Surto com rajadas de água lusa

Adriana Calcanhoto, Saga Lusa, Rio de Janeiro: Cobogó, 2009

Título recortado com letras de caixas de remédios, Saga Lusa, de Adriana Calcanhoto, é um livro extremamente corajoso. Não se trata de ficção. Trata-se de um texto testemunho, no qual a autora narra um surto psicótico, e que tem tudo a ver com o contexto bélico e de superfície no qual vivemos, onde a memória e o referente ganham uma importância antes creditada apenas ao imaginário.

Repleta de referências existenciais, a narrativa recicla informações artísticas e culturais e brinca consigo neste grau:

“Minha mãe sempre me disse que um dia eu ia escrever um livro, gozado. A gente se esforça, batalha, luta, faz psicanálise, vai ao teatro, tudo, pra se constituir, pra ter recorte. Aí, na primeira surtadinha faz o quê? O que mamãe queria. Não sei não, achei meio caído.”

“To surtada, não surda” é um “capítulo” que dá o tom deste texto onde “curvas enganam o olhar”. Este capítulo é um prato cheio para psicólogos, psiquiatras, educadores e afins. Nele, a cantora narra como, através da escrita, encarou a Coisa (“ela ruge na tua cara”) durante a excursão do seu cd Maré, por Portugal. No palco, sentia-se “cara a cara com a multidão e seu deserto”. No seu “rito de passagem”, Adriana pede socorros a analistas e psiquiatras, cancela shows, visita hospitais. Pira com lucidez e roteiros de Suely – a produtora acesa de todas as horas.

Adriana transita por uma zona limite, perigosa. Contata um espaço no qual evitamos ir, embora um número cada vez maior dos nossos contemporâneos tenha ido, sem assumir que foi. Neste trânsito entre as imagens criadas pelas pílulas e as cenas do contexto ao seu redor, a autora contata uma dimensão antes relacionada à loucura, e hoje cada vez mais administrada no nosso meio social, através de pílulas e da criação de siglas como TOC e outros transtornos mentais. Algumas doenças são mais contemporâneas do que algumas pessoas.

Como acontece nas canções, a escrita testemunho de A C possui humor – ingrediente raro em nossas letras geralmente comprometidas em representar algum tipo de “real”. Sem deletar as so(m)bras da realidade, Saga Lusa faz rir, sentir prazer e pensar: “O que não pode é panicar, descontrole cognitivo, essas baixarias”.

O livro é um recorte da subjetividade aflita e fragmentada que circula pelos cenários bélicos e terroristas pós 11 de setembro na América. Um texto que diz muito da nossa condição contemporânea e doída, mas sem drama. A autora encara a Coisa na lata, assim: “Me erra, Coisa. Vai, sai, que este corpo não é teu.”

Toda criação requer uma ruptura com a ordem vigente. Concluída a leitura deste livro, lembro de Nise da Silveira e do seu Museu do Inconsciente. Lembro também de Van Gogh, Gauguin e Byron. Lembro de vários: Tolstoi, Antonin Artaud, Schummam, Lima Barreto, Arthur Bispo do Rosário... São tantos os nomes, na história da arte e da cultura, que ultrapassaram os limites do que chamamos normalidade... Haveria nesses criadores, e na própria Saga... de Adriana, alguma centelha daquela espécie de "loucura divina" que Platão lia como fundamento de toda criação?

A primeira versão desta resenha foi publicada no site da autora, disponível em http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_textos.php?page=3&type=5&id=522

Nonato Gurgel
Enviado por Nonato Gurgel em 05/01/2016
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