O mundo sombrio de Robert Howard

O MUNDO SOMBRIO DE ROBERT HOWARD
Miguel Carqueija

Resenha da coletânea “O mundo sombrio” (subtítulo: “Histórias dos Mitos de Cthulhu”), por Robert E. Howard). Editora Clock Tower, 2016. Prefácio: Rochett Tavares. Introdução: S.T. Joshi. Biografia do autor por Rusty Burke. Tradução e notas: Claudia Doppler, Daniel Iturvides Dutra, Liliane Reis, Pedro Henrique Toledo, Ricardo Herdy e Adriano Migliavacca. Capa: Alexandre Costa. Ilustrações internas: Leandro Moura. Contatos com a editora: loja.sitelovecraft.com

Robert Ervin Howard viveu poucos anos — infelizmente suicidou-se em 1936, com apenas 30 anos — mas deixou uma obra literária marcante, que iria influenciar a literatura e o cinema (principalmente com a criação do herói pré-histórico Conan) e entrelaçar-se curiosamente com as temáticas de outro mito do horror norte-americano, seu contemporâneo e amigo H.P. Lovecraft (1890-1937). Lovecraft desenvolveu o horror cósmico ancestral; Howard criou, assim consta, o gênero “espada e magia” de tanta influência nos RPG’s.
O presente livro apresenta diversos contos de Howard que vão de encontro à mitologia de Lovecraft: raças da sombra, invasores de outras dimensões, seres malignos e antiquíssimos já agindo nos primórdios da civilização humana, segredos abomináveis que desafiam a razão. Algumas dessas histórias aproximam-se bastante do clima fatalista e desesperante lovecraftiano; todavia com uma derivação para heróis rudes e carismáticos, eras perdidas e epopéias longínquas. O conjunto é interessantíssimo.
A PEDRA NEGRA (1931) — The Black Stone
Howard também criou seus autores imaginários e livros fictícios, a exemplo do “Necronomicon” dos contos de Lovecraft. “A pedra negra” fala do “Livro Negro” de certo Von Junzt. A tal “pedra negra” ficaria numa região inóspita da Hungria e nela um povo antigo e desaparecido teria realizado ritos blasfemos com sacrifícios humanos, em honra a uma falsa divindade, na verdade um monstro em forma de sapo, que ficava, vivo, no topo da pedra (uma grande formação monolítica). O local porém permanecia com uma maldição residual, pois pessoas enlouqueciam se passassem lá a noite. Um dos moradores da região assim se pronuncia: “Meu próprio sobrinho, quando era muito pequeno, se perdeu nas montanhas e dormiu na mata, próximo à Pedra e agora, em sua vida adulta, é torturado por sonhos imundos; a noite se torna horrenda devido a seus gritos, e ele acorda ensopado em suor frio.”
OS VERMES DA TERRA (1936) — Worms of the Earth
Conto pertencente ao ciclo de Bran Mak Morn, um soberano celta metido a aventureiro que, desgarrado de seu povo e seu exército, expõe-se uma aventura perigosíssima para se vingar de um guerreiro romano e para tanto faz um pacto temerário com uma bruxa, para obter o apoio de um povo subterrãneo e terrificante. Uma história que prende a atenção com grande poder; aliás essa é uma característica da narração marcante de Howard.
O POVO DAS TREVAS (1932) — People of the dark
História de ciúme, triângulo amoroso e seres hediondos do passado... combinação original, sem dúvida. O autor junta pitadas de reencarnação — recorrência nos seus contos —além do fenômeno da regressão mental. Tudo com bastante movimentação e riqueza de detalhes, uma narrativa soberba.
