Resenhas - Livro MARCORÉ, de Antonio Olavo Pereira (1913-1993, Prêmio Romance da Academia Brasileira de Letras, editora Arqueiro ( edição original - 1957, nova edição 2013).
1. Por Sandra Fayad
Finda a leitura do livro, ocorreram-me alguns conceitos sobre a relação de pais e filhos. Destaco as seguintes citações para ilustrar a parte final das minhas conclusões:
1. "Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos da ânsia da vida por si mesma. ...Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, porque eles têm seus próprios pensamentos. Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas." (Gibran Khalil Gibran, em "O Profeta").
Erich Fromm, em seu livro "A Arte de Amar" analisa várias formas de manifestação do amor, dentre elas o amor entre pais e filhos. Neste caso, em particular , afirma: "o amor de mãe é incondicional...é cego, é pacífico, não precisa ser adquirido. O amor paterno, como todas as outras formas de amor, é amor condicional. Seu princípio é: Amo-te porque preenches minhas expectativas, porque cumpres o teu dever, porque és como eu." Mais adiante, ainda afirma: "É uma ilusão imaginar que no amor não exista conflitos – ele é um desafio constante."
Inicialmente, a obra pareceu-me enfadonha, com o protagonista da trama dissertando minuciosamente sobre a rotina de uma cidadezinha do interior, onde ele exercia a atividade de oficial-maior do cartório local, auxiliado por um humilde escrevente. A narrativa sem atrativos vai descrevendo a rotina da vida pacata típica do interior do Brasil, onde os dias passam lentos, as mulheres supervisionam a casa e a educação dos filhos - tarefas conferidas às empregadas fiéis - e os homens exercem as atividades institucionais e comerciais sem sobressaltos. Sobra tempo para apreciar a natureza, desde os movimentos da lua e das estrelas até a distinção entre um e outro piar dos pássaros ou florescer de uma orquídea. Sobra tempo também para exercer constante vigilância sobre os movimentos da sociedade. Todos os passos de todos os moradores são objeto de controle velado, e sujeito a consequências desde atos piedosos até pesadas punições. A vida privada é tema de conversas e mudanças ocorrem em função das maledicências. Nosso protagonista, pela própria atividade cartorial, tanto quanto o médico e o sacerdote, é profundo conhecedor da intimidade de cada cidadão e de cada lar. É nesta linha que o autor traça a trama da história.
Casamentos, formação familiar, religiosidade, dedicação dos serviçais, rivalidade, intriga, doenças - são itens explorados detalhadamente, mostrando os hábitos e costumes, as alegrias e as tristezas de um momento da sociedade interiorana do Brasil.
A criança, nascida de uma união aparentemente estável, realiza a façanha de transformar a visão do protagonista, tornando-o mais introspectivo. Se antes ele criticava e questionava o comportamento dos demais, agora era a si que o fazia, com o intuito de investir na sua própria continuidade.
A partir do nascimento do filho, o protagonista anti-herói realiza uma experiência nova de amor paternal, mas se frustra porque esbarra nos obstáculos que criou no passado com sua própria atitude de intolerância e ausência de humildade.
2. Por Antonio Augusto dos Reis Veloso
3. Por Ena Galvão
Marcoré (Antônio Olavo Pereira)
1. Por Sandra Fayad
Finda a leitura do livro, ocorreram-me alguns conceitos sobre a relação de pais e filhos. Destaco as seguintes citações para ilustrar a parte final das minhas conclusões:
1. "Vossos filhos não são vossos filhos. São os filhos da ânsia da vida por si mesma. ...Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, porque eles têm seus próprios pensamentos. Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas." (Gibran Khalil Gibran, em "O Profeta").
Erich Fromm, em seu livro "A Arte de Amar" analisa várias formas de manifestação do amor, dentre elas o amor entre pais e filhos. Neste caso, em particular , afirma: "o amor de mãe é incondicional...é cego, é pacífico, não precisa ser adquirido. O amor paterno, como todas as outras formas de amor, é amor condicional. Seu princípio é: Amo-te porque preenches minhas expectativas, porque cumpres o teu dever, porque és como eu." Mais adiante, ainda afirma: "É uma ilusão imaginar que no amor não exista conflitos – ele é um desafio constante."
