COMTE-SPONVILLE, André. A Felicidade Desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (II)
Resumo II:
A Felicidade Malograda, ou as armadilhas da Esperança.
Este é o primeiro capítulo da excursão que André faz sobre o conceito de Felicidade. Nele, ele busca delimitar os motivos filosóficos que nos leva a não sermos felizes, “ou tão pouco, ou tão mal, ou tão raramente”.
Ainda tendo por ponte seu questionamento sobre a importância da Sabedoria já discutido no momento inicial da obra, Sponville comprova que sua necessidade se justifica exatamente pela nossa infelicidade, nossa insatisfação. Ela é necessária, porque, citando Camus, “os homens morrem, e não são felizes”. A morte para Sponville exerce um papel central no entendimento da importância da felicidade, uma vez que se não morrêssemos, não nos incomodaria muito o fato de não sermos felizes no presente, pois sempre haveria um futuro para sê-lo.
Mas ser ao mesmo tempo mortal e infeliz, ou se saber mortal sem se julgar feliz, é uma razão forte para tentar se safar, para filosofar de verdade, como dizia Epicuro, em suma, para tentar ser sábio. (COMTE-SPONVILLE, 2001, p. 17)
É preciso neste momento, então, fazer uma distinção importantíssima para que o seu discurso não pareça anacrônico ao ponto de emergir de um inocente idealismo. Existem basicamente duas situações que devem ser observadas quando pensarmos sua teoria: uma, onde não se é feliz pelos motivos sociais (guerras, mortes, fome, miséria, males que assolam a humanidade no âmbito social) para a qual a urgência principal não é o ato de filosofar. O importante nestes momentos é resistir, “sobreviver e lutar, ajudar e tratar”; e outra, onde os motivos são de ordem pessoal (tudo está bem, ou relativamente bem, mas mesmo assim não se é feliz). Esta última é que deverá ser colocada em pauta para o pensamento, para Filosofia. “O que nos falta para ser feliz, quando temos tudo para ser e não somos?”
A resposta é imediata: “Falta-nos a sabedoria”. Não no sentido dado pelos Estóicos ou Epicurianos da Grécia Antiga para os quais os sábios deveriam ser felizes em todos os momentos e adversidades, mas uma sabedoria da vida cotidiana, ou seja, um saber viver, no significado empregado por Montaigne (“não há ciência tão árdua quanto a de saber viver bem e naturalmente esta vida”). É necessário aprender a viver. Mas este aprendizado não pode durar a vida inteira, senão cairíamos num discurso inválido onde viveríamos para aprender a viver. E é por isso que utilizamos a Filosofia: para “aprender a viver, se possível antes que seja tarde demais, antes que seja absolutamente tarde demais”: esse é o desejo de todos.
É a partir deste momento que Sponville chega ao cerne na questão: para entender a Felicidade devemos antes partir do desejo, mesmo porque, segundo Aristóteles, “a felicidade é o desejável absoluto”, e enfim porque “ser feliz é, pelo menos numa primeira aproximação, ter o que desejamos”.
Mas o que seria o desejo? Platão responde em O banquete quando Sócrates, personagem do livro, discursa sobre a definição de amor: “o amor é desejo e o desejo é falta. O que não temos, o que não somos, o que nos falta, eis os objetos do desejo e do amor”. E esse é o grande problema, o que torna a felicidade impossível.
Se Felicidade é ter o que se deseja e o desejo é falta, logo nunca poderemos ser felizes. Isto porque a falta é um sofrimento e não podemos ter felicidade se nos falta o que desejamos.
Ora, se só desejamos o que não temos, nunca temos o que desejamos, logo nunca somos felizes. Não que o desejo nunca seja satisfeito, a vida não é tão difícil assim. Mas é que, assim que um desejo é satisfeito, já não há falta, logo já não há desejo. Assim que um desejo é satisfeito, ele se abole como desejo. (COMTE-SPONVILLE, 2001)
É o que em Shopenhauer chamamos de Teoria do Pêndulo: Estamos condenados a infelicidade, pois, ao desejarmos um objeto, sofremos pela sua falta e ao conseguirmos, entediamo-nos ao ponto de sofrer por tê-lo, partindo ao desejo de um novo objeto. A vida seria um grande pêndulo que vai da angústia por não ter o que desejamos ao extremo tédio por tê-lo conseguido. É o que em O Mundo como Vontade e como Representação (Livro IV) Shopenhauer resume na frase mais triste da história da filosofia: “A vida oscila, pois como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento ao tédio.