A CHAMA DE ASSHURBANIPAL (1936) — The fire of Assurbanipal
O norte-americano Steve Clarney e o árabe Yar Ali metem-se numa aventura louca no deserto e são perseguidos por salteadores. Refugiam-se numa cidade ancestral, isolada e perdida na imensidão e que espantava os naturais da região por motivos supersticiosos. O vilão, Nureddin El Mekru, lidera um grupo de beduínos que o seguem relutantemente, mas as coisas se complicam quando, depois de capturar os dois protagonistas, ele se dispõe a roubar a pedra conhecida como a “Chama de Asshurbanipal” pois isto seria ofender um djin (gênio da mitologia árabe). Há uma certa facilidade na maneira como as coisas sobrenaturais se explicam: “Quando Xuthltan morria — continuou o velho beduíno — ele amaldiçoou a pedra cuja magia não o salvou, e gritou alto as palavras temíveis que desfizeram o feitiço que ele havia lançado no demônio da caverna, e libertou o monstro. E berrando a deuses esquecidos, Cthulhu e Koth e Yog-Sothot, e a todos os habitantes pré-adamitas nas cidades negras sob o oceano (sic) e as cavernas da terra, ele os invocou para tomar de volta o que era deles, e com a sua respiração moribunda pronunciou a condenação ao falso rei, e essa condenação era que o rei devia sentar no seu trono segurando em sua mão a Chama de Asshurbanipal até o trovão do dia do juízo final.” Como se vê, um bruxo moribundo teria até mais poder que Deus, decretando condenações irrevogáveis... claro, se formos analisar racionalmente há muitas incoerências e exageros nessas histórias, por conta da exacerbação do poder do mal.
AS MORDIDAS DO URSO NEGRO (1974) — The black bier bites (nota do resenhador: sempre que esbarrarmos numa data posterior à morte de Howard, fica subentendido que se trata de conto publicado postumamente)
Um conto “meio” lovecraftiano. O protagonista (narração na primeira pessoa) é um agente que investiga a morte de seu amigo Lannon, assassinado por uma quadrilha misteriosa na China. Afinal, o sujeito por trás da quadrilha era um falso “apóstolo” dos Grandes Antigos, que pretendia subverter o país contra o Ocidente. Creio que injunções políticas prejudicaram a qualidade deste trabalho.
OS FILHOS DA NOITE (1931) — The children of the night
Neste entrecho, diversos intelectuais discutem sobre a sobrevivência de cultos horrorosos do passado remoto. O personagem-narrador sofre um acidente e tem uma regressão (como em “O povo das trevas”) e descobre ou cisma que um dos membros do grupo é na verdade um remanescente disfarçado de uma raça asquerosa e inimiga da humanidade, o povo-serpente. E sua única reação é de ódio. De fato, as histórias de Howard, literariamente muito boas, e estilisticamente superiores, não contemplam preferencialmente o amor.
O POVO PEQUENO (1932) — The little people
Outra narração em primeira pessoa, onde o protagonista luta para salvar a sua irmã, que se arriscara circulando sozinha perto de ruínas druídicas e agora estava sendo perseguida por “seres hórridos” (textual). Seres que no passado teriam exercido bem maior poder na Terra... a grande recorrência dos textos lovecraftianos, assinados ou não por Lovecraft.
A COISA NO TELHADO (1932) — The thing on the roof
Com referências ao “Livro Negro” e ao “Necronomicon” vemos aqui mais uma vez um personagem (Tussmann) obcecado por assuntos misteriosos e mórbidos e que realiza uma viagem ao Yucatan em busca de certos segredos. Mas ao retirar de lá uma jóia... sem querer ele libertou um dos tais seres hediondos de seu selo. As consequências são terrificantes...
NÃO CAVE MEU TÚMULO (1937) — Dig me no grave
John Grimlan, sujeito misterioso e eremita, morre e deixa a John Conrad a missão de realizar um estranho ritual em sua casa. Este pede ajuda a Kirowan, o protagonista-narrador, e lá vão os dois. E a experiência que vão passar é impressionante.
O conto está cheio de referências lovecraftianas, até mesmo Yuggoth, que seria o planeta Plutão, habitado por fungos inteligentes e hediondos como revelado na noveleta de Lovecraft, “Um sussurrro nas trevas”. Grimlan, um iniciado no culto aos Grandes Antigos, tempos antes de morrer dissera a Conrad: “Eu poderia te contar coisas que estilhaçariam (sic) seu cérebro miserável!” Com frequência (ou quase sempre) nesse universo ficcional, o que é sobrenatural, desconhecido ou sobre-humano, é sempre mau, blasfemo e ameaçador (o terror extremo, com a possível destruição de tudo e de todos...); e os personagens humanos sentem-se importentes diante da hediondez (claro que existe a outra opção, a do sobre-humano bom; mas não é costume encontrar nesses autores).
O ESPÍRITO DO ANEL (1934) — The haunter of the ring
Uma moça recebe um anel de um ex-namorado, como presente para o seu casamento. Mas o anel é amaldiçoado e ela passa a agir de forma estranha, tentando matar diversas vezes o marido. Kirowan está de volta — há vários personagens recorrentes no livro — e descobre a verdade. Há uma afirmação interessante feita por esse protagonista: “Os poderes da escuridão nunca lidam de forma justa com seres humanos. Aquele que negocia com eles é sempre trapaceado no final.”