Inicialmente, a obra pareceu-me enfadonha, com o protagonista da trama dissertando minuciosamente sobre a rotina de uma cidadezinha do interior, onde ele exercia a atividade de oficial-maior do cartório local, auxiliado por um humilde escrevente. A narrativa sem atrativos vai descrevendo a rotina da vida pacata típica do interior do Brasil, onde os dias passam lentos, as mulheres supervisionam a casa e a educação dos filhos - tarefas conferidas às empregadas fiéis - e os homens exercem as atividades institucionais e comerciais sem sobressaltos. Sobra tempo para apreciar a natureza, desde os movimentos da lua e das estrelas até a distinção entre um e outro piar dos pássaros ou florescer de uma orquídea. Sobra tempo também para exercer constante vigilância sobre os movimentos da sociedade. Todos os passos de todos os moradores são objeto de controle velado, e sujeito a consequências desde atos piedosos até pesadas punições. A vida privada é tema de conversas e mudanças ocorrem em função das maledicências. Nosso protagonista, pela própria atividade cartorial, tanto quanto o médico e o sacerdote, é profundo conhecedor da intimidade de cada cidadão e de cada lar. É nesta linha que o autor traça a trama da história.
Casamentos, formação familiar, religiosidade, dedicação dos serviçais, rivalidade, intriga, doenças - são itens explorados detalhadamente, mostrando os hábitos e costumes, as alegrias e as tristezas de um momento da sociedade interiorana do Brasil.
A criança, nascida de uma união aparentemente estável, realiza a façanha de transformar a visão do protagonista, tornando-o mais introspectivo. Se antes ele criticava e questionava o comportamento dos demais, agora era a si que o fazia, com o intuito de investir na sua própria continuidade.
A partir do nascimento do filho, o protagonista anti-herói realiza uma experiência nova de amor paternal, mas se frustra porque esbarra nos obstáculos que criou no passado com sua própria atitude de intolerância e ausência de humildade.
2. Por Antonio Augusto dos Reis Veloso
‘’Marcoré’’, de Antonio Olavo Pereira, Editora Arqueiro, 1957-2013, 222 páginas.
O romance, em estilo sóbrio e elegante, é melancólico, triste. Publicado em 1957, foi aclamado pelo público e pela crítica, tendo recebido o Prêmio de Romance da Academia Brasileira de Letras. O autor, Antonio Olavo Pereira, nasceu em Batatais, no interior de São Paulo, em 1913 e faleceu em 1993, ou seja, com 80 anos. Era irmão do grande editor José Olimpio, com quem trabalhou por mais de 50 anos, na direção do departamento editorial da Livraria José Olimpio. A narrativa conta, com intimidade, a história de uma família numa cidade do interior de São de Paulo, tendo como protagonista o oficial – maior do cartório da cidade, casado com a doce e frágil Sílvia. É contada, com simplicidade e apuro, a história do dia a dia da cidade e da vida pessoal da família,todos morando na mesma casa, com o pacífico sogro Seu Camilo, a irascível e autoritária sogra D.Ema e a participação dos demais personagens locais, que cruzam e formam um painel singular e marcante, desenvolvendo uma sufocante rotina familiar. A difícil convivência humana é de repente agravada com a surpreendente expectativa, depois de dez anos de casamento, de que Silvia está finalmente grávida do primeiro filho, Marco Aurélio – o Marcoré. Trata-se de uma profunda transformação – todos envolvidos densamente com a chegada desse esperado primeiro filho, foco de um generalizado e amplo amor. Para começo de conversa, a surpresa da confissão de Sílvia, revelando ao marido que, na suprema aflição do parto, assumiu a promessa de manter-se em plena castidade. Surgem, então, mudanças inesperadas e profundas na vida de todos, inclusive o relacionamento mal definido do narrador com a viúva Emiliana, agravando os conflitos familiares, destacadamente com a mãe e a arrebatada sogra, e no final, com o filho Marcoré. O padrão interiorano da história e o estilo memorialista colocam o texto num ritmo lento de leitura, cobrando atenção e concentração do leitor, o que é compensado pela qualidade, apuro e elegância do autor. (publicação autorizada pelo autor do texto).
