A Morte de Olivier Bécaille e outras novelas
ZOLA, Émile. A Morte de Olivier Bécaille e outras novelas. Trad. Mariana Appenzeller. Porto alegre: L&PM, 2001.
Émile Zola (Paris, 2 de abril de 1840 — Paris, 29 de setembro de 1902) foi um consagrado escritor francês, considerado criador e representante mais expressivo da escola literária naturalista. Entre as obras literárias mais expressivas de Zola, estão “Thérèse Raquin” (1867) e o “Germinal” (1885).
O livro lido aqui, é composto por três curtas e envolventes novelas. Cada uma das histórias fascina e prende o leitor do início ao fim pela a maestria com que Zola tece os detalhes das narrativas. São vivências de homens e mulheres “reais”, cujos sentimentos intrínsecos ao ser humano prevalecem sobre suas ações. Cada personagem cristaliza características do Naturalismo, estilo de época inaugurado pelo autor.
Destarte, o leitor é transformado em personagem coadjuvante nas três histórias, torna-se, pois, cúmplice dos narradores, sejam narradores personagens, como em “A Morte de Olivier Bécaille” e “A inundação”, ou narrador observador, como em “Nantas”.
A primeira novela é “A Morte de Olivier Bécaille”, cujo personagem protagonista e também narrador é Olivier. Ele muda-se para Paris com sua jovem esposa, Marguerite. Por causa de uma grave doença, fica acamado por dias, até que algo estranho acontece e ele não consegue acordar depois de mais uma noite doente: “Foi num sábado, às seis horas da manhã, que morri, após três dias de enfermidade” (p.03).
Em aparente estado letárgico, Olivier é dado como morto, mesmo estando consciente de tudo que ocorre em sua volta: “Eu ouvia tudo, mas os sons esmaeciam, pareciam vir de longe. Só meu olho esquerdo ainda enxergava um clarão confuso...o olho direito encontrava-se completamente paralisado. [...] apenas o pensamento permanecia, lento e preguiçoso, mas com perfeita nitidez.” (p. 03).
Todos acreditam que Olivier esteja morto. No primeiro plano, o leitor acompanha o desespero e pavor que domina o narrador personagem que não consegue se comunicar e que, fatalmente, será enterrado; num segundo plano, há os preparativos fúnebres daquele morto-vivo...ou será vivo-morto? “Compreendi que ela estava me vestindo com as roupas do dia do nosso casamento. Eu ainda tinha aqueles trajes que pensava usar em Paris apenas em ocasiões especiais.” (p. 25).
Absorto, Olivier ‘vive’ momentos infernais e acompanha amedrontado cada movimento no quarto, mesmo depois de fecharem seus olhos: o choro copioso da esposa, o “entra-e-sai” da vizinha faladeira Gabin, o assombro da criança Àdele e a chegada do jovem Simoneau, “um rapaz alto, muito belo, muito forte”, a quem detestou de imediato.
A partir desse momento, nessa situação limite, Olivier reflete sobre a vida e a morte, e o leitor experimenta os mais diferentes sentimentos que movem o ser humano, desde a má vontade e descaso do médico que examina o ‘morto, “Aquele homem tinha minha vida em suas mãos e achava inútil proceder a um exame atento” (p. 21), ao próprio Simoneau, que demonstrava interesses outros para com a bela e jovem viúva.
Quando o leitor acredita que a história se encaminha para um desfecho, ou seja, o personagem é enterrado e morrerá asfixiado, é surpreendido e transportado para dentro da sepultura do morto: “Depois, de repente, senti que estava mergulhando, enquanto cordas roçavam como arcos os cantos do caixão, o que provocava um som de contrabaixo rachado. Era o fim” (p. 30).
Junto com Olivier, o leitor divide a sensação angustiante de sufocamento e o desespero a que o personagem está submetido. É aqui, sobretudo, que o leitor se encontra com as miudezas e nuanças de uma narrativa crua e detalhada ao estilo naturalista de Zola. “Iniciava-se então uma agonia longa e pavorosa” que o narrador conta esmiuçadamente, sob os olhos atento de um leitor paralisado de pavor.
É enterrado que Olivier sai do estado de letargia, e começa uma luta angustiante pela sobrevivência. Nessa situação macabra de estar numa tumba escura e sem ar, Olivier trava uma batalha instintiva pelo frágil fio da vida, desejando a morte. Diante da fome e sede vorazes, “mordi meu braço, bebi meu sangue, esporeado pela dor reanimado por aquele vinho morno e acre que me molhava a boca” (p. 37).
Depois de muito tentar, Olivier consegue sair da cova, mas ao procurar Marguerite, descobre que ela casou-se com Simoneau. A narrativa acaba com Olivier disposto a viver outras histórias.
