraordinários, pois essa era a melhor forma de ocultá-lo aos olhos profanos.
Que apenas ele e um círculo bem restrito de mestres do alto escalão soubessem o verdadeiro significado daquela relíquia. Por isso, semanas antes da sua prisão ele tivera uma conferência secreta com o preceptor da Normandia, seu fiel companheiro Geoffroy de Charney.
─ Guardastes bem a nossa relíquia sagrada? ─ perguntou de Molay á Charney.
─ Sim, irmão grão ─ mestre. Está bem guardada com a minha família, em Lirey ─ disse o preceptor da Normandia.
─ Graças a Deus ─ murmurou o grão ─ mestre. ─ Tremo só em pensar que ela caia em mãos estranhas.
─ Podeis ficar tranquilo a esse respeito ─ respondeu Charney. Eu sei da importância de mantê-la oculta e bem guardada.
─ Sim, meu irmão ─ disse de Molay. ─ O mundo não está preparado para uma revelação desse tipo. Sabeis quanta boba-gem se fala a esse respeito.
─ É verdade, meu irmão ─ respondeu Charney, com um simulacro de sorriso. ─ Dizem até que nós somos adoradores de Maomé.
─ Ou adoradores de Satã ─ respondeu de Molay, com um suspiro.
─ Tudo isso é fruto da imaginação desse povo ─ disse Charney. ─ Afinal, os franceses são um povo muito supersticio-so. Adotamos o cristianismo, mas continuamos fieís ás nossas raízes pagãs, herdadas dos druídas.
─ Não tenho muita sabedoria nessas coisas, irmão Charney, mas acho que tendes razão. Somos mesmo muito supersticiosos. Vede, por exemplo, essa história de que é possível matar um inimigo, fazendo dele uma imagem de cera e espetando-lhe um punhal ─ disse de Molay, com um sorriso.
─ Ou colocando o nome dele na boca de um sapo, que depois é costurada. Quando o sapo morrer de fome, o desafeto também morrerá.
─ Pois é. Bruxaria, feitiçaria, magia negra. Dizem que nós somos mestres nessas artes satânicas ─ disse Charney, balan-çando negativamente a cabeça, com um sorriso entre zombeteiro e triste.
─ Se eles soubessem qual é o nosso verdadeiro segredo...─ suspirou o preceptor da Normandia.
─ Eles jamais entenderiam ─ respondeu de Molay.─ Por isso, para eles a Divina Cabeça deverá ser sempre e apenas uma relíquia misteriosa, uma lenda. Nunca poderão saber a verdade sobre ela.
─ Dói-me, entretanto, que pensem que adoramos ídolos, ou que praticamos rituais satânicos e que estamos contaminados de heresia e promiscuidade ─ disse Charney.
─ Á mim também, meu irmão ─ disse de Molay. ─ Mas o que aconteceria se soubessem que nós possuímos a única relíquia verdadeira do nosso Senhor Jesus e que ela é a prova de que ele não era um Deus, mas um homem que morreu e foi sepultado como toda pessoa comum?
─ Isso nós nunca podemos revelar, irmão ─ respondeu Charney. Mas me preocupa o ritual que foi introduzido na nossa Ordem pelo irmão Robert. Acho que não precisávamos fazer tais coisas para ensinar aos noviços os fundamentos das nossas crenças.
─ Quanto a isso vós tendes razão, meu irmão ─ reconheceu de Molay. Mas essas coisas só são praticadas na França, e com mais frequência nas preceptorias occitanas, que como o irmão sabe, ainda não se esqueceram das doutrinas dos Irmãos da Luz.
─ Pois é, irmão. É disso que tenho medo. Os Irmãos da Luz estavam certos naquilo que eles pensavam e faziam. E por isso foram dizimados. O mundo não está preparado para saber a verdade sobre o Nosso Senhor. Por isso eu temo também por nós ─ completou de Molay.
─ O que o irmão grão-mestre sugere que façamos com as nossas sagradas relíquias e os nossos documentos secretos? ─ perguntou Charney.
─ Mandai ocultar a Sagrada Cabeça em lugar onde ninguém possa descobri-la. Doravante só mostraremos as réplicas, que como sabeis mistificam bastante a verdade ─ respondeu de Molay. ─ E quanto aos documentos, providenciai para que sejam todos queimados.
─ Isso já foi feito. O Irmão de Villiers levou junto com o tesouro do Templo todos os documentos que continham alguma informação sobre os nossos segredos. Quanto a isso podeis ficar tranquilo, irmão grão-mestre ─ disse Charney.
─ Tranquilos jamais ficaremos irmão, pois sempre haverá alguns dos nossos que poderá fazer alguma inconfidência a respeito dessas coisas ─ disse de Molay.