O romance, em estilo sóbrio e elegante, é melancólico, triste. Publicado em 1957, foi aclamado pelo público e pela crítica, tendo recebido o Prêmio de Romance da Academia Brasileira de Letras. O autor, Antonio Olavo Pereira, nasceu em Batatais, no interior de São Paulo, em 1913 e faleceu em 1993, ou seja, com 80 anos. Era irmão do grande editor José Olimpio, com quem trabalhou por mais de 50 anos, na direção do departamento editorial da Livraria José Olimpio. A narrativa conta, com intimidade, a história de uma família numa cidade do interior de São de Paulo, tendo como protagonista o oficial – maior do cartório da cidade, casado com a doce e frágil Sílvia. É contada, com simplicidade e apuro, a história do dia a dia da cidade e da vida pessoal da família,todos morando na mesma casa, com o pacífico sogro Seu Camilo, a irascível e autoritária sogra D.Ema e a participação dos demais personagens locais, que cruzam e formam um painel singular e marcante, desenvolvendo uma sufocante rotina familiar. A difícil convivência humana é de repente agravada com a surpreendente expectativa, depois de dez anos de casamento, de que Silvia está finalmente grávida do primeiro filho, Marco Aurélio – o Marcoré. Trata-se de uma profunda transformação – todos envolvidos densamente com a chegada desse esperado primeiro filho, foco de um generalizado e amplo amor. Para começo de conversa, a surpresa da confissão de Sílvia, revelando ao marido que, na suprema aflição do parto, assumiu a promessa de manter-se em plena castidade. Surgem, então, mudanças inesperadas e profundas na vida de todos, inclusive o relacionamento mal definido do narrador com a viúva Emiliana, agravando os conflitos familiares, destacadamente com a mãe e a arrebatada sogra, e no final, com o filho Marcoré. O padrão interiorano da história e o estilo memorialista colocam o texto num ritmo lento de leitura, cobrando atenção e concentração do leitor, o que é compensado pela qualidade, apuro e elegância do autor. (publicação autorizada pelo autor do texto).
3. Por Ena Galvão
Marcoré (Antônio Olavo Pereira)
Triste história. História triste. Essa é a sensação que se tem durante toda a leitura. O autor retrata tão bem seus personagens que vivemos com eles seus dramas e suas alegrias. Uma delas, bastante marcante é o anúncio da chegada de um filho tão esperado por longos anos e que sempre dava a impressão de que não mais viria.
A notícia deixa o pai aturdido, imóvel esperando que seja confirmada a gravidez
e não represente apenas um alarme falso. Seu pensamento expressa todo o
sentimento contraditório que inunda sua alma; dúvida, alegria, desejo intenso de prolongamento da família, insegurança e por aí vai. Já não contava mais com a ideia de Dona Ema, sua sogra, pessoa de temperamento ácido e de difícil convivência, não acredita. Não é a primeira vez que nutre a esperança de ser avó e tudo acaba em nada. Seu Camilo, ao contrário, está feliz e já antevê suas brincadeiras com o neto.
Afinal, essa vida que se prenuncia, traz alegria a todos da família e ao compadrio.
Silvia, a mamãe radiante e seu pai Camilo são efetivamente as pessoas que mais se entusiasmam. Embora haja uma discussão entre vir um menino ou uma menina.
Confirmados os exames, já se pode anunciar com orgulho a chagada do herdeiro. Como soe acontecer em cidades pequenas onde todos se conhecem, os comentários sobre a gravidez fazem parte da ordem do dia.
A sogra de Silvia, pessoa mal humorada, começa a alimentar um sentimento de
abandono por não estar presente todo o tempo e ainda lhe sobra tempo para
alimentar um sentimento de competição com a outra avó.
E vem um garotão confirmando as previsões e simpatias. E ele passa então a
ser o centro da atenção de todos naquela casa. Para o papai coruja é a confirmação de sua identidade paterna e de sua virilidade.
Silvia passa todo o tempo absorvida com a criança e tudo que a ela diz respeito.