Na segunda novela, “Nantas”, conhecemos um jovem ambicioso e inteligente. Nantas, seu nome, muda-se para Paris depois da morte dos pais, para conseguir uma colocação social. Mas, a realidade é outra e ele não consegue emprego, além de gastar todas as economias que tinha.
Na miséria e num lapso de desespero, Nantas tenta o suicídio no cubículo em que morava, um quaro cujo “o papel sujo, o teto escuro, a miséria e a nudez daquele cômodo sem lareira não o incomodavam”. (p. 45).
Quando estava prestes a encurtar sua existência, Nantas é interrompido pela chegada de Chuim, empregada da casa do barão Danvilliers, que ficava em frente ao quarto que alugara. Chuim propõe que Nantas assuma o filho que Flavie espera, fruto de um romance clandestino com um homem casado, Roinville.
Sem nada a perder e muito a ganhar, pois a jovem era rica, ele aceita o acordo e é confrontado pelo barão, pois este acredita que Nantas tenha desvirtuado sua filha. O casamento é realizado.
Mais uma vez, a descrição crua do casamento por interesse evidencia a relação contratual do casal:
“-Muito bem, meu marido só de nome, nossas vidas completamente separadas, uma liberdade absoluta.
Nantas tomou de imediato o seus ar cerimonioso, o tom breve de um homem que discute um contrato.
- Combinado, senhora” (p. 62)
Assim, o tempo vai passando e Nantas se apaixona pela esposa, mas é tratado com desprezo por ela, que mesmo o amando também, mantem-se no cume de seu orgulho. Esse desprezo alimenta o ciúme que devora Nantas, “Aos poucos sua agitação aumentara. Com certeza sua mulher fora a algum encontro.”(p.67). O homem determinado, preste a chegar ao topo da carreira diplomática está rendido, afogado no ciúme doentio, mas firme no orgulho de ferido: “Ele fingia pouco se preocupar com a mulher, enquanto agonizava de angústia mesmo quando ela saía por pouco tempo”. (p. 75). Movido por este sentimento avassalador, cujo não há ingerência, Nantas agride Flavie e é surpreendido pelo sogro. Nesse momento, pai e filha abandonam Nantas, que cai em prantos.
Gananciosa e sabendo muito, a empregada Chuin faz Nantas acreditar que Flavie mantem o romance com Roinville, agora viúvo. Ao mesmo tempo, joga com Roinville, fazendo-o acreditar que Flavie ainda o ame. Depois de uma trama muito bem arquitetada por Chuin, Nantas surpreende Roinville no quarto da esposa e acredita que sempre fora traído. Acovardado por não conseguir matar o rival, Nantas se isola no antigo cubículo e tenta, pela segunda vez, o suicídio. “Nantas encostou o cano na têmpora. A porta abriu-se com violência, e Flavie entrou. Com um gesto desviou o tiro, a bala indo alojar-se no teto” (p. 86).
É uma história que deixa o mais desatento leitor sem respirar!
Na última novela que compõe o livro, “A inundação”, a energia que é sugada do leitor não é diferente. A história acontece no interior da França, numa fazenda próspera. Nela vivia uma família grande e feliz, comandada pelo patriarca Louis Roubieu, no auge de seus 70 anos.
Tudo na fazendo era maravilhoso e a sorte sorria para todos: “Nossa casa parecia abençoada. Nela brotava a felicidade; o sol era nosso irmão, e não me lembro de más colheitas”. (p. 87).
Numa noite, depois de 60 h ininterrupta de chuva, o rio Garonne transborda e inunda toda a cidade, castigando o vilarejo.
Louis ver-se obrigado a se refugiar com a família no telhado de sua casa, mas o telhado também é invadido pela água. E desse camarote, tendo o leitor como acompanhante, que ele assiste aflitamente ao desespero de seus familiares: um a um têm suas vidas ceifadas pelo desastre. Impossível não fazer uma alusão à tragédia em Mariana-MG (2015) e à barragem de Algodões em Cocal-PI (2009).
No final dessa novela, resta apenas Louis e sua dor profunda, não mais pelos bens materiais que perdeu, mas por todos os seus familiares que morreram naquela noite. Ele é resgatado desmaiado e é um dos poucos sobrevivente da tragédia.
Em uma descrição terrivelmente seca, desprovida de subjetividade, Zola apresenta personagens que vivem situações-limite em que seus instintos são testados e prevalecem sobre os seus atos. O instinto de sobrevivência de Olivier, que come a si mesmo e bebe o próprio sangue; a covardia, a ganância e o ciúme de Nantas; e, a inércia de Louis, agravada pelo peso dos anos, diante da morte dos seus são características que tornam ‘reais’ cada personagem dessa obra prima de Émile Zola.
Por Regilane Barbosa Maceno