Literatura Negra
Literatura e Afrodescendência no Brasil:
Verdadeiro com a época e com as palavras
Gurgel, Nonato. Revista Via Atlântica, 21, USP, São Paulo: Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2012
I
Um marco nos estudos da Literatura Negra produzida no Brasil. Este é o tom da recepção crítica que vem tendo a antologia “Literatura e Afrodescendência no Brasil” (UFMG, 2011), organizada em 4 volumes pelo professor Eduardo de Assis Duarte. Objetivando o “resgate e a revisão historiográfica e crítica”, a obra compila a produção de 65 pesquisadores de universidades brasileiras e estrangeiras, envolvendo obras de 100 escritores afrodescendentes que datam do século XVIII até o século XXI.
Os sumários dos livros, suas apresentações, os depoimentos e demais roteiros biobibliográficos sugerem ao leitor um trânsito prazeroso pelos estudos acerca da produção literária de autoria negra no Brasil, e por gêneros como a narrativa, o ensaio, a biografia e a poesia, dentre outros. Essa multiplicidade de formas, assim como a releitura do acervo histórico-estético da tradição negra, engendra um debate acadêmico no qual ecoam as vozes da Literatura Afro-Brasileira e seus conceitos em construção.
Representativas das diferentes identidades culturais, essas vozes produzem um profícuo intertexto – histórico, crítico, ficcional – entre os autores negros de diferentes contextos históricos e estéticos.
A produção dessa intertextualidade negra auxilia na inscrição de uma tradição que começa a consolidar-se no Brasil a partir dos anos de 1930. “Nesse momento, o que era esparso assumiu uma identidade”, diz o escritor Abdias Nascimento – “o mais importante nome da cultura negra no Brasil”, segundo Maria Nazareth Soares Fonseca. Ela é co-organizadora do volume 4 da Antologia, e autora dos textos de apresentação dos poetas contemporâneos Cuti e Éle Semog.
Em seu ensaio “Literatura Negra”, a professora contrapõe a questão do ritmo na cultura africana à questão das vozes, e condensa um roteiro histórico e cultural da Literatura Negra produzida nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil. Acionar o diálogo entre esta tradição negra, os autores modernos e a produção da contemporaneidade parece ser a base do roteiro construído por Assis Duarte, como sugerem as apresentações e bibliografias atualizadas nos quatro livros assim intitulados: 1 – Precursores; 2 – Consolidação; 3 – Contemporaneidade; 4- História, teoria, polêmica.
II
Fruto de uma década de pesquisas, a obra se inscreve num contexto marcado pelo resgate de anos de luta política e embates culturais em torno da identidade do negro e sua produção estética e intelectual. Além disso, a referida coleção questiona posturas conservadoras e/ou diletantes que dialogam com a literatura como se ela fosse “um privilégio das elites” (Márcio Barbosa), e tivesse a sua fundamentação apenas naquele objeto artístico de filiação essencialmente verbal, cujo apogeu se deu no século XIX, ratificando o discurso de uma tradição cristã, branca, basicamente heterossexual e de vinculação eurocêntrica.
Os tempos são outros.
De acordo com Abdias do Nascimento, em um dos momentos mais lúcidos do seu depoimento, “a gente tem que ser verdadeiro com a época em que estamos vivendo.” Em sintonia com o criador do Teatro Experimental do Negro, sabemos que a maioria dos leitores, escritores e pesquisadores contemporâneos, todos nós convivemos com a Literatura de forma problematizada. Nenhuma aura, nenhum diletantismo nos resta. As linguagens e os demais produtos da cultura construídos neste início de milênio são carregados da história, do gênero e da cor de quem cria. Se, como argumentam alguns, embaixo de toda pele corre o sangue da mesma cor, por cima da nossa tez a história transcorre de forma diferente, e começa a ganhar outras versões.
Como atestam as versões da margem aqui copiladas, nossa história é violenta. Contrapondo-se ao histórico repressivo e ao “passo retardado da comunidade afro-brasileira” (Abdias Nascimento), a Antologia critica “o discurso da brasilidade mestiça e tolerante” (Assis Duarte), e sugere a urgência de narrar travessias e deslocamentos das “culturas africanas transplantadas ao Brasil pelos navios negreiros” (Silviano Santiago). A dívida da nossa sociedade com os autores “marcados pela cor da pele” é antiga; o que, de certa forma, pode ser mensurado na radicalidade de posturas ideológicas e propostas estéticas de autores como o poeta Cuti, que, consciente de que já não basta reproduzir os estereótipos da esquerda e os discursos ideológicos, afirma que o “viés estritamente sociológico” prejudica a Literatura Negra.