A ela deram o nome de Marco Aurélio a quem, carinhosamente, sua mãe denominava de Marcoré. Meses passam e o filhote cada vez mais esperto. Procuro Silvia à noite, depois de muito respeitar seu resguardo e me surpreendo com uma promessa feita a Nossa Senhora, que permaneceria casta pelo resto de sua vida, se seu filho nascesse saudável. Sinto-me traído, pensa o pai, ao não fazer parte dessa decisão que lhe afeta. Essa promessa corroborou para colocar como parte da vida, o compartilhamento com uma amante. Isso valeu a censura de todos da casa e dos conhecidos amigos. Esse comportamento parecia a todos inadequado e o silêncio foi testemunha da dor ao tomar essa atitude. Conflitos muitos fizeram parte diuturna deste cenário. Hoje sua vida está dividida entre duas mulheres. Mas em momento algum Marcoré deixou de ser a razão de sua vida.
O tempo passa e Seu Camilo perde o interesse em tudo que não se referia ao
neto. Sua saúde começa a declinar. Aos três anos, Marcoré convive com a dor da
perda, mesmo sem entender muito seu significado. Primeiro foi um pássaro que retinha em uma caixa de sapatos e que não parava mais de dormir. Logo depois foi a Marcoré adoece com a tosse comprida e se afasta para ares mais puros durante seis meses. A dor da separação era insuportável e só então foi confirmado o destaque que ele representava em nossas vidas. No seu retorno o pai volta às experiências de infância para estar mais próximo a Marcoré.
Silvia, de saúde frágil, começa a definhar. Suas forças se esvaindo e sua vida
junto. Para complicar o quadro há desentendimentos com sua mão que vai embora da casa, prometendo nunca mais voltar. E assim foi feito. Sua profunda tristeza pelo afastamento de sua mãe, aliada a uma fraqueza física levam-na desta vida.
Marcoré passa a frequentar com assiduidade a casa da avó materna e os laços de
sangue e afeto se fortalecem. Mais uma vez a vida que tira alguém importante. Sua vó. Já bastante crescido toma a decisão de ir para São Paulo estudar e viver com seu padrinho. Afasta-se recriminando o pai por ter amantes, por não gostar de sua vó e todos os defeitos do pai foram-lhe jogado de frente, transformando sua alma em dor profunda pela “perda” do filho e da esperança de viver e lutar.
Lá se foi a razão de sua vida. O tempo passa e a solidão toma conta de tudo. Na noite de ano novo, planta-se ao lado do telefone na esperança de que o filho ligue. Em vão.
O vocabulário é rico e, muitas vezes, tive de recorrer ao dicionário, seja para buscar entender expressões comuns a uma dada região, seja por limitação. Não é sem razão que obteve premiações. O autor abre sua alma às dores e fraquezas e vê sua vida desmoronado pouco a pouco. Só lhe resta uma grande dor e as cinzas do Marcoré.
No início afirmei que muitas vezes me confundi com os personagens. Isso se
confirma ao fazer minha síntese. Não consegui me distanciar.O livro é interessante e se assemelha muito à vida de pessoas que vivem no interior.(publicação autorizada pela autora do texto).
4. Por Murilo Veras
MARCORÉ – MEMÓRIA FAMILIAR
Murilo Moreira Veras
ANTÔNIO OLAVO PEREIRA é paulista, irmão do famoso proprietário da Editora José Olympio. É autor desta narrativa memorialista – Marcoré – livro premiado pela Academia Brasileira de Letras. Publicado em 1957, não só consagrou o autor, como foi editado em Portugal e nos Estados Unidos, tendo, inclusive, já alcançado 13 edições. Portanto, não é uma obra qualquer. Antônio Olavo Pereira faleceu em 1993, aos 80 anos.
Não obstante tudo isso, a rigor, trata-se de uma história muito triste, essa do pai rememorando uma parte de sua vida, justamente sobre o nascimento e a vida até a adolescência de seu primeiro e único filho, Marco Aurélio, que sua mãe o apelidou de MARCORÉ, acordes toda a família.
O que o autor quer dizer ao narrar essa história da vida de um menino, que desde o início mereceu todas as atenções, não só do pai, mas da mãe, do avô, da avó e dos demais agregados à família.?
