A DELICADEZA DOS HIPOPÓTAMOS (Daniel Lopes)

“Escrever é fazer um pacto. O escritor, o escritor-escritor, deve estar disposto a sacrificar tudo, inclusive a própria alma, em prol da palavra.”

Na mitologia bíblica, Tamar pode ser considerada como a indesejada, aquela por quem Onã não se sente atraído. Ou talvez o seu contrário: a Onã só interessa desfrutar do corpo da viúva de seu falecido irmão Er (mais velho), mas não quer que ela tenha um filho do qual derivará a memória do morto. A tradição o obriga a entregar-se maritalmente a ela e ele, num gesto de rebeldia a Deus e a ela, prefere masturbar-se (ou gozar fora) do que ter um filho com ela.

No livro “A Delicadeza dos Hipopótamos”, romance bojudo de Daniel Lopes, temos um protagonista (Léo), que em algum momento de sua vida, volta para sua cidade natal, Tamar.

Assim como no sofisticado texto bíblico, o retorno de Léo, esse filho pródigo, é um embate frio e nada nostálgico do narrador com a cidade que o recebe. E, tal qual o enredo do Gênesis, Léo não quer Tamar, não ama Tamar, não possui Tamar, não deseja que sua relação com a cidade deixe herdeiros. É apenas uma volta. Por quê? Pra quê? Ele não nos diz. Podemos deduzir mas nunca saberemos de fato.

Se for possível formular um paralelo entre as duas metáforas, Léo perpetua a esterilidade na terra que não ama. A sua aridez se relaciona com a aridez do lugar e isso é tudo. Eles não se completam, não há sedução de nenhuma das partes. Tampouco as amizades que reencontra lhe dizem alguma coisa. Esse desencontro com a nostalgia fica evidente quando ocorre o incêndio na biblioteca da cidade. Biblioteca é o lugar que guarda e perpetua a história; sem livro, o passado passa a ser apenas oral, orientado por outros tipos de saberes e subjetivações. Também a igreja inacabada e o hospital incendiado indicam a indefinida incompletude do herói com seu tempo.

Daniel Lopes, porém, vai mais além nesse emaranhado. Determina que todos os habitantes locais são hipopótamos. E quem são os hipopótamos? A depender do protagonista, hipopótamos são sempre os outros. Tanto que um dos hipopótamos da cidade, Mauro, vive de esculpir... hipopótamos. Não cria outra coisa, a não ser hipopótamos inanimados. Duros. De pedra.

Mas eis que num dia o narrador-personagem enfim cede: “A largura do meu corpo tomou proporções imensas, enquanto continuava a inchar, partiu as roupas, não deixando mais que fiapos pendurados no meu couro suado, escuro, fétido, untado. Abri a boca e saudei a catástrofe. A Arte, como os deuses, se alimenta da destruição. Eu agora era um hipopótamo, como os outros hipopótamos de Tamar, filha de Davi, minha aldeia”.

Autor fecundo e imagético, Daniel Lopes surge aqui mais incisivo, bruto e delicado que seus próprios hipopótamos. Seu enredo flerta com Kafka, dialoga com o realismo mágico latinoamericano, anda de mãos dadas com J.J. Veiga. Mas beija sem eufemismos Conrad, adentrando selvas labirínticas como se estivesse no Coração das Trevas.

Pois é na densa névoa que recobre os silêncios entremeados de breves palavras do cotidiano de Léo em Tamar, que vemos a selvageria do homem a sós consigo. E com Deus, o seu espelho. Apenas.

Serviço:

Livro: A delicadeza dos hipopótamos

Autor: Daniel Lopes

Editora: Terracota (SP)

Ano: 2014