Crítico do cânone literário brasileiro, Cuti questiona alguns autores imortais e midiáticos e, atento às relações entre ética e discurso, vê a Literatura como jogo e forma de transgressão, através da qual é possível erigir o “universo subjetivo negro”. Sua leitura estética vai além da elaboração intelectual e sugere, através da bela metáfora de uma mãe negra que ama os seus filhos, a forma de pensar o futuro desses filhos resgatando elementos para além de suas consciências.
O autor de Contos crespos é representativo de uma geração de poetas para a qual é importante assumir a identidade negra, é imprescindível escrever os textos e publicar os livros; mas isso não basta. Eles sabem que, independente da cor de quem escreve, o autor precisa ter consciência da historicidade e da materialidade cultural da linguagem e das formas com as quais trabalha. Sabem ser salutar conhecer o arquivo de formas da tradição. Cuti dialoga com esta tradição afrodescendente de forma crítica, assim como o poeta e antropólogo Edmilson de Almeida Pereira que, ao combinar “lucidez e ludismo” em sua poética, usa a palavra “no sentido lúdico de recriação e ampliação da realidade.”
III
Como Cuti e Márcio Barbosa, o professor Edmilson de Almeida (uma das bibliografias mais alentadas das poéticas contemporâneas) “circula” pela Antologia em mais de um volume. Quando lido pelas lentes certeiras da ensaísta Maria José Somerlate, Edmilson surge como autor de poemas que provocam e “costumam desarmar os leitores mais incautos”. Autor dos perfis literários de Estevão Maya-Maya e Salgado Maranhão, o ensaísta Edmilson de Almeida destaca-se também entre os autores de depoimentos no volume 4. Além do seu discurso elucidativo, ressalto, no referido volume, as falas de Abdias Nascimento, Cuti e Zilá Bernd; principalmente pela forma como eles inscrevem seus roteiros existenciais e constroem os seus textos, entre a lucidez afirmativa da experiência social e a construção de uma “estética negra”, cuja história é assinada muitas vezes com sangue. Para Cuti, a construção dessa estética “é uma questão de sobrevivência.”
O discurso de cunho ético-estético-ideológico elaborado por Cuti – e ratificado por Edmilson de Almeida e outros contemporâneos – filia-se ao discurso da consciência negra oriundo da tradição. Como exemplos dessa filiação histórica destacam-se, dentre outros, os escritores “consolidados” Domício Proença Filho, Joel Rufino dos Santos e Oswaldo de Camargo, para quem a “conquista estética também é luta”. Em seu depoimento, o autor ratifica as idéias apresentadas por Regina Dalcastagné, cujo texto problematiza, por meios gráficos e estatísticos, as dificuldades do autor negro frente à falta de modelos na tradição literária.
Há no nome dessa tradição, querelas infindas: Literatura Negra ou Literatura Afrodescendente? A radicalidade de algumas leituras pode ser aferida já na seleção dos vocábulos com os quais os estudiosos buscam cognominar esta Literatura. A pesquisadora Zilá Bernd lembra que alguns autores continuam acreditando numa “singularidade” e numa “essência única”. Para esses autores, “negra” é a palavra que melhor adjetiva esta literatura, principalmente por carregar em seu significado a inscrição das inúmeras lutas sociais empreendidas pelos negros. A autora de Introdução à literatura negra critica este olhar “defasado” e, em sintonia com um referencial teórico do seu tempo, apresenta uma postura reflexiva que difere da maioria ao lembrar que separar autores pela cor é racismo.
IV
Corpus de ponta e crendo que “a concepção de arte é mutável”, Assis Duarte elege o vocábulo afrodescendente como palavra que revitaliza a cultura produzida pelos negros no atual contexto. Tal revitalização atualiza uma produção que começa a se inscrever na “Linguagem dos olhos” românticos do poeta letrado Domingos Caldas Barbosa, e chega aos contemporâneos sem nenhuma crença em aura ou essência, assim: “em cruz fico muito à vontade/ para reunir setas de revolta” (Cuti). Na leitura em torno desta tradição e dos diálogos estabelecidos entre ela e os autores modernos e contemporâneos, o organizador demonstra a contemporaneidade e a contribuição valiosa da sua empresa.
Atentando para o lugar de onde as coisas são vistas ou ditas, esse olhar contemporâneo é acionado principalmente em “Entre Orfeu e Exu, a afrodescendência toma a palavra”, onde se traça uma linha dialógica da tradição negra, e em “Por um conceito de Literatura Afro-Brasileira”, texto que traz várias vozes em torno da questão do conceito de Literatura escrita pelos negros. Para a apresentação deste conceito em construção, o ensaísta desconstrói signos culturais e estéticos. Nessa desconstrução, ele dimensiona a saturação histórica de palavras como “negro”, cujo significante atravessa, desde a Bíblia, contextos históricos datados, carregados de muitos preconceitos sociais.