Não estaria se referindo à própria educação brasileira, projetada no menino, que é formado no seio da família, quase irresponsavelmente, portanto, despreparado para enfrentar a vida, no caso, a evolução da Nação, ainda mais agora sob o impacto dos novos tempos? Será que a narração do pai, colocando o menino no centro dos acontecimentos de sua vida familiar, e, por consequência, da sociedade, o autor não nos adverte que o brasileiro cresce ao sabor de culturas, já atrasadas, tolhido pelas tradições, ao mesmo tempo que é influenciado pelo contexto, tendo que lidar com os fatos cotidianos, sobretudo os conflitos familiares?
Observe-se: a felicidade e toda a esperança dele, pai, o narrador confidente, repousam naquele único filho, causador de grande felicidade, mas também de angústia. Trata-se de um memorial em que um pai narra sua vida tendo por espelho a imagem do próprio filho. É a história também de uma cidade interiorana, os vários personagens que se entrecruzam – espécie de caminhos cruzados. Não precisamente os CAMINHOS CRUZADOS, novela de Érico Veríssimo, esta por sinal muito criticada pela Igreja Católica, que a considerou de leitura inapropriada.
Em MARCORÉ o estilo é bem diferente, os caminhos não se cruzam, apenas se complementam, como num teatro cujos personagens se sequenciam na mesma cena. O foco narrativo e também dramático se fecham praticamente em dois personagens: Sílvia, a mulher do narrador e Marcoré, primeiro e único filho do casal.
Se cabe uma comparação, com os devidos reparos, apontaríamos, como modelo o romance DOM CASMURRO de Machado de Assis. Aliás, assinale-se desde já que há semelhanças entre as duas obras. É visível a influência do Bruxo de Cosme Velho na escritura olaviana. É possível também vislumbrar, em MARCORÉ, traços literários de outro grande escritor intimista, o mineiro Autran Dourado, cuja obra se caracteriza por retratar pequenas cidades interioranas mineiras e seus moradores como espelho da humanidade, dando aos conflitos parciais o vezo de universalidade.
O estilo memorialista — assinale-se — não é muito corriqueiro, requer certa habilidade do autor em convencer o leitor, fazê-lo acreditar na sua versão. Sob pena de cair no chavão e na mediocridade do personalismo. O narrador precisa fisgar o interesse do leitor que passa a compartilhar de sua história, felicidade ou dor.
Compare-se, por exemplo, essa narrativa de memórias com o memorialismo polifônico de Guimarães Rosa em sua obra prima GRANDE SERTÃO: VEREDAS. Ali, o autor vai enfiando na história principal várias outras narrativas, sobressaindo vários personagens, enquanto descreve cenários os mais estranhos, sempre rústicos, utilizando inclusive novas formas de expressão, uma profusão de linguagem e vocábulos criados e imaginados, dentro de um contexto ora de absoluta rusticidade, ora de notável sofisticação. O que não é o caso específico de nosso Antônio Olavo cuja escritura prima pela simplicidade de estilo, embora se espelhe de forma correta, sem deslustrar a norma culta como prioritária. Talvez resida ai a originalidade de seu texto. Na verdade, o autor procura conter sua narração a níveis que se adequem ao estilo memorialista, onde descabem arroubos mais ousados em experiências vanguardistas de expressão e linguagem. Também ele não se inclina em adotar a linguagem seca e rústica de Graciliano Ramos, em sua pequena obra-prima VIDAS SECAS — embora tenha sido, ele, Antonio Olavo, revisor oficial da obra do escritor alagoano.
O forte em MARCORÉ é enfatizar as relações humanas, os relacionamentos familiares, quase sempre conflituosos, entre marido e mulher, pais e filhos, sogra e genro — caso específico deste livro. O narrador, por sinal, não identificado no romance, vive às turras com a sogra, D.Ema, a quem chama de “velha”, a qual, por sua vez, implica com ele e até com a própria filha Sílvia.
Em MARCORÉ podemos pinçar vários núcleos dramáticos. Enumeremo-los, apenas para fins elucidativos:
Sob o ponto de vista estritamente literário, MARCORÉ é um livro bem acabado, linguagem escorreita, urdidura convincente tratando-se de memórias. Ressente-se de certos revestimentos experienciais, com pouco ou quase nenhuma descrição, o enredo seu ponto de partida e de chegada, em desenrolar intimista, enfim todas as características da chamada novela psicológica. E nisto pressente-se também em Antônio Olavo a estilística machadiana.
