Preconceito racial na literatura - Diário de Sorocaba, domingo e segunda-feira, 5 e 6 de agosto de 2007

ESCRITOR DA SEMANA

Preconceito racial na literatura

O mais recente caso de preconceito racial na literatura ocorreu há poucos dias, com a denúncia da Comissão Inglesa pela Independência Racial (CRE) relativa ao segundo álbum de quadrinhos da série de 23 livros As Aventuras de Tintin, desenhada pelo belga Hergé, pseudônimo de George Remi, criador do célebre jovem jornalista Tintin e seu cachorro Milu, publicada em 1930, traduzida em várias países e vendidos cerca de 200 mil exemplares em todo o mundo.

O referido álbum, intitulado Tintin no Congo, ou Tintin na África, relata as aventuras do herói no reino fictício de Babaoro’m. O conteúdo em questão é claramente ofensivo por referir-se aos congoleses como “nativos selvagens que parecem macacos e falam como se fossem imbecis”. Essa frase reflete toda a carga moral, intelectual e estética, aspectos estes que permeiam qualquer tipo de discriminação.

Mesmo com a recomendação do reino britânico para que as livrarias de todo o país recolhessem os exemplares do livro, os livreiros acataram a decisão parcialmente, colocando-os em estantes dirigidas aos adultos.

A Egmont, editora inglesa do título, propôs que se colocasse uma tarja em cada livro indicando que a obra seria direcionada para colecionadores e que seu conteúdo poderia chocar. Porém, essa advertência não impediu que se esgotassem os 30.000 exemplares.

Hergé, antes de falecer, reconheceu que se tratava de um “pecado de juventude” e que apenas expressou o caráter colonial do momento e, se tivesse que reescrever esta obra certamente não usaria estes termos, não descreveria tantas cenas de violência contra os animais e que realmente essa era a visão estereotipada que os europeus tinham do Congo, à época colônia da Bélgica.

No Brasil há vários trechos de cunho racista em livros didáticos, literatura de cordel, literatura em geral, na publicidade, no cinema, na MPB, na dramaturgia e outros, onde os negros, mulatos e mestiços são associados à violência, luxúria, submissão, malandragem, prostituição, feiúra, pobreza, ressaltando um sentido de inferioridade preconizado ao longo da história brasileira.

Há um estudo muito interessante sobre a obra do poeta barroco Gregório de Matos (1633-1696) apontado como um dos escritores brasileiros mais racistas. Há em seus poemas uma visível diferença de tratamento em relação aos negros e aos brancos. Refere-se aos negros com insultos e desprezo; à mulata apenas como objeto de desejo, e, quando se dirige à mulher branca utiliza uma linguagem mais erudita, respeitosa, quase sacra, atribuindo-lhe uma beleza superior e intangível.

Estrofe de um poema de Gregório sobre a Bahia

(...)

Dou ao demo os insensatos,

Dou ao demo a gente asnal,

Que estima por cabedal

Pretos, Mestiços, Mulatos.

(...)

Estrofe de um poema de Gregório sobre a beleza de D. Ângela

(...)

Ontem a vi, por minha desventura

Na cara, no bom ar, na galhardia

De uma Mulher, que em Anjo se mentia,

De um Sol, que se trajava em criatura.

(...)

Tal como a obra de Hergé, é possível justificar, na produção literária e artística, essas discriminações apenas como reflexo da configuração social e histórica de uma época ou de um lugar?

E as produções mais recentes em que se notam as mesmas intolerâncias com as diversidades culturais, étnicas, sócio-econômicas e religiosas?

Até quando o homem sentirá estranhamento em relação ao outro apenas por sabê-lo e vê-lo como diferente?

Até quando a economia, a política e outras instâncias do poder manterão esse padrão discriminatório em relação a determinados grupos para depois tirarem proveito dessa estigmatização?

Estudos recentes mostram que é impossível dividir a humanidade em raças. O conceito de raça sofreu várias alterações ao longo do tempo e hoje o que é aceitável cientificamente é que há diferenças peculiares entre indivíduos de uma mesma comunidade, de uma mesma etnia e não entre grandes grupos.

Estigmatizar o outro pela cor da pele é, no mínimo, ignorar a própria história. Quando o Homo sapiens surgiu há 200.000 anos, todos tinham a pele negra e habitavam a África. À medida que foram se espalhando pelo mundo, as populações se adaptaram aos novos ambientes. Na África, a pele escura do ser humano foi preservada para protegê-lo do alto grau de radiação ultravioleta do sol. O grupo que migrou para o norte da Europa sofreu uma pressão seletiva no sentido do clareamento da pele para aproveitar melhor o sol fraco e sintetizar a vitamina D, essencial para os ossos. Ou seja, essa mutação necessária para a sobrevivência do homem no planeta o faz pensar que é superior ou inferior ao outro pela diferença do tom da pele e outros traços e daí derivar todas as outras discriminações?

O fascismo, dentre outras injustiças contra o homem, nasceu daí.

(Rosângela Inojosa Galindo)

Douglas Lara
Enviado por Douglas Lara em 05/08/2007
Código do texto: T593409