Respire Mais uma Vez – Milagre nos Andes: 72 Dias na Montanha e Minha Longa Volta para Casa
“Você está deixando a distância sufocá-lo (...) desmistifique a montanha.” (p. 243)
“Tudo estava errado no nosso caso - a violência e o estrondo da queda, o sofrimento gritante, o barulho e o caos da nossa triste batalha pela sobrevivência. Tudo aquilo destoava daquele lugar. A vida destoava daquele lugar. Era tudo uma violação da serenidade perfeita que reinara por milhões e milhões de anos. Senti isso no primeiro instante em que olhei para as montanhas; havíamos perturbado um equilíbrio antigo, e o equilíbrio precisava ser restabelecido. Sentia isso ao meu redor, no silencio, no frio. Algo queria reaver aquele silencio perfeito, algo nas montanhas queria nos calar.” (p. 240)
A cada passo, cada respiração, centímetros a mais na jornada infindável. Parecia carregar o peso do mundo sobre os ombros, escalando, com o último impulso de forças, a encosta íngreme e gelada, podia ouvir as batidas de seu coração, a boca seca, a mente obstinada... De repente, já não havia nada para subir, não podia ir mais alto. O silêncio sepulcral o obrigou a prostrar de joelhos sobre a montanha, não pode respirar naquele momento, o que seus olhos viram foi ao mesmo tempo terrível e transcendente. Tudo que pode ver, tudo que sua visão alcançou até a linha do horizonte, foram os picos nevados da cordilheira dos Andes.
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A Maioria das pessoas que procuram por esse livro, em algum momento de sua vida, sentado no confortável sofá da sala, em mais uma sessão de filmes na tela pequena de uma TV de tubo; deve ter se deparado com filme Vivos (Alive 1993), talvez por isso ache a história tão familiar ou por isso tenha chegado até aqui, bom, esse foi meu caso. Certo dia pesquisando, no vasto mundo da internet, sobre antropofagia e canibalismo me vi, novamente, imersa na história dos sobreviventes dos Andes e, desde então os fatos não me saem da cabeça, um relato tão forte, tão intenso, uma pancada primorosa que a vida deu nesses rapazes uruguaianos, que a meu ver, merecia quantas versões pudessem ser escritas. Nas palavras de Vince Rause o coautor do livro em questão:
“É a melhor história que já ouvi, e ter tido a chance de ajudá-lo a contá-la foi um privilégio inesquecível” (p. 373)
A tragédia... Milagre nos Andes, escrito mais de trinta anos depois do acidente, traz ao leitor uma nova perspectiva em relação ao ocorrido já descrito no livro Sobreviventes publicado em 1974. Nessas pequenas letras impressas sobre o papel enxergamos através dos olhos de Nando Parrado, um jogador de rúgbi de 19 anos que se vê, de um dia para outro, arrancado de sua realidade e transportado para um mundo completamente inimaginável, no meio da cordilheira dos Andes, cercado por montanhas de mais de 3.000 metros de altura. Mais de vinte pessoas ilhadas por meses na fuselagem de um pequeno avião fretado por eles, um Fairchild F-227. E os que tentavam vencer os picos congelantes encontravam dificuldades que jamais pensaram enfrentar:
“Eu os via daquele jeito, imóveis no escuro, mais três amigos que já não passavam de coisas congeladas” (p 139)
A fome... Um dos momentos mais perturbadores e pelo qual o incidente foi estigmatizado, o canibalismo ou antropofagia foi, não só relatado, mas destrinchado por Nando que não poupa o leitor dos detalhes. É impossível tratar de um assunto tão delicado quanto esse sem causar repulsão, até mesmo nos mais fortes, os rapazes enfrentaram todo tipo de preconceito desde que retornaram das montanhas há quatro décadas. Enquanto no livro os sobreviventes, os fatos são vistos pelo lado de fora com autor Paul Piers Read como espectador, as cenas descritas são chocantes, quase banalização do corpo humano, o transformado em objeto de consumo. Em Milagre nos Andes, Nando mostra toda a situação por dentro, nos transportando para os destroços escuro e fétido da aeronave, na realidade nua e crua em que viveram por 72 dias. Os jovens, a maioria na casa dos vinte anos, muitos nem sequer conheciam neve, se encontravam a mercê da cordilheira, numa imensidão branca que eles julgavam impossível mensurar, obrigados a enfrentar o extremo: fome, sede, frio, tempestades e avalanches:
“Enquanto tremia na neve viscosa, completamente desesperado e forçado a mastigar os punhados crus e umedecidos de carne cortada na minha frente do corpo dos meus amigos, era difícil acreditar na existência de qualquer coisa antes da queda” (p. 179)
A jornada... É um livro sobre vida, morte e superação, entretanto o que mais impressiona é o relato da odisseia enfrentada por Nando Parrado e Roberto Canessa. Nesse ambiente hostil, abandonados pelo resgate, meninos debilitados sem nenhum conhecimento em montanhismo partiram em uma corajosa expedição rumo a um destino incerto em busca de ajuda. “Mas, na realidade o que parecia otimismo não era nada do gênero. Era pânico. Era terror. A urgência que me impulsionava a viajar para o oeste era a mesma que leva um homem a saltar de um prédio em chamas (...) aguardando a fração de segundos na qual uma morte faz mais sentido que a outra” (p. 233). Em confronto com a morte iminente e a paisagem exuberante, os dois caminharam por dez dias sem equipamentos pela cordilheira dos Andes até encontrar Sergio Catalão, um humilde camponês que chamou o resgate.
“Não sei quanto tempo fiquei ali olhando. Um minuto. Talvez dois. Fiquei imóvel até sentir uma pressão queimar meus pulmões e percebi que havia me esquecido de respirar” (p. 258)
Vida após Andes... O autor, ainda, reserva o epilogo para narrar o que houve após da tragédia, conta sobre como ele e os amigos encararam a vida depois de sair das montanhas. Nando foi piloto por muitos anos, casou-se e teve duas filhas, hoje é produtor de televisão e realiza palestras sobre o acidente. Todos os anos, no aniversário do resgate, os 16 sobreviventes se encontram em comemoração.
Milagre nos Andes é uma história real, impressionante e muito intensa, um livro capaz de deixar o leitor sem ar por longos minutos, e, sem dúvida, mudar a sua maneira de ver o mundo ao seu redor.
“Respire. Respire mais uma vez. Enquanto estiver respirando, você estará vivo. Após todos esses anos, este ainda é o melhor conselho que posso lhe dar: saboreie sua existência. Viva cada momento. Não desperdice uma respiração.” (p. 366)
PARRADO, Nando; RAUSE, Vince. Milagre nos Andes: 72 Dias na Montanha e Minha Longa Volta para Casa.Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.