Para exemplificar esta teoria, Sponville depreende, dentre outros, o exemplo de um casal de amantes que ele encontra no livro Em busca do tempo perdido de Marcel Proust. “Albertine presente, Albertine desaparecida...”:
Quando ela não está presente, ele sofre atrozmente: está disposto a tudo para que ela volte. Quando ela está presente, ele se entedia: está disposto a tudo para que ela vá embora. Não há nada mais fácil do que amar quem não temos, quem nos falta: isso se chama estar apaixonado, e estar ao alcance de qualquer um. Mas amar quem temos, aquele ou aquela com quem vivemos, é outra coisa! Quem não viveu essas oscilações, essas intermitências do coração? (COMTE-SPONVILLE, 2001)
Na relação entre amantes, Sponville chama esse “amar o que nos falta” de tormento amoroso. Já o tédio provocado pelo fato de termos o que desejamos, ele nomeia de “um casal”.
Essa relação problemática do desejo faz com Sponville desenvolva uma crítica ao que ele chama de armadilhas da esperança. Para ele, “estamos constantemente separados da felicidade pela própria esperança que a busca”, porque a partir do momento que esperamos (esperança deve ser entendida aí em sua relação com o verbo esperar) o que não temos, somos tão menos felizes quanto mais esperança tiver. É o que Pascal resume em Pensamentos: “Assim, nunca vivemos, esperamos viver; e, dispondo-nos sempre a ser felizes, é inevitável que nunca sejamos”.
Existem, contudo, três estratégicas falhas e não-filosóficas que muitos utilizam para fugir desse ciclo de sofrimento e tédio. Essas estratégias, Sponville as analisa e conclui que são, na verdade, formas de engodos, um mentir para si mesmo que não condiz com o que ele propõe enquanto maneira filosófica de busca da verdadeira felicidade ou de uma verdade feliz. São elas:
1- A primeira ele chama de “Esquecimento”: Que seria o que Pascal chama de Diversão, ou seja, finjamos para nós mesmo, através do que os livros de auto-ajuda chamam de “pensamento positivo”, que somos felizes. Esqueçamos a infelicidade, nossa breve existência, a morte e vamos nos ocupar em outra coisa: essa forma de pensar é totalmente anti-filosófica, pois em Filosofia, trata-se exatamente do contrário, do não fingir.
2- A segunda ele chama de “Fuga para frente”: é o que se pode chamar também de cadeia da esperança, porque de em esperança em esperança, vamos adiando nossa Felicidade como um jogador de loto que toda semana deposita sua sorte no sorteio, ficando assim eternamente jogando para frente, adiando a felicidade para outro momento.
3- A terceira é um prolongamento da segunda, mas mudando de nível: Salto para frente ou Salto Religioso. Não é de esperança em esperança, mas como num salto as pessoas transferem a Felicidade para depois da morte, ou em termos teológicos: passar da esperança (como paixão) à esperança (como virtude teologal: porque ela tem Deus mesmo como objeto).
Essa estratégia tem lá suas cartas de nobreza filosófica (Pascal em Pensamentos assim se manifesta: “Só há bem nessa vida na esperança de outra vida”.)... Mas é preciso, além do mais, ter fé, e vocês sabem que não a tenho. Ou estar disposto a apostar a vida, como diria Pascal, e a isso me recuso. (COMTE-SPONVILLE, 2001)
Para ele, o “pensamento deve se submeter ao mais verdadeiro, ou ao mais verossímil, e não ao mais vantajoso”. Foi evitando essas estratégias ardilosas que Sponville propõe uma nova forma de ver a própria felicidade, uma tentativa de se libertar do ciclo de angústia e de tédio, de nos libertar da própria esperança. Este é o tema do próximo capítulo: Crítica da Esperança ou a Felicidade em Ato.