Forçado à gratidão [Grandes esperanças]
Sob o mote da gratidão, bem presente ao longo de “Grandes Esperanças”, é possível abordar a trama de Charles Dickens pelo que ela tem de semelhante à de Victor Hugo em “Os Miseráveis”, obra que lhe é contemporânea. Ambas as histórias se desenvolvem a partir de um inesperado gesto de bondade em favor de um forçado que se reconhecia não merecedor. Em consequência, os personagens das duas narrativas tomam decisões que revolucionam as suas vidas. É como se brasas de fogo se amontoassem sobre as suas cabeças, como diz o provérbio. Não obstante, continuam sujeitos à incompreensão dos homens e, principalmente, da justiça.
Mas se a transformação de Jean Valjean foi, antes de tudo, espiritual, tendo como resultado a sua busca por uma vida tão virtuosa como aquela de que um dia se beneficiou, a de Abel Magwitch, o forçado da história de Dickens, voltou-se exclusivamente para a pessoa a quem devia ser grato. Porque um dia lhe mataram a fome, Abel jurou que mandaria ao seu benfeitor o primeiro dinheiro que ganhasse – e, mais tarde, jurou que, se ficasse rico, iria enriquecê-lo também. É quando começam as esperanças do pequeno Pip, personagem central da trama.
Acontece que a motivação para o gesto que deu origem à mudança do personagem também é diferente nos livros de Hugo e Dickens. No primeiro caso, ele nasce dos elevados princípios do bispo de Digne, certamente um dos mais exemplares personagens cristãos da literatura. Já na história de Dickens, ele nasce unicamente do medo. É sob violentas sacudidas e ameaças de cortar o pescoço, alusões a um companheiro que poderia arrancar-lhe o fígado e o coração, e ainda obrigando-o a pedir que Deus o castigasse de morte se não fizesse o que lhe ordenava, que Magwitch extrai do pequeno Pip o ato de bondade que irá tocá-lo intimamente.
É que, além de ver em Pip a filha que um dia teve, o forçado não estava acostumado com a caridade alheia. Abandonado muito cedo, a ponto de desconhecer o próprio nome, viveu uma vida de recorrentes prisões, e pode-se mesmo dizer que cresceu dentro delas. Com esse histórico, ficou com fama de incorrigível. Era visitado por religiosos, mas estes lhe davam livros que ele, como analfabeto, não podia ler, e ainda concentravam os seus sermões no demônio, sem parecer se importar com as necessidades imediatas do forçado que, afinal, tinha fome. O amedrontado Pip foi o primeiro a fazer algo efetivo pela vida Magwitch: deu-lhe de comer.
Como o gesto de Pip não nasceu do amor, mas do medo, ele teve dificuldade em aceitar que a origem das suas esperanças procedia daquele forçado. O curioso é que, com o tempo, também em Pip se opera uma transformação com origem na gratidão. Magwitch, afinal, trabalhou duro para fazer dele um cavalheiro e arriscou a própria vida para revê-lo. E Pip não apenas passou a ver o forçado com outros olhos como, através dele, começou a compensar as faltas cometidas contra as pessoas que queria bem – sobretudo o honesto ferreiro Joe, em cuja casa cresceu.
Embora atormentado pelo sentimento de ingratidão desde o momento em que deixou a sua casa com destino a Londres, Pip só encontrou força suficiente para resolver o conflito quando também ele se sentiu não merecedor de um gesto de bondade. Assim, quando Joe, “homem excelente”, “verdadeiro cristão”, o mesmo Joe que ele praticamente esquecera, veio cuidar dele quando estava enfermo e frustrado em suas esperanças, Pip sentiu toda a vergonha da sua ingratidão. E, como não se passa impune por esse sentimento, buscou emendar a sua vida.
É interessante que, já depois de tomar disposições nesse sentido, Pip sofra acusações injustas de ingratidão por parte de seu parente Pumblechook. Embora aturdido pelo seu cinismo, Pip não defende a sua imagem diante daqueles que presenciavam a cena. Sofre a injustiça, como também sofreu Magwitch em seu julgamento, parecendo deixar a sentença para “Aquele que tudo sabe e não pode se enganar” – este, talvez faça o bem que, afinal, não merecemos.