─ É verdade. Mas nós sempre soubemos despitar o verda-deiro significado do culto á Sagrada Cabeça. E nunca dissemos a ninguém, fora do Círculo Superior, que ela era a cabeça do nosso Senhor. Sempre haverá uma dúvida a respeito de a quem per-tenceu aquele crânio ─ respondeu Charney.
─ Isso é certo. Até mesmo entre os nossos irmãos dos capitulos isso gera controvérsias. Por isso, acho que seria mais seguro sepultá-la em uma tumba comum, em algum lugar na Arcádia, onde muitos dos nossos irmãos estão sepultados. Assim ninguém jamais descobrirá o nosso segredo ─ sugeriu de Molay.
─ Mas assim também nós acabaríamos enterrando para sempre esse segredo ─ objetou Charney.
─ Mandai marcar a tumba com a inscrição “Et in Arcádia Ego”. Assim, somente nós teremos a chave desse segredo. Se um dia houver condições para revelá-lo, então...
Durante o inquérito foram feitas á todos os templários per-guntas sobre a misteriosa cabeça. Os depoimentos colhidos não permitiram esclarecer muita coisa. Nenhum dos depoentes soube dar uma descrição exata do tal ídolo, o que levou os inquisidores a concluir que ele não tinha uma forma definida, ou que cada capítulo da Ordem tinha a sua própria imagem dele. As descri-ções mais consistentes o davam como sendo uma cabeça de três rostos, um olhando para a frente e os dois outros, um para a direita e outro para a esquerda. Em algumas preceptorias apresentava-se aos iniciados uma cabeça barbada, que usava um turbante semelhante aos que os rabinos judeus usavam. Em outras era uma cabeça feita de metal, representando um homem jovem, de barba e cabelos negros. Em outras um crânio comum.
O que significava esse ídolo e quais eram as palavras usadas no ritual, nenhum dos acusados inquiridos soube, ou quis explicar. Em várias das preceptorias invadidas e varejadas pela polícia de Filipe, o Belo, e também nas preceptorias de outros reinos, procurou-se desesperadamente os tais ídolos e rituais escritos, que se encontrados seriam uma prova contundente da heresia templária. Mas nada foi encontrado que pudesse servir de prova irrefutável dessa prática.
Tudo que se referia á tal cabeça era muito contraditório. Um notário público, chamado Antoine Siccus, de Vercellyz, que estivera no oriente a serviço do Templo deu um estranho testemunho a esse respeito. Disse ele que ouvira essa história em Sidon, contada por um monge da Ordem. Ela acontecera na Armênia, onde um cavaleiro templário se apaixonara por uma jovem. E ela por ele. Mas estando ele impedido de possui-la em razão dos seus votos de castidade, e ela de desposá-lo pela mesma razão, a jovem tirou a própria vida. O cavaleiro, enlou-quecido de dor e de paixão, foi, á noite, ao túmulo da jovem e violou o cadáver.
Fez com a jovem morta aquilo que não tivera coragem de fazer enquanto viva. Após terminar o seu infame ato de necro-filia, ouviu uma vóz que dizia: “voltarás daqui a nove meses para ver o resultado do teu ato.” Nove meses depois o cavaleiro voltou ao túmulo da sua amada e lá encontrou uma cabeça humana entre as pernas da jovem e o cadáver na posição e na condição de uma mulher que acabara de dar a luz. E novamente uma vóz se fez ouvir: “guarda bem essa cabeça. Dela lhe virão todas as riquezas futuras.”
Mas outros depoentes, instados a falar sobre o assunto, foram menos delirantes que o inefável notário. Disseram, sem muitas contradicções, que os templários possuiam reliquias, aos quais davam muito valor. Uns diziam que eles tinham uma cruz de madeira, feita com lascas da verdadeira cruz em que Jesus foi crucificado e sobre essa cruz havia uma cabeça esculpida. Outros diziam que um gato de três cabeças costumava ser adorado nas cerimônias dos capitulos mais avançados. Houve quem dissesse que o tal ídolo se tratava de uma pintura, mas a maioria informou que era mesmo uma cabeça barbada. Essa cabeça, diziam, era milagrosa, pois fazia cair chuva quando dela se precisava e afastava pestes quando elas tomavam conta das aldeias. E a cordinha de linho, que eles recebiam para amarrar em volta da cintura era benzida e consagrada em cerimônia perante aquele ídolo. Isso é o que fazia um monge templário ser tão destemido em batalha, porque aquela cordinha o protegia.