Por esses e outros contrapontos, MARCORÉ é um livro de certo modo de leitura enfadonha, espécie de cantilena de um personagem que não consegue superar seus próprios defeitos, defeitos, por sinal, vezeiros a todo gênero memorialista. Só os gênios conseguem superar esse traço negativo, coisa que nosso autor não o é, tampouco outros que exploraram esse veio, como Humberto de Campos, por exemplo, cujas Memórias só decantam desprazer e infelicidades.
Sem falar, ainda, que o livro de Antônio Olavo aborda uma história triste, numa triste história, de um pai que não consegue se relacionar com o filho, certamente por sua secura interior, própria das pessoas infelizes.
È o que tenho a dizer, à guisa de crítica.
Bsb, 4.01.15
(publicação autorizada pelo autor do texto).
A notícia deixa o pai aturdido, imóvel esperando que seja confirmada a gravidez
e não represente apenas um alarme falso. Seu pensamento expressa todo o
sentimento contraditório que inunda sua alma; dúvida, alegria, desejo intenso de prolongamento da família, insegurança e por aí vai. Já não contava mais com a ideia de Dona Ema, sua sogra, pessoa de temperamento ácido e de difícil convivência, não acredita. Não é a primeira vez que nutre a esperança de ser avó e tudo acaba em nada. Seu Camilo, ao contrário, está feliz e já antevê suas brincadeiras com o neto.
Afinal, essa vida que se prenuncia, traz alegria a todos da família e ao compadrio.
Silvia, a mamãe radiante e seu pai Camilo são efetivamente as pessoas que mais se entusiasmam. Embora haja uma discussão entre vir um menino ou uma menina.
Confirmados os exames, já se pode anunciar com orgulho a chagada do herdeiro. Como soe acontecer em cidades pequenas onde todos se conhecem, os comentários sobre a gravidez fazem parte da ordem do dia.
A sogra de Silvia, pessoa mal humorada, começa a alimentar um sentimento de
abandono por não estar presente todo o tempo e ainda lhe sobra tempo para
alimentar um sentimento de competição com a outra avó.
E vem um garotão confirmando as previsões e simpatias. E ele passa então a
ser o centro da atenção de todos naquela casa. Para o papai coruja é a confirmação de sua identidade paterna e de sua virilidade.
Silvia passa todo o tempo absorvida com a criança e tudo que a ela diz respeito.
A ela deram o nome de Marco Aurélio a quem, carinhosamente, sua mãe denominava de Marcoré. Meses passam e o filhote cada vez mais esperto. Procuro Silvia à noite, depois de muito respeitar seu resguardo e me surpreendo com uma promessa feita a Nossa Senhora, que permaneceria casta pelo resto de sua vida, se seu filho nascesse saudável. Sinto-me traído, pensa o pai, ao não fazer parte dessa decisão que lhe afeta. Essa promessa corroborou para colocar como parte da vida, o compartilhamento com uma amante. Isso valeu a censura de todos da casa e dos conhecidos amigos. Esse comportamento parecia a todos inadequado e o silêncio foi testemunha da dor ao tomar essa atitude. Conflitos muitos fizeram parte diuturna deste cenário. Hoje sua vida está dividida entre duas mulheres. Mas em momento algum Marcoré deixou de ser a razão de sua vida.
O tempo passa e Seu Camilo perde o interesse em tudo que não se referia ao
neto. Sua saúde começa a declinar. Aos três anos, Marcoré convive com a dor da
perda, mesmo sem entender muito seu significado. Primeiro foi um pássaro que retinha em uma caixa de sapatos e que não parava mais de dormir. Logo depois foi a Marcoré adoece com a tosse comprida e se afasta para ares mais puros durante seis meses. A dor da separação era insuportável e só então foi confirmado o destaque que ele representava em nossas vidas. No seu retorno o pai volta às experiências de infância para estar mais próximo a Marcoré.
Silvia, de saúde frágil, começa a definhar. Suas forças se esvaindo e sua vida
junto. Para complicar o quadro há desentendimentos com sua mão que vai embora da casa, prometendo nunca mais voltar. E assim foi feito. Sua profunda tristeza pelo afastamento de sua mãe, aliada a uma fraqueza física levam-na desta vida.
