Transposição Didática
 
Luiz Carlos Pais
 
Transposição Didática é o título de um capítulo que escrevi para um livro publicado, em 1999, pela Editora da PUC de São Paulo, Educação Matemática, Uma Introdução, sob a organização da professora Sílvia Dias Alcântara. Publicação essa que mereceu diferentes edições. O capítulo de minha autoria teve o objetivo de descrever as transformações por que passam os conteúdos da educação matemática, através da noção de transposição didática, tal como foi definida pelo educador francês Yves Chevallard. Descrevi algumas noções desta teoria, lembrando a necessária cautela, pois se trata de uma dupla transposição, a saber: a transposição da noção acadêmica de transposição didática, do espaço da pesquisa educacional, para o território mais amplo da formação de professores e da iniciação à pesquisa.
 
Para analisar essa evolução, é preciso destacar que o fenômeno educacional da matemática se revela por uma multiplicidade de dimensões que deve ser considerada na análise de qualquer situação didática. Quando se trata da prática pedagógica, a análise dessa multiplicidade requer priorizar aspectos, sem perder de vista suas conexões com o horizonte mais amplo da educação. Com essa visão, abordamos o objeto didático, onde uma de suas dimensões é o caminho evolutivo por que passam os conceitos, ou seja, é preciso estudar as transformações dos conteúdos escolares para melhor saber ensinar.
 
A transposição didática pode ser entendida como um caso especial da transposição dos saberes, sendo esta entendida no sentido da evolução das idéias, no plano histórico da produção intelectual da humanidade. No caso das ciências e da matemática, essa evolução ocorre sob um controle mais intenso dos respectivos paradigmas. De acordo com Khun (1975), os paradigmas são princípios e regras que os membros de uma comunidade científica compartilham entre si, visando a validação dos saberes produzidos neste contexto. Para que uma produção seja reconhecida como científica é preciso que os membros da respectiva comunidade respeitem o conjunto dessas regras. Desta forma, os conceitos de transposição e o próprio saber científico estão interligados, o que fica mais evidente quando sua análise é remetida ao plano pedagógico, onde toda transposição está relacionada a um saber específico, assim como toda aprendizagem se faz sob a influência de uma transposição.
 
A noção de transposição pode ser analisada no domínio mais específico da aprendizagem para caracterizar fluxo cognitivo relativo a evolução do conhecimento, restrita ao plano das elaborações subjetivas, pois é nesse nível que ocorre o núcleo do fenômeno. A conveniência em destacar essa dimensão da transposição está associada à necessária aplicação de conhecimentos anteriores para a aprendizagem de um novo conceito. Na síntese de uma nova idéia, cada um desses momentos não subsiste sem uma base anterior. Este é o sentido estrito da cognição normal, ou seja, nenhum conceito surge sem a existência um precedente. Assim, quando se trata da produção de um conhecimento, existe um processo que caracteriza a idéia de transposição. Por esta razão, ao estudá-la, é bom destacar uma diferença entre o saber e o conhecimento. Mesmo que no cotidiano não seja usual fazer essa diferença, para reforçar as bases de estudo da didática, somos levados a buscar maior clareza para esses termos, o que será feito num dos parágrafos do próximo capítulo.
 
O estudo das prioridades que orientam a prática pedagógica é também uma das atribuições da didática. Como resposta a essa tarefa, a didática deve fornecer referências para estabelecer propostas de conteúdo para a educação escolar. Não se trata de uma escolha direta e imediata, estamos nos referindo à existência de um longo processo seletivo por que passa os saberes. Uma das fontes de seleção do conteúdo é a própria história das ciências, que através de sucessivas transformações, resulta no perfil dos saberes escolares. Estes têm conexões com a ciência, mas se mantêm pelas suas características próprias. A noção de transposição estuda a seleção que ocorre através de uma extensa rede de influências, envolvendo diversos segmentos do sistema educacional. Essas idéias aparecem numa primeira definição dada por Yves Chevallard, na qual destaca que os sucessivos processos mudanças por que podem passar um conhecimento antes de chegar na sala de aula.
 
O estudo da trajetória dos saberes permite visualizar suas fontes de influências, passando pelos saberes científicos e por outras áreas do saber. São influências que contribuem na redefinição dos aspectos conceituais e também para a reformulação de sua apresentação. O conjunto das fontes de influências na seleção dos conteúdos recebe o nome de noosfera, segundo descrição de Chevallard, da qual fazem parte: cientistas, professores, especialistas, políticos, autores de livros e outros agentes que interferem no processo educativo. A resultante das forças exercidas pela noosfera condiciona o funcionamento de todo o sistema didático. O trabalho seletivo resulta não só na escolha de conteúdos, como também na definição de valores, objetivos e métodos, que conduzem o sistema de ensino.
 
A escolha dos conteúdos escolares se faz principalmente através das indicações contidas nos parâmetros, programas, livros didáticos, softwares educativos, entre outras fontes. Mas, embora tais fontes sejam pré-existentes ao processo de escolha, é possível perceber que alguns conteúdos são verdadeiras criações didáticas incorporadas aos programas, motivadas por supostas necessidades do ensino, servindo como recursos para facilitar a aprendizagem. A princípio, tais criações têm uma finalidade didática, entretanto, o problema surge quando sua utilização acontece desvinculada de sua finalidade principal. Este é o caso, por exemplo, dos produtos notáveis que, quando ensinados sem um contexto perceptível, passam a figurar apenas como o objeto de ensino em si mesmo. Para estar atento a essas distorções, se faz necessário cultivar um permanente espírito de vigilância que deve prevalecer na análise da transposição dos saberes, pois é o conjunto das criações didáticas que evidencia a diferença entre o saber científico e o saber ensinado.