"O Coruja": o Corcunda de Notre-Dame brasileiro
O CORUJA: O CORCUNDA DE NOTRE DAME BRASILEIRO
Miguel Carqueija
Resenha do romance “O Coruja”, de Aluisio Azevedo. Livraria Martins Editora, São Paulo-SP, 1968. Introdução: Raimundo de Menezes. Capa: Clóvis Graciano.
Romance extenso e de fôlego, “O Coruja” saiu em forma de folhetim em 1889 e em formato de livro,em 1890. Oriundo da pena de autor tido como naturalista e anti-clerical, apesar disso é bastante humano sob alguns aspectos, na maneira como focaliza o drama e a tragédia de dois amigos totalmente diferentes um do outro, André (vulgo o Coruja) e Teobaldo, não obstante uma amizade que perdura por décadas a fio. Enquanto o primeiro é humilde, reservado, trabalhador, bondoso, e passa a vida se sacrificando pelos outros, destruindo até seu patrimônio e sabotando seu próprio projeto de matrimônio, o segundo é fátuo, superficial, vaidoso, egoísta, incompetente. O Coruja porém é extremamente feio, provocando repugnância e pré-julgamentos negativos só pela sua aparência; já Teobaldo, apesar de sua nulidade, sabe ser envolvente, sedutor, enrolador; as pessoas tendem a pensar que ele é uma grande cabeça, um talento nato, e fora alguns revezes prlongados após a morte do pai, sem conseguir um trabalho por falta de iniciativa, acaba sendo bafejado pela sorte, recebendo algumas heranças e por fim fazendo carreira na política, chegando a ministro de D.Pedro II (?)
Aluisio Azevedo, como eu disse, é autor anti-clerical. Seguindo a tendência desses autores no século XIX os padres que aparecem são raivosos, mal-educados, broncos, às vezes até criminosos (como o sacerdote de “O mulato”, do mesmo autor, que chega a empresariar um assassinato). Felizmente só aparecem dois padres em “O Coruja”: o pároco João Estevão, que adota o menino órfão André, e depois se arrepende, e, muitos anos depois, um que aparece de passagem, apenas para maltratar o Coruja, mandando que ele se arredasse do caminho. Bem, ao longo da minha vida, que já não é curta, o que posso dizer é que jamais encontrei clérigos como esses das histórias anti-clericais de Azevedo, Eça de Queiroz, Érico Veríssimo, indivíduos ignorantes e intratáveis. Tudo indica nesses autores, desconhecimento do que seja de fato a Igreja Católica. Desconhecimento e má vontade. Mas deixemos esse aspecto, pouco importante em “O Coruja”.
O romance é interessantíssimo, prende a atenção, mas não está isento de idiossincrasias. Deixa pontas soltas e detalhes mal explicados. Por exemplo, o papel de Branca, a esposa de Teobaldo. Quando este assina umas letras para seu falso amigo Aguiar (primo de Branca e apaixonado por ela, inconformado por vê-la casada com um tipo cafajeste como Teobaldo) em troca de um empréstimo salvador (sem saber que Teobaldo pretendia executar as letras se Branca não se tornasse sua amante) o Coruja intervem e resgata a dívida do amigo de infância. Com isso, arruina o seu plano de casamento com Inês. Isso acontece várias vezes ao longo do livro, chega a ser um detalhe aflitivo. No entanto, pelo andar da carruagem, os leitores percebem que a trama caminha para o final trágico ou pelo menos deprimente: é mais previsível que em “Anna Karenina” de Tolstoi, que quase até o desfecho não dá a entender a queda da protagonista na insanidade suicida. Bem, por mais que Branca se mostre grata ao Coruja, quando este deixa a casa do casal ela já não o vê, não o visita, nem mesmo com o marido, e o deixa à míngua de recursos. Não se esperava dela, a mesma ingratidão de Teobaldo. Também pouco convincente é o desespero final deste que, desgostoso de todo o sucesso obtido, vendo-se afinal só, sem amigos — o próprio Coruja o repele — chega ao seu fim melancólico; mas sem sequer tentar ajudar o amigo de tantos anos. Sabemos além disso que os irresponsáveis e “boas-vidas”, fátuos e aproveitadores, mesmo que sintam a vacuidade de suas vidas não irão cair nessa crise de desespero. Em suma, em várias ocasiões no romance Azevedo é grandiloquente e inverossímil.
No entanto “O Coruja” é obra que dá o que pensar sobre a miséria humana e a paulatina extinção dos sonhos humanos. Desperta compaixão para com o personagem-título, cujo destino final é uma incognita. Pode-se observar também que os personagens de Azevedo em geral não têm verdadeira religião. André, o Coruja, embora procure ser extremamente bondoso, não tem ao que parece nenhuma fé religiosa. Desse modo, sua bondade também não é criteriosa: dá fuga a um assassino de esposa, acompanha Teobaldo na operação de rapto de Branca, que ao fugir da casa do pai para se casar com um indivíduo sem eira nem beira e nem caráter (isto é, o Teobaldo) provoca a morte do genitor por ataque cardíaco. E em consequência Teobaldo herda a fortuna do quase-sogro e se livra da inadimplência... e o que afinal ele oferece a Branca é o dinheiro da própria família da moça. Então concluímos o quanto a bondade do Coruja é mal orientada. Sem embargo, o coitado mata-se de trabalhar, veste-se cada vez pior, com roupas surradíssimas, sem que Teobaldo (que aos poucos vai ficando envergonhado do amigo) se preocupe em ajudá-lo ao menos a se vestir melhor.
Não sei se existe adaptação cinematográfica, teatral ou televisiva de “O Coruja” mas daria um excelente filme. É livro muito bem escrito, muito psicológico e que merece ser lido.
