Do mundo da leitura para a leitura do mundo – resenha crítica sobre o livro “Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar” de Paulo Freire.
No livro “Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar”, Paulo Freire disserta, basicamente e de maneira mais relevante, sobre os seguintes tópicos: o ato simultâneo de ler, pensar e escrever; professora faz greve, tia não; a teoria está embutida na prática; gestão democrática, gestão autoritária; progressista versus reacionário; e, por último, do mundo da leitura para a leitura do mundo. Um corte transversal e analítico em tais tópicos será o objetivo desta Resenha porque Paulo Freire trata desses assuntos não de maneira fragmentada e independente, mas como sendo parte do mesmo quebra-cabeça. Os temas, acima propostos pelo autor, na verdade, se configuram como as demandas do professor no cotidiano de seu trabalho. Elas são urgentes e, às vezes, imperceptíveis aos olhos dos mestres cuja atenção, tão voltada para as questões que estão na ordem do dia, não percebe, com a nítida clareza, o problema sistêmico que envolve todo o processo de ensino e aprendizagem.
Já nas primeiras páginas, Paulo Freire alerta sobre a necessidade de se abolir, de vez, a nomenclatura “tia” e denuncia o inaudito político e ideológico que está, maquiavelicamente, por trás dessa simples designação afetiva. Nesse sentido, o autor dicotomiza: ser professora / ser tia, ressaltando, principalmente, o perigo de uma professora assumir a identidade de “tia” no trato com seus alunos e prevalecer essa relação afetiva e de parentesco na hora de tomar decisões políticas como parte integrante de uma classe de profissionais. No momento, por exemplo, de se fazer uma greve por reajustes salariais e melhores condições de trabalho, o profissional (professor) decidirá pela greve porque possui a noção correta de que se trata de um dissídio coletivo numa relação capital/trabalho. Por outro lado, a “tia” vai se sentir, emocionalmente, chantageada porque não poderá deixar seus “sobrinhos” sem aula e decide então por não lutar por seus direitos, enfraquecendo assim sua categoria além de desvalorizar sua profissão. Portanto, o autor de “Pedagogia do Oprimido” insinua que quem contrata a mão de obra: professor (seja o Poder Público ou a Iniciativa Privada) procura ratificar e consolidar o termo “tia” às profissionais do primeiro segmento de ensino porque o empregador conhece a carga semântica identitária dessa palavra e a influência que tal designação pode exercer no comportamento das professoras.
Entre um tópico e outro, Paulo Freire abre diversos parênteses para tratar de outros assuntos, mas correlacionados. Em um deles, o Educador se apropria do contexto histórico do início dos anos 90 (período em que foi escrito o livro), mais especificamente, em São Paulo para poder dissertar sobre a questão “progressista versus reacionário”, separando, claramente, os supostos representantes dos dois lados. Nesse sentido, os agentes políticos progressistas é (pasmem) o Partido dos Trabalhadores e seu “definido” programa ideológico (na época) voltado para as demandas sociais: construção de escolas, hospitais, saneamento básico, etc. Já os conservadores (Paulo Maluf e sua turma) apresentam um “camuflado” programa ideológico voltado para as benfeitorias públicas no lado “feliz” (é assim que Freire chama o setor paulistano dos ricos) da cidade: construção de viadutos, estradas, jardins, etc.
Outro parêntese ofertado aos leitores é sobre a reivindicada gestão democrática nas escolas públicas em contraponto à gestão autoritária. Atualmente, pelo menos aqui em Brasília, essa histórica bandeira de luta foi cravada com sucesso, mas pontuais fracassos também são percebidos: ausência de participação da comunidade escolar (pais, mestres e alunos) nos conselhos escolares, por exemplo, ou exagerada autonomia didática aos professores e ausência de projetos pedagógicos. Quando Paulo Freire vislumbrou sua escola idealizada, bateu tanto na tecla da gestão democrática porque somente nela seria possível transformar a unidade de ensino num centro comunitário de produção do saber a serviço das reais necessidades que cercam a micro sociedade da qual aquela escola faz parte. Nessa vertente, o autor defende que a teoria brota da prática. O conhecimento científico e acadêmico se encontra, no processo de ensino e aprendizagem, embutido na prática social do aprendiz. E esse conhecimento prévio, empírico, essa práxis que todo ser humano carrega, deve ser, no estudante, o ponto de partida para a aquisição do conhecimento escolar. E o papel do professor é mediar/facilitar a descoberta/aquisição do saber inédito (repetindo) que vai emergir de uma demanda concreta e presa à realidade daquele aluno.