Por ocasião da invasão do Castelo do Templo, em Paris, o monge encarregado da guarda e administração dos bens da Ordem foi intimado a apresentar todos os objetos de culto existentes naquele edifício. No auto de apreeensão e guarda que se lavrou do ato, o oficial encarregado escreveu que “os comis-sários mandaram que Guilherme Pidoye e seus companheiros Guilherme de Gisors e Raignier Bordone, apresentassem todas as cabeças em metal ou madeira, encontradas no edifício do Templo”. Os três apresentaram aos comissários uma grande cabeça trabalhada em prata amarela; tinha rosto de mulher e interiormente ossos de um crânio, envolvidos em um pano branco; por cima havia um sudário, feito de tecido fino ou gaze da Síria, de cor avermelhada, cobrindo-a. Havia um número, numa etiqueta, cozida nesse pano: Caput LVIII. Perguntado o que significava aquela cabeça, os ditos templários responderam que se tratava “da cabeça de uma das Onze Mil Virgens que foram sacriicadas pelos bárbaros hunos quando as hordas de Átila passaram por Colônia.” Nada mais foi encontrado na casa do Templo.”
Em outras preceptorias, por toda a Europa e Ultramar, os inquisidores encontraram algumas relíquias que, vagamente, foram associadas á lenda do famoso ídolo templário. Entretanto nunca se chegou a nenhuma conclusão do que era, ou do que significava esse símbolo. Alguns dos cavaleiros inquiridos suge-riram que esse culto tinha se originado nas crenças dos muçul-manos, que veneravam o seu profeta Maomé e por isso, talvez, o nome do tal ídolo. Outros definiram o assunto como “segredo da Ordem”, só conhecido pelos mestres do Círculo Superior Interno. Assim criou-se a lenda do ídolo Baphomet. Poucas vezes na História, um segredo foi tão bem camuflado como esse.
(excerto do capítulo XII do livro- Os Monges Malditos) publicado neste site.
─ Porque é costume da Ordem, Eminência. Todos os monges a recebem por ocasião de suas recepções na Irmandade. Ela nos protege e nos guarda ─ respondeu ele.
─ De que forma ela vos protege e guarda?─ quis saber o inquisidor.
─ Ela é benzida e consagrada ─ respondeu o preceptor.
─ Por quem ela é benzida e consagrada? ─ perguntou o inquisidor, que já entrevia onde aquilo ia chegar.
─ Pela cabeça Dele ─ respondeu Gérard Beauvais.
─ Ele, quem?
─O nosso Mestre Salvador.
─ Podeis nos dizer quem e como ele é, esse vosso Salvador?
─Não sei ao certo, Eminência, pois só o vi uma vez, numa reunião do capítulo. Mas era uma espécie de cabeça barbada, que parecia com a de um homem vivo.
─ Onde e quando a vistes?
– Vi essa cabeça no Capítulo de Montpellier, dirigido pelo ir-
mão Peyráuld – disse o preceptor de Beauvais. Todos os frequentadores do capítulo a adoravam. Eu também o fiz, mas falsamente e não com o coração...
– Como se parecia? – perguntou o inquisidor.
– Parecia uma cabeça humana, um rosto com uma grande barba negra.
– Como era esse rosto?
– Terrível! Parecia que estava viva. A cada vez que olhava para ela eu era invadido por um extremo terror...
– E porque a adorou?
– Tinhamos feito coisa pior negando Cristo. Adorar aquela cabeça parecia ser pecado menor. Mas nunca a adorei com firmeza de coração...
Uma das acusações mais graves lançadas contra os templá-rios foi a de idolatria. Há muito já se falava que os membros da Ordem, em seus rituais, eram obrigados a adorar um estranho ídolo que alguns descreviam como sendo uma cabeça barbada, que usava uma espécie de turbante, á moda dos antigos rabinos judeus. Alguns diziam que ela se apresentava olhando para três direções e segundo algumas informações, possuia propriedades mágicas. Além de outros poderes, essa cabeça teria o condão de garantir, para aqueles que a adorassem, a salvação de suas almas, a segurança nas batalhas e também infinitas riquezas. Além disso, podia fazer as árvores florescerem e a terra germinar.
Coincidentemente, a primeira vez que esse assunto apareceu no processo foi durante o interrogatório de Hugues de Peyráuld.
– Consta que em algumas cerimônias rituais praticadas nos capítulos mais avançados de vossa Ordem era solicitado aos participantes que adorassem um ídolo na forma de uma cabeça humana. Como era esse ídolo e como faziam para adorá-lo? ─ perguntou o inquisidor.