Rio de Janeiro, 29 de junho de 2016.
O CORUJA: O CORCUNDA DE NOTRE DAME BRASILEIRO
Miguel Carqueija
Resenha do romance “O Coruja”, de Aluisio Azevedo. Livraria Martins Editora, São Paulo-SP, 1968. Introdução: Raimundo de Menezes. Capa: Clóvis Graciano.
Romance extenso e de fôlego, “O Coruja” saiu em forma de folhetim em 1889 e em formato de livro,em 1890. Oriundo da pena de autor tido como naturalista e anti-clerical, apesar disso é bastante humano sob alguns aspectos, na maneira como focaliza o drama e a tragédia de dois amigos totalmente diferentes um do outro, André (vulgo o Coruja) e Teobaldo, não obstante uma amizade que perdura por décadas a fio. Enquanto o primeiro é humilde, reservado, trabalhador, bondoso, e passa a vida se sacrificando pelos outros, destruindo até seu patrimônio e sabotando seu próprio projeto de matrimônio, o segundo é fátuo, superficial, vaidoso, egoísta, incompetente. O Coruja porém é extremamente feio, provocando repugnância e pré-julgamentos negativos só pela sua aparência; já Teobaldo, apesar de sua nulidade, sabe ser envolvente, sedutor, enrolador; as pessoas tendem a pensar que ele é uma grande cabeça, um talento nato, e fora alguns revezes prlongados após a morte do pai, sem conseguir um trabalho por falta de iniciativa, acaba sendo bafejado pela sorte, recebendo algumas heranças e por fim fazendo carreira na política, chegando a ministro de D.Pedro II (?)
Aluisio Azevedo, como eu disse, é autor anti-clerical. Seguindo a tendência desses autores no século XIX os padres que aparecem são raivosos, mal-educados, broncos, às vezes até criminosos (como o sacerdote de “O mulato”, do mesmo autor, que chega a empresariar um assassinato). Felizmente só aparecem dois padres em “O Coruja”: o pároco João Estevão, que adota o menino órfão André, e depois se arrepende, e, muitos anos depois, um que aparece de passagem, apenas para maltratar o Coruja, mandando que ele se arredasse do caminho. Bem, ao longo da minha vida, que já não é curta, o que posso dizer é que jamais encontrei clérigos como esses das histórias anti-clericais de Azevedo, Eça de Queiroz, Érico Veríssimo, indivíduos ignorantes e intratáveis. Tudo indica nesses autores, desconhecimento do que seja de fato a Igreja Católica. Desconhecimento e má vontade. Mas deixemos esse aspecto, pouco importante em “O Coruja”.
O romance é interessantíssimo, prende a atenção, mas não está isento de idiossincrasias. Deixa pontas soltas e detalhes mal explicados. Por exemplo, o papel de Branca, a esposa de Teobaldo. Quando este assina umas letras para seu falso amigo Aguiar (primo de Branca e apaixonado por ela, inconformado por vê-la casada com um tipo cafajeste como Teobaldo) em troca de um empréstimo salvador (sem saber que Teobaldo pretendia executar as letras se Branca não se tornasse sua amante) o Coruja intervem e resgata a dívida do amigo de infância. Com isso, arruina o seu plano de casamento com Inês. Isso acontece várias vezes ao longo do livro, chega a ser um detalhe aflitivo. No entanto, pelo andar da carruagem, os leitores percebem que a trama caminha para o final trágico ou pelo menos deprimente: é mais previsível que em “Anna Karenina” de Tolstoi, que quase até o desfecho não dá a entender a queda da protagonista na insanidade suicida. Bem, por mais que Branca se mostre grata ao Coruja, quando este deixa a casa do casal ela já não o vê, não o visita, nem mesmo com o marido, e o deixa à míngua de recursos. Não se esperava dela, a mesma ingratidão de Teobaldo. Também pouco convincente é o desespero final deste que, desgostoso de todo o sucesso obtido, vendo-se afinal só, sem amigos — o próprio Coruja o repele — chega ao seu fim melancólico; mas sem sequer tentar ajudar o amigo de tantos anos. Sabemos além disso que os irresponsáveis e “boas-vidas”, fátuos e aproveitadores, mesmo que sintam a vacuidade de suas vidas não irão cair nessa crise de desespero. Em suma, em várias ocasiões no romance Azevedo é grandiloquente e inverossímil.
No entanto “O Coruja” é obra que dá o que pensar sobre a miséria humana e a paulatina extinção dos sonhos humanos. Desperta compaixão para com o personagem-título, cujo destino final é uma incognita. Pode-se observar também que os personagens de Azevedo em geral não têm verdadeira religião. André, o Coruja, embora procure ser extremamente bondoso, não tem ao que parece nenhuma fé religiosa. Desse modo, sua bondade também não é criteriosa: dá fuga a um assassino de esposa, acompanha Teobaldo na operação de rapto de Branca, que ao fugir da casa do pai para se casar com um indivíduo sem eira nem beira e nem caráter (isto é, o Teobaldo) provoca a morte do genitor por ataque cardíaco. E em consequência Teobaldo herda a fortuna do quase-sogro e se livra da inadimplência... e o que afinal ele oferece a Branca é o dinheiro da própria família da moça. Então concluímos o quanto a bondade do Coruja é mal orientada. Sem embargo, o coitado mata-se de trabalhar, veste-se cada vez pior, com roupas surradíssimas, sem que Teobaldo (que aos poucos vai ficando envergonhado do amigo) se preocupe em ajudá-lo ao menos a se vestir melhor.
Não sei se existe adaptação cinematográfica, teatral ou televisiva de “O Coruja” mas daria um excelente filme. É livro muito bem escrito, muito psicológico e que merece ser lido.
Rio de Janeiro, 29 de junho de 2016.