LEALDADE E DESLEALDADE. Uma resenha necessária.
Lealdade e Deslealdade (Editora Central Gospel, 2013, 3 ed. 216 páginas) da autoria de Dag Heward-Mills é mais uma daquelas obras chamadas de “teológicas” cuja profundidade não ultrapassa a metáfora do pires de uma xícara de chá, mas que se apresenta, já na 3ª edição em português, como um instrumento para cultivar o ego de vaidosos líderes eclesiásticos que se arrogam o direito de manipular consciências e manietar tomada de decisões firmadas na responsabilidade de quem consegue exercer a liberdade de consciência com responsabilidade e individualidade.
O autor, de nacionalidade ganense, é reconhecido Bispo da Capela do Farol Internacional, um segmento pentecostal com amplo desenvolvimento na África, eminentemente em Gana, porém, presente agora em muitos outros países africanos através do seu ministério e Cruzada “Jesus Cura”. Este foi o seu primeiro livro publicado nos Estados Unidos, e foi utilizado como referência bibliográfica para os Seminários da Worldwide Ministry Leaders que corresponde aos seminários para líderes também conhecidos no Brasil.
Segundo informação dos seus editores em português, Dag Heward-Mills teria sido miraculosamente ungido por Deus para o exercício de um ministério global enquanto cursava medicina em Gana, e este chamado sobrenatural o tem levado à realização das Cruzadas “Jesus Cura” com manifestações espantosas de curas e milagres que incluem desde o esvaziamento de cadeiras de rodas até à ressurreição de um morto.
Em doze capítulos de fraquíssima, para não dizer inexistente, exegese sobre o que seja LEALDADE do ponto de vista bíblico, Heward-Mills relata experiências vividas no curso do seu ministério como bispo de uma denominação criada, organizada e plenamente dirigida por ele mesmo, enfatizando a necessidade de exercer irrestrito controle individual sobre liderados quanto à visão recebida do alto para o desenvolvimento da igreja. Noutras palavras, ele mesmo declara isto nas páginas 23 e 24 do seu livro, conforme transcrição que segue:
“Quando o rei optou pela paz, seu braço direito decidiu fazer o contrário. Embora devesse submeter-se aos desejos do rei, ele foi adiante em seu plano. Pessoas assim são perigosas. Joabe poderia ter atirado uma nação inteira em uma guerra por meio de suas ações independentes.
Há pessoas assim na Igreja. O fundador ou pastor principal é geralmente o portador da visão. Ele lidera o caminho porque ele é o cabeça. Todos os pastores assistentes e líderes na igreja devem seguir no fluxo de sua visão. Um “pastor Joabe”, independente, irá apenas trazer confusão e contenda à igreja. Observe essas pessoas na igreja porque elas estão somente a poucos estágios da rebelião escancarada.”
Impossível não identificar na obra a dose forte de “messianismo” a serviço de uma liderança “sênior” equivocadamente respaldada em textos extraídos das Escrituras como pretexto para a validação de conceitos e princípios de organização eclesiástica tendo em vista a manutenção de um projeto de poder que consiste na manipulação da fé e consciência de centenas de pessoas que serão atingidas pelo discurso messiânico do autor.
Curiosamente, embora compreensível, o autor não apresenta em nenhum dos doze capítulos do seu livro qualquer análise exegética dos termos que constituem o título da obra, ou seja, Lealdade e Deslealdade. Ao contrário disso, desfila um rosário de exemplos em que a sua própria liderança teria sido contestada e o que foi feito para se corrigir esta contestação. O resultado disso foi o afastamento de todos quantos foram considerados desleais à orientação eclesiástica do Bispo Dag Heward-Mills. E em outros casos citados, a oposição mereceu uma declaração de maldição sobre o contestador que alcançaria até mesmo a família deste.
Possivelmente, a observação mais incisiva que merece atenção nesta crítica é o fato de o autor confundir a deslealdade com o exercício da liberdade de consciência e responsabilidade para a tomada de decisões individuais. Na sua visão messiânica, a liderança do pastor ou bispo chega a ser inquestionável sob pena de ser identificada como rebelião, e isto é extremamente perigoso, pois esta coercitividade intelectual encontra-se a serviço da massificação e da dominação. Mais ou menos como ocorria à época do Despotismo Esclarecido quando os líderes procuravam legitimar o seu poder com o argumento de que sabiam exercê-lo, só que neste caso em especial, o despotismo esclarecido fundamenta-se na vocação sobrenatural e miraculosa da unção de Deus sobre o autor. Afinal de contas, àquilo que se diz ter sido recebido do próprio Deus, como a investidura messiânica, por exemplo, não pode haver contestação ou qualquer espécie de oposição. Trata-se, portanto, de mais um caso de se colocar Deus e o Espírito Santo a serviço da megalomania de alguém.
Finalmente, uma palavra necessária sobre a bibliografia apresentada. São elencadas sessenta obras presumivelmente consultadas acerca das quais não existem quaisquer referências em notas de rodapé em todo o texto do autor. Claro que isto nos permite dar asas à imaginação para afirmar terem sido colocadas ali apenas para impressionar o leitor como tentativa de legitimar o discutível conhecimento bíblico do autor acerca do tema proposto.
Embora o título do livro desperte muita curiosidade, principalmente numa cultura onde a corrupção parece dominar a consciência de muitos, o desenvolvimento da tese inexistente é pueril, insatisfatório e nada escriturístico. Não serve para ser considerado um livro de cabeceira e recomendar a sua leitura como instrumento para capacitação de lideranças em nossas igrejas chega a ser uma irresponsabilidade teológica.
Brasília-DF
Verão de 2015.