Marcoré passa a frequentar com assiduidade a casa da avó materna e os laços de
sangue e afeto se fortalecem. Mais uma vez a vida que tira alguém importante. Sua vó. Já bastante crescido toma a decisão de ir para São Paulo estudar e viver com seu padrinho. Afasta-se recriminando o pai por ter amantes, por não gostar de sua vó e todos os defeitos do pai foram-lhe jogado de frente, transformando sua alma em dor profunda pela “perda” do filho e da esperança de viver e lutar.
Lá se foi a razão de sua vida. O tempo passa e a solidão toma conta de tudo. Na noite de ano novo, planta-se ao lado do telefone na esperança de que o filho ligue. Em vão.
O vocabulário é rico e, muitas vezes, tive de recorrer ao dicionário, seja para buscar entender expressões comuns a uma dada região, seja por limitação. Não é sem razão que obteve premiações. O autor abre sua alma às dores e fraquezas e vê sua vida desmoronado pouco a pouco. Só lhe resta uma grande dor e as cinzas do Marcoré.
No início afirmei que muitas vezes me confundi com os personagens. Isso se
confirma ao fazer minha síntese. Não consegui me distanciar.O livro é interessante e se assemelha muito à vida de pessoas que vivem no interior.(publicação autorizada pela autora do texto).
4. Por Murilo Veras
MARCORÉ – MEMÓRIA FAMILIAR
Murilo Moreira Veras
ANTÔNIO OLAVO PEREIRA é paulista, irmão do famoso proprietário da Editora José Olympio. É autor desta narrativa memorialista – Marcoré – livro premiado pela Academia Brasileira de Letras. Publicado em 1957, não só consagrou o autor, como foi editado em Portugal e nos Estados Unidos, tendo, inclusive, já alcançado 13 edições. Portanto, não é uma obra qualquer. Antônio Olavo Pereira faleceu em 1993, aos 80 anos.
Não obstante tudo isso, a rigor, trata-se de uma história muito triste, essa do pai rememorando uma parte de sua vida, justamente sobre o nascimento e a vida até a adolescência de seu primeiro e único filho, Marco Aurélio, que sua mãe o apelidou de MARCORÉ, acordes toda a família.
O que o autor quer dizer ao narrar essa história da vida de um menino, que desde o início mereceu todas as atenções, não só do pai, mas da mãe, do avô, da avó e dos demais agregados à família.?
Não estaria se referindo à própria educação brasileira, projetada no menino, que é formado no seio da família, quase irresponsavelmente, portanto, despreparado para enfrentar a vida, no caso, a evolução da Nação, ainda mais agora sob o impacto dos novos tempos? Será que a narração do pai, colocando o menino no centro dos acontecimentos de sua vida familiar, e, por consequência, da sociedade, o autor não nos adverte que o brasileiro cresce ao sabor de culturas, já atrasadas, tolhido pelas tradições, ao mesmo tempo que é influenciado pelo contexto, tendo que lidar com os fatos cotidianos, sobretudo os conflitos familiares?
Observe-se: a felicidade e toda a esperança dele, pai, o narrador confidente, repousam naquele único filho, causador de grande felicidade, mas também de angústia. Trata-se de um memorial em que um pai narra sua vida tendo por espelho a imagem do próprio filho. É a história também de uma cidade interiorana, os vários personagens que se entrecruzam – espécie de caminhos cruzados. Não precisamente os CAMINHOS CRUZADOS, novela de Érico Veríssimo, esta por sinal muito criticada pela Igreja Católica, que a considerou de leitura inapropriada.
Em MARCORÉ o estilo é bem diferente, os caminhos não se cruzam, apenas se complementam, como num teatro cujos personagens se sequenciam na mesma cena. O foco narrativo e também dramático se fecham praticamente em dois personagens: Sílvia, a mulher do narrador e Marcoré, primeiro e único filho do casal.
Se cabe uma comparação, com os devidos reparos, apontaríamos, como modelo o romance DOM CASMURRO de Machado de Assis. Aliás, assinale-se desde já que há semelhanças entre as duas obras. É visível a influência do Bruxo de Cosme Velho na escritura olaviana. É possível também vislumbrar, em MARCORÉ, traços literários de outro grande escritor intimista, o mineiro Autran Dourado, cuja obra se caracteriza por retratar pequenas cidades interioranas mineiras e seus moradores como espelho da humanidade, dando aos conflitos parciais o vezo de universalidade.