– Existia, sim, uma cabeça – respondeu Peyráuld. – Eu a vi em Montpellier, quando participei de uma reunião naquela preceptoria. Fiz-lhe as reverências pedidas, assim como todos os irmãos presentes. Não as fiz de coração, mas apenas com as palavras do ritual.
─ Que palavras eram essas? ─ perguntou o inquisidor.
─ Eram palavras em uma língua estranha, que eu não conhe-cia ─ respondeu Peyráuld. ─ Apenas as repeti sem entender.
– E como era esse ídolo?
– Era semelhante a uma cabeça humana. Tinha uma barba negra. Parecia estar viva e seus olhos nos acompanhavam po toda parte.
Evidentemente, Hugues de Peyráuld mentira a esse respeito. Pois em quase todos os depoimentos dos monges que se referiram ao estranho ídolo, consta o seu nome como sendo um dos presentes nas cerimônias onde ele era apresentado.
“Peyráuld”, disseram eles, era o guardião dessa “relíquia”, que segundo alguns irmãos era o maior tesouro templário, pois era dele que vinham todas as riquezas do Templo.
Jacques de Molay e os outros dois altos dignatários do Tem-plo, Geoffroy de Charney e Geoffroy de Gonneville, pergun-tados sobre a tal cabeça, disseram nunca a ter visto. Informaram que só haviam ouvido falar dela através de uma menção que o papa Clemente V havia feito certa vez, de que em alguns capí-tulos da Ordem estaria havendo um culto idólatra. Mas fora disso, alegaram nada saber e acreditavam tratar-se de uma maledicência dos inimigos da Ordem.
Eles também mentiram a esse respeito. Jacques de Molay e Charney, especialmente, sabiam muito bem do que se tratava. No chamado Circulo Superior Interno, grupo de altos dignatários do Templo, Baphomet ─ o Rosto Sagrado ─ era bem conhecido e todos sabiam de quem era e o que era aquela sagrada relíquia que lhe era apresentada na intimidade dos capítulos. Essa era a principal precupações do grão- mestre depois que foi preso.
Jacques de Molay lembrava-se bem, que num dos conclaves em que todos os altos dignatários do Templo estavam reunidos, ele alertara os irmãos a respeito das maledicências que estavam sendo assacadas contra a Ordem. Elas se referiam a certos comportamentos estranhos, que estariam sendo praticados em algumas preceptorias, quando da recepção de novos membros. Coincidência ou não, eram principalmente das preceptorias francesas que vinham tais informações, pelo que coube ao inspetor ─ visitador da Ordem, Hugues de Peyráuld, vestir a carapuça, quando tais assuntos foram levantados pelo grão – mestre em uma reunião do alto escalão templário.
– A que comportamentos estais se referindo? – indagara ele, já na defensiva.
– Ao modo como os veteranos exigem a submisssão dos noviços, obrigando-os a beijar, de fato, suas partes íntimas. Se tais exigências são feitas – disse de Molay, isso é degradante. Vós bem sabeis a que finalidade se destinam os beijos rituais.
– Ouvi dizer que isso acontece em algumas das nossas recepções – respondeu Peyráuld, com certa displicência. – Mas não vejo motivo para preocupação. Trata-se apenas de uma brincadeira de mau gosto aplicada pelos veteranos contra os noviços. Em todas as instituições há tradições similares que os mais antigos aplicam aos mais novos. Serve para demonstrar aos iniciandos que eles devem obediência absoluta aos seus mestres.
– Pois deveis tomar cuidado com essa, que vós chamais de “brincadeira” – disse de Molay – Lembrai-vos que existe um código de moral em nossa Ordem que nos exorta a manter um comportamento digno nesse sentido. Os beijos de recepção são somente uma simulação, que como sabeis, cumprem uma função ritual.
─ Sabemos disso, irmão grão-mestre, mas não temos como evitar que alguns irmãos mal informados tomem esses rituais como forma de trote para com os noviços ─ respondeu Peyráld.
─ E quanto a prática de sodomia, que dizem exigir dos noviços, o que tendes a dizer? ─ inquiriu de Molay.
Hugues de Peyráuld deu de ombros, como se a questão fosse de somenos importância.
─ Ao que sei, nada além do que ocorre na maioria das Ordens monásticas, onde nem todos os irmãos tem fortaleza de espírito suficiente para resistir aos apelos da carne ─ respondeu o inspetor-visitador.
─ Sabeis que a nossa Ordem exige o voto de castidade para os monges-cavaleiros que recebem o manto branco e se tornam dignos de frequentar os capítulos filosóficos. Isso porque, segundo nossa crença, as relações entre homens e mulher são como obra de porcos e de cães. Somos proibidos de nos juntar a mulheres, para não enfraquecer a fé na santidade de nossa causa. Mas o coito com homens também nos é interdito. Isso é coisa de sodomitas e, como sabeis, sodomia é pecado. Lembrai-vos que somos monges e cavaleiros. Como monges praticamos a castidade e como cavaleiros prestamos o culto ao Sagrado Feminino.
