O Cristo Recrucificado
O Cristo Recrucificado é uma bela novela escrita pelo grego Nikos Kasantizákis, o mesmo que escreveu A Ultima Tentação de Cristo, que serviu de inspiração para o filme do mesmo nome de Martin Scorcese em 1971 e que tanta celeuma provocou na época . Nikos é filósofo e escritor fissurado em Jesus e sua obra. Sua grande procura é entendê-la, não como objetivo religioso, mas como fundamento filosófico mesmo, para justificar as próprias ações pessoais. A pergunta que ele põe é a mesma da mais conhecida estrofe do filme Jesus Cristo Super Star, que também tem traços da sua obra: Jesus Cristo, quem é você e o que você sacrificou?
O enredo de Cristo Recrucificado é arquetípico. O Conselho paroquial de uma aldeia grega, antes da primeira guerra mundial, a cada sete anos escolhe entre os habitantes da aldeia os atores que irão representar os personagens da paixão de Cristo. Um pastor, Manolius, foi escolhido para representar Jesus, dois de seus amigos, Michelis e Costantis serão os apóstolos João e Tiago, um aldeão irascível e malvado chamado Panayotes será Judas, a viúva alegre da aldeia será Madalena, um velho senhor de terras, chamado Ladas, avarento e invejoso, fará o papel de Caifáz e assim por diante. Por osmose ou por aquilo que os praticantes de PNL chamam de ancoragem, de repente, esses aldeões começam a revelar em seus comportamentos exatamente aquilo que eles pensam existir, de fato, nos seus personagens.
A partir desse retrato o autor começa a fazer os retratos psicológicos dos seus personagens e a moldar seus comportamentos dentro de um ambiente que envolve as questões politicas e sociais da época (começo do século XX, quando a Grécia ainda estava sob o domínio do império otomano). Questões ainda latentes e não resolvidas até hoje são postas, como o conflito de ideias entre o islamismo e o cristianismo, comunismo versus capitalismo, a função social da religião etc. O bolchevismo, que na época era uma doutrina politica que se espalhava pela Europa, é colocado como fundo de relevo para o desenvolvimento da história toda, que acaba repetindo a saga de Jesus Cristo e termina com o mesmo questionamento que é feito na ópera “Jesus Cristo Super Star”: Jesus, quem é você e o que você sacrificou?
No centro do enredo está envolvida uma questão que nunca foi resolvida a contento pela teologia do cristianismo: qual era realmente a missão de Jesus? Era política, representada pela libertação do povo de Israel do domínio estrangeiro ou simplesmente religiosa ( devolver a religião judaica á sua primitiva pureza, quando ela ainda não havia sido contaminada pelos doutrinadores)? Esse também é o conflito do personagem Manólios.
Esse conflito é patente no enredo da história. O autor o coloca na moldura da época evocando a grandeza da antiga tradição grega contra a modernidade representada pela dominação turca. Uma reedição do conflito judeus versus romanos. Licrovrissi, a aldeia onde a história se passa é uma aldeia rica. Seus habitantes vivem bem, o agá, espécie de prefeito turco, não incomoda muito desde que os tributos sejam pagos, os ricos proprietários de terras, o padre, o mestre escola, são as pessoas mais importantes do lugar. Os servos e os camponeses tem o suficiente para viver e tudo está bem. Até que uma onda de imigrantes que foram expulsos de suas terras chega a Licrovrissi. Guiados por um padre do tipo franciscano (desapegado dos bens materiais) a horda faminta e maltrapilha é hostilizada e expulsa pela população de Licrovrissi e acaba se fixando nas cavernas próximas á aldeia. A partir dai gera-se um novo conflito entre o padre egoísta e mesquinho da aldeia e o padre desapegado e virtuoso que guia o grupo dos sem-teto. Estabelece-se aí o conflito entre os que tem e os que não têm, o qual irá dividir os habitantes da aldeia.
Manólios, o pastor escolhido para representar Jesus assume a defesa dos desabrigados. Seus dois amigos, escolhidos para discípulos o seguem. Um deles, Michelis é filho de um rico proprietário de terras. Ao fazer sua escolha desagrada o pai que acaba morrendo de desgosto. Ele doa suas terras aos desabrigados e com isso começa uma guerra entre os habitantes da aldeia e os sem-teto. O padre da aldeia (capitalista) lidera os habitantes de Licrovrissi e o padre desapegado (comunista) os desabrigados. Em meio a tudo isso Manolios, o Cristo, é morto tentando acabar com o conflito. Oferece a si mesmo como cordeiro do sacrifício. Algumas pessoas morreram no confronto, a aldeia foi parcialmente destruída e os sem-teto não conseguem tomar posse das terras que lhes foram dadas e são obrigados a pegar a estrada de novo. Nada muda em Licrovrissi, mas Manolios torna-se um mártir e doravante seu nome será cultuado pelos sem-teto como santo. No desenrolar da história todos os personagens desempenham seus papéis de acordo com os arquétipos do evangelho e neles se pode reconhecer Judas, Tiago, João, Pedro, Maria Madalena, Pilatos, Anás e Caifáz e os demais atores  da história bíblica.
Ao contrário do que parece, de início, a novela de Kazantizátis não é iconoclasta. Na verdade, ela releva a verdadeira fé, representada pelas crenças simples e ingênuas do homem comum, que acredita de fato nas virtudes da doutrina que ele abraçou. Ainda que seus pastores se revelem, ás vezes, como traidores dessa mesma fé, como o padre da aldeia (o Caifáz da trama) há uma profunda mensagem de esperança e encorajamento nas atitudes dos homens, que mesmo sofrendo as piores injustiças, a rigorosa impiedade dos seus conterrâneos, a indiferença das autoridades, a traição dos supostos amigos, a calúnia, a mentira e o dissabor de sair derrotado de uma luta onde se empenhou a própria vida, ainda assim, conclui que tudo valeu a pena.
Por fim, o que fica dessa encantadora novela de Kasantzákis é a mensagem bergsoniana de que o maior valor da vida não está nos resultados que as nossas ações provocam, mas na felicidade que nos vem ao fazê-las. Em suma, o mundo sempre sobreviverá a nós, mas quem não é livre para fazer as próprias escolhas, não tem uma verdadeira vida.
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Nikos Kazantizákis(1883-1957)  nasceu em Megálo Kástro (Μεγάλο Κάστρο, hoje Heraclião) capital da ilha de Creta, em 1883, que na época estava sob o domínio turco. Em 1902, mudou-se para Atenas, onde estudou Direito na Universidade daquela cidade. Em 1907, mudou-se para França para estudar filosofia na Universidade de Paris (Sorbonne). Tornou-se adepto da filosofia de Henri Bergson. Traduziu para o grego várias obras de filosofia e, em 1914 iniciou uma série de viagens pelo mundo, vivenciando os grandes acontecimentos da época, tais como a revolução russa, a guerra dos Bálcãs, a guerra civil espanhola, a revolução chinesa e a segunda guerra mundial, neles se envolvendo, agindo sempre de acordo com sua própria crença, a de que o único ideal pelo qual se deve viver e até morrer é a liberdade de fazer as próprias escolhas. Além das obras acima citadas, Nikos Kazantizákis também é autor da famosa novela Zorba o Grego.