O USURPADOR NOTURNO (1970) — Usurp the night
Praticamente uma história policial e de terror ao mesmo tempo. Animais domésticos, depois crianças, finalmente pessoas adultas, desaparecem misteriosamente na cidade, ao ponto de aterrorizar a população. Finalmente, o narrador desconfia do solitário vizinho, que possuía conhecimentos tão espantosos sobre tantos assuntos. E quando decide, como um cruzado, a enfrentar com espada o monstro alienígena que se oculta no sótão e está ficando cada vez maior, declara enfaticamente: “...de uma coisa tenho certeza: a luxúria demoníaca não é mais forte que o ódio humano e eu farei com que esta lâmina, que nos velhos tempos matou bruxas e feiticeiros e vampiros e lobisomens, seja páreo para as legiões imundas do próprio Inferno.” O que faz lembrar o próprio Conan, exterminador de bruxos poderosos, sob o argumento de que bruxos também sangram...
OS HABITANTES SOB A TUMBA (1976) — The dwellers under the tomb
Outra idéia recorente em Howard é a de raças antigas não-humanas e asquerosas (ou ex-humanas) que se entranharam em cavernas subterrâneas e lá ficaram pelas gerações e talvez por lá ainda estejam. Por mais aterrorizante que seja esta idéia, o autor não explica como é que tais seres iriam se alimentar, por exemplo. Esta história, porém, fixa-se mesmo no horror em si e está repleta de superlativos. Vejam esta passagem: “Que terror de ameaça tangível e compreendida pode se igualar ao de uma ameaça não vista e sem nome?” E mais adiante: “Cria dos abismos negros de loucura e noite eterna! Obscenidades rastejantes fervilhando na lama da terra de profundezas impensáveis — o horror fial da degeneração humana — bom Deus, os seus ancestrais eram homens!”
O REINO SOMBRIO (1929) — The shadow kingdom
Este extenso conto faz parte da série de Kull, o guerreiro atlante que se tornou soberano da fictícia terra de Valúsia, há muitos milhares de anos atrás. Verdadeira história de espada-e-magia, mostra o que acontece quando o solitário e misantropo Rei Kull descobre, estarrecido, que os homens-serpentes de uma raça que no longínquo passado (longínquo já no tempo de Kull) haviam guerreado a humanidade, estavam aos poucos dominando o pais, graças ao seu poder de mimetismo. Reis de Valúsia haviam sido assassinados em segredo, e homens-serpentes tomaram seu lugar, pois podiam por sugestão hipnótica ser vistos com a aparência humana, idêntica à dos mortos. Auxiliado por dois pictos, Ka-Nu e Brule, Kull se vê num intrincado jogo de vida ou morte, onde não faltará um ususpador da sua própria aparência e identidade. O conto divide-se em vários capítulos e é extremamente emocionante, pela tensão nervosa que o acompanha do princípio ao fim.
OS DEUSES DE BAL-SAGOTH (1931) — The gods of Bal-Sagoth
O celta Turlogh e o saxão Athelstane deveriam ser inimigos, mas um naufrágio numa ilha desconhecida os força a se tornarem amigos, quando se vêem envolvidos num emaranhado político que inclui uma rainha destituída e que luta para recuperar o trono, e um feiticeiro que a combate. Brunhild, a rainha que se apresenta como se fosse uma deusa, utliza os dois guerreiros para ajudá-la em seu objetivo, e eles são beneficiados por usarem armaduras, coisa desconhecida naquele lugar. Ao longo do texto há muita violência, lutas contínuas, com um toque de sobrenatural. Também prende a atenção, inclusive com diálogos inteligentes, bem estruturados.
ARKHAM (1932) e O SINO DE MORNI (2001) — Bell of Morni
Dois pequenos poemas que encerram o volume. Arkham é uma das cidades arquetípicas das histórias de H.P. Lovecraft. O poema do sino fala das coisas terríveis que acontecerão quando ele badalar (o despertar dos trolls...)
“O mundo sombrio” é uma coletânea altamente esclarecedora da literatura fantástica de Robert Howard, certamente um dos nomes de maior peso da fantasia e do terror do século XX.

Rio de Janeiro, 28 a 30/7/2016.