─ É por isso que cultuamos Sofia, a Santa Virgem ─ lembrou o preceptor da Normandia, Geoffroy de Charney.
E á menção de Sofia, a deusa mãe da sabedoria, todos os irmãos ali reunidos se persignaram e rezaram a prece ritual, em louvor à Virgem Maria: “Santa Maria (...) mãe sempre virgem e preciosa, Ó Maria, salvação dos enfermos, consoladora dos que a vós recorrem, triunfadora sobre o mal e refúgio dos pecadores arrependidos, aconselhai-nos e defendei-nos. Defendei a nossa Ordem, fundada por vosso santo e caro confessor, o vosso caro Bernardo (...).
─ E que São João Batista, nosso padroeiro, nos proteja e ilumine ─ completou, por fim, Jacques de Molay.
─ Amém ─ disseram todos.
─ Porque estais a perguntar-me todas essas coisas, se vós estais a par de tudo que acontece em nossas reuniões capitulares ─ indagou Peyráuld, com certo aborrecimento na vóz.
– Porque devemos ter muito cuidado em relação a essas coisas – disse de Molay. – Nós, os altos dignatários do Templo, sabemos o que significam esses simbolismos ritualísticos e para que servem. Mas nem todos os nossos irmãos os compreendem. Por isso eles são mantidos em segredo e somente os mestres do Círculo Interno Superior têm inteiro conhecimento do seu conteúdo e significado. Se esses segredos cairem em mãos profanas, temo que eles venham a ser mal interpretados e nos causem muitos danos.
Sabeis ─ continuou o grão-mestre ─ que o beijo ritual se destina a transmitir ao novo irmão a energia que percorre o plano astral e se aloja na base da nossa medula espinhal. É um sacro mistério que aqui se invoca e não deve ser usado como motivo para a prática da promiscuidade. E a negação do Cristo como filho de Deus e sua aceitação como príncipe do nosso reino Kadosh é uma prova de firmeza e fé que serve para identificar quem realmente é digno de fazer parte dos nossos sagrados mistérios.
─ Compreendo vossa preocupação, irmão grão-mestre. Mas como sabeis, a compreensão desses mistérios não faz parte dos ensinamentos dados aos cavaleiros iniciantes, nem aos que não fazem parte do Círculo Superior. Por isso alguns levam na brincadeira, achando que se trata de um deboche que deve ser aplicado aos noviços ─ disse Hugues de Peyráuld.
Jacques de Molay franziu a testa em sinal de preocupação. Ele não podia deixar de reconhecer que o inspetor-visitador tinha razão. Como aqueles homens iletrados e ignorantes, que constituiam a maioria dos cavaleiros templários, iriam entender a sutileza de tais concepções? Ele mesmo era analfabeto e mal as entendia...
De certo que ele sabia para o que servia aquela tradição que havia sido implantada na Ordem, que obrigava o noviço a negar Cristo por três vezes e cuspir na cruz. Ele mesmo fora incitado a fazer aquilo por ocasião de sua iniciação. Tal procedimento se afigurara como uma monstruosidade ritual aos seus olhos e ele se recusara a fazê-lo. Como ─ pensara ele ─ uma Ordem que se propunha a defender a fé cristã ordenava a seus iniciados que renegassem o seu próprio Senhor? Como um cavaleiro que era convidado a tomar a cruz, poderia ofendê-la daquele modo, cuspindo nela? Jacques de Molay se recusara a cumprir aquele estranho e maligno ritual. Por isso sofrera tortura, execração e todo tipo de molestação por parte dos veteranos. Mas ele permanera firme na sua fé e na sua convicção, e depois que os mestres viram que a sua postura era firme, tudo mudara. Ele fora informado sobre a razão daquele estranho ritual e concordara com a sua intenção. Subiu rapidamente na hierarquia da Ordem. Em menos de vinte anos tornara-se grão-mestre.
─ Foi o Irmão Robert de Creon, quando era preceptor da Provença que iniciou essa prática ─ lembrou Peyráuld. ─ Ele a fez para que ela funcionasse como uma espécie de prova de coragem e firmeza. Como sabeis, muitos dos nossos irmãos foram capturados pelos sarracenos durante as batalhas na Terra Santa. E quando submetidos á tortura, a eles era pedido que renegassem Cristo e cuspissem na cruz. Muitos se negavam a isso, preferindo morrer a abjurar nossas crenças. Mas houve irmãos que não tinham essa fortaleza de espírito e o fizeram, para ter suas vidas poupadas. O Irmão Robert então instituiu esse ritual para verificar quem, entre os noviços, seria capaz de mostrar tal fortaleza de espírito, se um dia se visse numa situação dessas – lembrou Peyráuld.