O estilo memorialista — assinale-se — não é muito corriqueiro, requer certa habilidade do autor em convencer o leitor, fazê-lo acreditar na sua versão. Sob pena de cair no chavão e na mediocridade do personalismo. O narrador precisa fisgar o interesse do leitor que passa a compartilhar de sua história, felicidade ou dor.
Compare-se, por exemplo, essa narrativa de memórias com o memorialismo polifônico de Guimarães Rosa em sua obra prima GRANDE SERTÃO: VEREDAS. Ali, o autor vai enfiando na história principal várias outras narrativas, sobressaindo vários personagens, enquanto descreve cenários os mais estranhos, sempre rústicos, utilizando inclusive novas formas de expressão, uma profusão de linguagem e vocábulos criados e imaginados, dentro de um contexto ora de absoluta rusticidade, ora de notável sofisticação. O que não é o caso específico de nosso Antônio Olavo cuja escritura prima pela simplicidade de estilo, embora se espelhe de forma correta, sem deslustrar a norma culta como prioritária. Talvez resida ai a originalidade de seu texto. Na verdade, o autor procura conter sua narração a níveis que se adequem ao estilo memorialista, onde descabem arroubos mais ousados em experiências vanguardistas de expressão e linguagem. Também ele não se inclina em adotar a linguagem seca e rústica de Graciliano Ramos, em sua pequena obra-prima VIDAS SECAS — embora tenha sido, ele, Antonio Olavo, revisor oficial da obra do escritor alagoano.
O forte em MARCORÉ é enfatizar as relações humanas, os relacionamentos familiares, quase sempre conflituosos, entre marido e mulher, pais e filhos, sogra e genro — caso específico deste livro. O narrador, por sinal, não identificado no romance, vive às turras com a sogra, D.Ema, a quem chama de “velha”, a qual, por sua vez, implica com ele e até com a própria filha Sílvia.
Em MARCORÉ podemos pinçar vários núcleos dramáticos. Enumeremo-los, apenas para fins elucidativos:
- o narrador tem problemas com sua própria mãe e irmãs;
a sogra implica com ele por ter sido contra o casamento dele com sua filha Sílvia;
seu relacionamento com a mulher, Sílvia, está estremecido devido a promessa extemporânea por ela feita a Nossa Senhora de não fazer mais sexo com o marido, caso seu parto fora de época tivesse sucesso e seu filho (Marcoré) nascesse, sem qualquer defeito físico – o que realmente aconteceu;
esse núcleo, mais tarde, se subdivide noutro, quando o narrador, para se compensar da falta de sexo com a mulher, procura ter amantes (Emiliana e outras);
como não bastasse, o conflito final: o do próprio Marcoré com o pai, que passa a se rebelar e não aceitar mais sua companhia;
finalmente, o pior de todos os núcleos dramáticos: o da solidão do confessor, já praticamente desprezado pelo próprio filho que tanto amava.
Sob o ponto de vista estritamente literário, MARCORÉ é um livro bem acabado, linguagem escorreita, urdidura convincente tratando-se de memórias. Ressente-se de certos revestimentos experienciais, com pouco ou quase nenhuma descrição, o enredo seu ponto de partida e de chegada, em desenrolar intimista, enfim todas as características da chamada novela psicológica. E nisto pressente-se também em Antônio Olavo a estilística machadiana.
Por esses e outros contrapontos, MARCORÉ é um livro de certo modo de leitura enfadonha, espécie de cantilena de um personagem que não consegue superar seus próprios defeitos, defeitos, por sinal, vezeiros a todo gênero memorialista. Só os gênios conseguem superar esse traço negativo, coisa que nosso autor não o é, tampouco outros que exploraram esse veio, como Humberto de Campos, por exemplo, cujas Memórias só decantam desprazer e infelicidades.
Sem falar, ainda, que o livro de Antônio Olavo aborda uma história triste, numa triste história, de um pai que não consegue se relacionar com o filho, certamente por sua secura interior, própria das pessoas infelizes.
È o que tenho a dizer, à guisa de crítica.
Bsb, 4.01.15
(publicação autorizada pelo autor do texto).