O livro “Professora sim, tia não – Cartas a quem ousa ensinar” oferece ao receptor uma leitura dinâmica porque não se prende ao discurso erudito e tecnicista das universidades apesar do tema ser propício a isso ou do público-alvo ser o professor. Paulo Freire opta por uma linguagem lúcida que beira o coloquialismo para poder manter uma aproximação mais íntima com seu leitor. Embora, no título, todo esse estilo discursivo esteja talvez proposto, o texto não possui outras características epistolares. Não há a presença enfática do interlocutor, marcada por insistentes vocativos. A leitura do livro também é leve e prazerosa porque se tem a noção de que o autor está apresentando uma palestra ou uma aula para professores. Até mesmo as demasiadas digressões envolvem o leitor em outros assuntos correlacionados numa proposta clara de mostrar aos mestres e a todos os agentes envolvidos na Educação que o ato de ensinar é circular e nunca plano e engessado. Portanto, o ato de ensinar/aprender é multidisciplinar, da mesma maneira como é simultâneo o ato de pensar, ler e escrever.
Essas três fases do processo de aquisição do conhecimento pela leitura e divulgação do mesmo pela escrita, como já foi mencionado no parágrafo anterior, é simultâneo e homogêneo porque no mesmo instante que se lê, no pensamento, o leitor já dialoga com o texto, construindo o seu próprio texto. Uma espécie de texto-resposta. Nessa medida, a intertextualidade é instantânea e a transtextualidade é o passo seguinte. Daí que o autor martela tanto na importância de se partir do mundo da leitura para a leitura do mundo e, nesse mecanismo contínuo de receber e passar o saber á frente, constrói-se o cidadão politizado, ideologizado, pronto para decodificar os variados discursos eufemísticos que tentam esconder de si mesmo a sua real condição de humano explorado por um sistema socioeconômico cujos alicerces são pautados por crimes visíveis e invisíveis. Daí também que Paulo Freire ressignifica o sintagma nominal “cidadão”.
O conceito de cidadão (hoje, pelo status quo, tão carregado, semanticamente, de individualismos, meritocracias egocêntricas e omissas a real situação do Planeta) Freire define cidadão como o homem pronto para as transformações coletivas. Porque se o “nós” não pode obter o êxito social, o “eu” não terá o direito de festejar um sucesso somente individual.
Percebem-se, em algumas digressões desse livro, comentários que hoje se tornaram obsoletos devido ao tempo. Em 1993, poderia ser até comum, por exemplo, Paulo Freire considerar o Partido dos Trabalhadores como o principal representante da esquerda brasileira. Em um dos parênteses paulo freiriano, o PT é progressista. Hoje a realidade apresenta severo contraponto. Em treze anos de governo petista, os brasileiros presenciaram um crescimento exponencial da dívida pública (tal crescimento iniciou-se no governo tucano), enriquecimento de banqueiros e empreiteiros, desemprego (nos últimos anos), ataques aos direitos trabalhistas, e o pior: roubo escancarado e arrogante de dinheiro público cuja conclusão jurídica (não só política) será a impunidade. Tudo isso faz do PT um governo conservador, de direita e capacho do Capitalismo. A leitura do livro, nesse momento, por um receptor contemporâneo e politizado, acarreta nele certa irritação ou até mesmo, revolta por causa do anacronismo político. De qualquer forma, essas pequenas nódoas não mancharão, em sua plenitude, todo o repertório literário paulo freiriano em favor da Educação consciente, consistente, politizada, socialista e transformadora.
E onde estão as digitais de Paulo Freire na prática educacional? Para os argumentos falaciosos, a metodologia paulo freiriana nunca foi adotada na prática porque é inviável. No entanto, a Escola Superior de Ciências da Saúde aqui em Brasília (a antiga FEPECS) adota, em seus estudos, a abordagem de Paulo Freire de ensino/aprendizagem. A teoria brota realmente da prática. Não há aulas expositivas. Há estudo de casos interdisciplinar e multidisciplinar, englobando não só a Medicina Clínica, mas também a Farmacologia, a Saúde Primária Preventiva, noções de Gestão Hospitalar, os aspectos sociais nos quais estão inseridos seus pacientes, etc. Um médico formado na ESCS possui uma visão muito mais sistêmica sobre Medicina do que médicos formados em Universidades tradicionais. É certeza absoluta que o legado paulo freiriano se espalha por toda Educação brasileira. Na formação de professores, nos livros didáticos, no acréscimo e no resgate dos métodos de Vygotsky, etc. Enfim, Paulo Freire contribuiu, principalmente, na construção de uma Educação que desperta o cidadão de sua real situação de homem explorado pelo Capitalismo. E esse homem tem o dever cívico de ser não só o sujeito ativo de sua própria transformação social, mas também da transformação social de sua classe de explorados. Paulo Freire esclarece: quem produz as riquezas de uma nação capitalista é o trabalhador proletário, portanto, ele e somente ele (como metonímia de uma classe) deve exercer o poder político de resolver as demandas sociais, não só de sua classe, mas de todo país com a destruição plena e completa do Capitalismo e na construção de uma nova sociedade justa, igualitária, solidária e fraterna.
05/06/2016