– É como eu a entendo ─ disse de Molay. É uma prova de fortaleza e firmeza na fé. Pois se o noviço consentir em fazê-lo, de coração, só por causa dos castigos que lhes aplicam os veteranos, quanto mais facilmente não o fará se submetidos a verdadeiras torturas pelo inimigo?
─ Pois é ─ disse Peyráuld. ─ Mas como os irmãos de menor grau não entendem o significado desse ritual, acham que tudo não passa de uma brincadeira que deve ser aplicada aos novições. E acabam exagerando.
─ Essas “brincadeiras”, como o irmão Peyráuld as chama ─ disse de Molay ─ poderão trazer complicações para a Ordem. Peço ao irmão-visitador que instrua todas as preceptorias da Europa sobre o assunto e que as suprima, daqui por diante. Como sabeis, a Ordem tem inimigos que só estão esperando que cometamos alguns deslizes para atacá-la. Peço também a todos os preceptores aqui reunidos que tomem muito cuidado em relação a esses assuntos.
─ E quanto ao culto á Sagrada Cabeça? Desejais também aboli-lo? ─ peuguntou Peyráuld.
─ Não, isso não ─ disse de Molay. ─ Ele é o que há de mais belo e importante em nossa liturgia.
─ Há quem diga que se trata de um culto demoníaco ─ disse Peyráuld. Que a Sagrada Cabeça é a representação do demônio.
─ Também dizem que é a cabeça de São João Batista, o mestre que batizou e instruiu o Senhor Jesus. E igualmente que ela é o símbolo da Sabedoria, que os sábios muçulmanos chamam de Abhulaphia, o Pai da Compreensão, a Cabeça da Sabedoria; ou então a Inteligência Suprema, como o chamam os nossos monges que estudam essa sagrada ciência dos judeus, chamada Cabala...
─ Muitos dizem que se trata da cabeça do fundador da nossa Ordem, Hugues de Payns ─ observou Geoffroy de Gonneville, preceptor de Aquitânia.
─ E outros, que se trata da cabeça de Santa Úrsula, a rainha das Dez Mil Virgens─ disse Willian de La More, Grão-Mestre do Templo inglês.
O semblante de Jacques de Molay relaxou, com a menção de todas essas informações. Nem mesmo entre os irmãos da Ordem o estranho culto tinha um consenso. Era isso mesmo o que os altos dignatários do Templo pretendiam. Que esse segredo se diluísse em mitos e estórias de conteúdo difuso e extraordinários, pois essa era a melhor forma de ocultá-lo aos olhos profanos.
Que apenas ele e um círculo bem restrito de mestres do alto escalão soubessem o verdadeiro significado daquela relíquia. Por isso, semanas antes da sua prisão ele tivera uma conferência secreta com o preceptor da Normandia, seu fiel companheiro Geoffroy de Charney.
─ Guardastes bem a nossa relíquia sagrada? ─ perguntou de Molay á Charney.
─ Sim, irmão grão ─ mestre. Está bem guardada com a minha família, em Lirey ─ disse o preceptor da Normandia.
─ Graças a Deus ─ murmurou o grão ─ mestre. ─ Tremo só em pensar que ela caia em mãos estranhas.
─ Podeis ficar tranquilo a esse respeito ─ respondeu Charney. Eu sei da importância de mantê-la oculta e bem guardada.
─ Sim, meu irmão ─ disse de Molay. ─ O mundo não está preparado para uma revelação desse tipo. Sabeis quanta boba-gem se fala a esse respeito.
─ É verdade, meu irmão ─ respondeu Charney, com um simulacro de sorriso. ─ Dizem até que nós somos adoradores de Maomé.
─ Ou adoradores de Satã ─ respondeu de Molay, com um suspiro.
─ Tudo isso é fruto da imaginação desse povo ─ disse Charney. ─ Afinal, os franceses são um povo muito supersticio-so. Adotamos o cristianismo, mas continuamos fieís ás nossas raízes pagãs, herdadas dos druídas.
─ Não tenho muita sabedoria nessas coisas, irmão Charney, mas acho que tendes razão. Somos mesmo muito supersticiosos. Vede, por exemplo, essa história de que é possível matar um inimigo, fazendo dele uma imagem de cera e espetando-lhe um punhal ─ disse de Molay, com um sorriso.
─ Ou colocando o nome dele na boca de um sapo, que depois é costurada. Quando o sapo morrer de fome, o desafeto também morrerá.
─ Pois é. Bruxaria, feitiçaria, magia negra. Dizem que nós somos mestres nessas artes satânicas ─ disse Charney, balan-çando negativamente a cabeça, com um sorriso entre zombeteiro e triste.
─ Se eles soubessem qual é o nosso verdadeiro segredo...─ suspirou o preceptor da Normandia.
─ Eles jamais entenderiam ─ respondeu de Molay.─ Por isso, para eles a Divina Cabeça deverá ser sempre e apenas uma relíquia misteriosa, uma lenda. Nunca poderão saber a verdade sobre ela.
─ Dói-me, entretanto, que pensem que adoramos ídolos, ou que praticamos rituais satânicos e que estamos contaminados de heresia e promiscuidade ─ disse Charney.
─ Á mim também, meu irmão ─ disse de Molay. ─ Mas o que aconteceria se soubessem que nós possuímos a única relíquia verdadeira do nosso Senhor Jesus e que ela é a prova de que ele não era um Deus, mas um homem que morreu e foi sepultado como toda pessoa comum?
─ Isso nós nunca podemos revelar, irmão ─ respondeu Charney. Mas me preocupa o ritual que foi introduzido na nossa Ordem pelo irmão Robert. Acho que não precisávamos fazer tais coisas para ensinar aos noviços os fundamentos das nossas crenças.
─ Quanto a isso vós tendes razão, meu irmão ─ reconheceu de Molay. Mas essas coisas só são praticadas na França, e com mais frequência nas preceptorias occitanas, que como o irmão sabe, ainda não se esqueceram das doutrinas dos Irmãos da Luz.
─ Pois é, irmão. É disso que tenho medo. Os Irmãos da Luz estavam certos naquilo que eles pensavam e faziam. E por isso foram dizimados. O mundo não está preparado para saber a verdade sobre o Nosso Senhor. Por isso eu temo também por nós ─ completou de Molay.
─ O que o irmão grão-mestre sugere que façamos com as nossas sagradas relíquias e os nossos documentos secretos? ─ perguntou Charney.
─ Mandai ocultar a Sagrada Cabeça em lugar onde ninguém possa descobri-la. Doravante só mostraremos as réplicas, que como sabeis mistificam bastante a verdade ─ respondeu de Molay. ─ E quanto aos documentos, providenciai para que sejam todos queimados.
─ Isso já foi feito. O Irmão de Villiers levou junto com o tesouro do Templo todos os documentos que continham alguma informação sobre os nossos segredos. Quanto a isso podeis ficar tranquilo, irmão grão-mestre ─ disse Charney.
─ Tranquilos jamais ficaremos irmão, pois sempre haverá alguns dos nossos que poderá fazer alguma inconfidência a respeito dessas coisas ─ disse de Molay.
─ É verdade. Mas nós sempre soubemos despitar o verda-deiro significado do culto á Sagrada Cabeça. E nunca dissemos a ninguém, fora do Círculo Superior, que ela era a cabeça do nosso Senhor. Sempre haverá uma dúvida a respeito de a quem per-tenceu aquele crânio ─ respondeu Charney.
─ Isso é certo. Até mesmo entre os nossos irmãos dos capitulos isso gera controvérsias. Por isso, acho que seria mais seguro sepultá-la em uma tumba comum, em algum lugar na Arcádia, onde muitos dos nossos irmãos estão sepultados. Assim ninguém jamais descobrirá o nosso segredo ─ sugeriu de Molay.
─ Mas assim também nós acabaríamos enterrando para sempre esse segredo ─ objetou Charney.
─ Mandai marcar a tumba com a inscrição “Et in Arcádia Ego”. Assim, somente nós teremos a chave desse segredo. Se um dia houver condições para revelá-lo, então...
Durante o inquérito foram feitas á todos os templários per-guntas sobre a misteriosa cabeça. Os depoimentos colhidos não permitiram esclarecer muita coisa. Nenhum dos depoentes soube dar uma descrição exata do tal ídolo, o que levou os inquisidores a concluir que ele não tinha uma forma definida, ou que cada capítulo da Ordem tinha a sua própria imagem dele. As descri-ções mais consistentes o davam como sendo uma cabeça de três rostos, um olhando para a frente e os dois outros, um para a direita e outro para a esquerda. Em algumas preceptorias apresentava-se aos iniciados uma cabeça barbada, que usava um turbante semelhante aos que os rabinos judeus usavam. Em outras era uma cabeça feita de metal, representando um homem jovem, de barba e cabelos negros. Em outras um crânio comum.
O que significava esse ídolo e quais eram as palavras usadas no ritual, nenhum dos acusados inquiridos soube, ou quis explicar. Em várias das preceptorias invadidas e varejadas pela polícia de Filipe, o Belo, e também nas preceptorias de outros reinos, procurou-se desesperadamente os tais ídolos e rituais escritos, que se encontrados seriam uma prova contundente da heresia templária. Mas nada foi encontrado que pudesse servir de prova irrefutável dessa prática.
Tudo que se referia á tal cabeça era muito contraditório. Um notário público, chamado Antoine Siccus, de Vercellyz, que estivera no oriente a serviço do Templo deu um estranho testemunho a esse respeito. Disse ele que ouvira essa história em Sidon, contada por um monge da Ordem. Ela acontecera na Armênia, onde um cavaleiro templário se apaixonara por uma jovem. E ela por ele. Mas estando ele impedido de possui-la em razão dos seus votos de castidade, e ela de desposá-lo pela mesma razão, a jovem tirou a própria vida. O cavaleiro, enlou-quecido de dor e de paixão, foi, á noite, ao túmulo da jovem e violou o cadáver.
Fez com a jovem morta aquilo que não tivera coragem de fazer enquanto viva. Após terminar o seu infame ato de necro-filia, ouviu uma vóz que dizia: “voltarás daqui a nove meses para ver o resultado do teu ato.” Nove meses depois o cavaleiro voltou ao túmulo da sua amada e lá encontrou uma cabeça humana entre as pernas da jovem e o cadáver na posição e na condição de uma mulher que acabara de dar a luz. E novamente uma vóz se fez ouvir: “guarda bem essa cabeça. Dela lhe virão todas as riquezas futuras.”
Mas outros depoentes, instados a falar sobre o assunto, foram menos delirantes que o inefável notário. Disseram, sem muitas contradicções, que os templários possuiam reliquias, aos quais davam muito valor. Uns diziam que eles tinham uma cruz de madeira, feita com lascas da verdadeira cruz em que Jesus foi crucificado e sobre essa cruz havia uma cabeça esculpida. Outros diziam que um gato de três cabeças costumava ser adorado nas cerimônias dos capitulos mais avançados. Houve quem dissesse que o tal ídolo se tratava de uma pintura, mas a maioria informou que era mesmo uma cabeça barbada. Essa cabeça, diziam, era milagrosa, pois fazia cair chuva quando dela se precisava e afastava pestes quando elas tomavam conta das aldeias. E a cordinha de linho, que eles recebiam para amarrar em volta da cintura era benzida e consagrada em cerimônia perante aquele ídolo. Isso é o que fazia um monge templário ser tão destemido em batalha, porque aquela cordinha o protegia.
Por ocasião da invasão do Castelo do Templo, em Paris, o monge encarregado da guarda e administração dos bens da Ordem foi intimado a apresentar todos os objetos de culto existentes naquele edifício. No auto de apreeensão e guarda que se lavrou do ato, o oficial encarregado escreveu que “os comis-sários mandaram que Guilherme Pidoye e seus companheiros Guilherme de Gisors e Raignier Bordone, apresentassem todas as cabeças em metal ou madeira, encontradas no edifício do Templo”. Os três apresentaram aos comissários uma grande cabeça trabalhada em prata amarela; tinha rosto de mulher e interiormente ossos de um crânio, envolvidos em um pano branco; por cima havia um sudário, feito de tecido fino ou gaze da Síria, de cor avermelhada, cobrindo-a. Havia um número, numa etiqueta, cozida nesse pano: Caput LVIII. Perguntado o que significava aquela cabeça, os ditos templários responderam que se tratava “da cabeça de uma das Onze Mil Virgens que foram sacriicadas pelos bárbaros hunos quando as hordas de Átila passaram por Colônia.” Nada mais foi encontrado na casa do Templo.”
Em outras preceptorias, por toda a Europa e Ultramar, os inquisidores encontraram algumas relíquias que, vagamente, foram associadas á lenda do famoso ídolo templário. Entretanto nunca se chegou a nenhuma conclusão do que era, ou do que significava esse símbolo. Alguns dos cavaleiros inquiridos suge-riram que esse culto tinha se originado nas crenças dos muçul-manos, que veneravam o seu profeta Maomé e por isso, talvez, o nome do tal ídolo. Outros definiram o assunto como “segredo da Ordem”, só conhecido pelos mestres do Círculo Superior Interno. Assim criou-se a lenda do ídolo Baphomet. Poucas vezes na História, um segredo foi tão bem camuflado como esse.
(excerto do capítulo XII do livro- Os Monges Malditos) publicado neste site.