NARCISO, Fernando Yanmar. Um dia como outro qualquer. Montes Claros: Millennium, 2014.
 

Uma crônica depois da outra

 

Se não me engano, foi no ano de 2009, em uma sala de cursinho preparatório, lecionando Português, que deparei com uma figura curiosíssima. Um rapaz que interrompia as explicações para fazer suas observações, muitas das quais ultrapassavam a compreensão consensual dos alunos. É claro que naquele tempo eu não tinha a menor noção de quem ele era e de quem se tornaria Fernando Yanmar Narciso.


Não tenho pretensões de enaltecer o trabalho literário desse escritor. Mas não seria justo comigo mesmo se dissesse que o livro desse inaudito autor é apenas mais um que vem a público. Há muito tempo que eu não lia uma escrita tão bem articulada, intelectualizada e crítica diante dos mais simples aos mais complexos fatos corriqueiros da vida. Um dia como outro qualquer não é qualquer livro. É um manual de reflexões vitais para se pensar a existência.

Engana-se o leitor se acredita estar diante de um livro de crônicas de jornais. Os textos de Fernando Yanmar Narciso perpassam, como o próprio índice esclarece, pelos campos da vida comum, da política, da sociedade capitalista, da cultura e das artes, das crenças e dos valores... uma miscelânea de pensamentos que vão desde simples ditados populares à filosofia hindu. Sua pena é abastecida em um tinteiro todo em chamas, numa tinta efervescente que o permite plainar sobre várias áreas do conhecimento e várias experiências.

As caricaturas do autor que abrem cada seção são provocativas e sintetizadas na caricatura que abre o livro: um Fernando segurando uma bomba. Sim, suas crônicas são verdadeiras explosões, que vêm para tirar-nos do cômodo sofá e nos transportar para o senso crítico. Divididas em “Fatos da vida”, “Política”, “Cultura”, “Cinema”, “Deus e Cia.”, são quase cinquenta crônicas que possuem em comum o tom satírico e cômico, característico do autor.

O primeiro texto, “Um dia como outro qualquer”, é um soco na comodidade e na vida moralmente correta de todos nós. Um “eu” que acorda disposto a tocar fogo em tudo, que deseja mandar os “exemplos” tomar naquele lugar, que agride a esposa, que foge de sua dieta saudável, que ultrapassa os limites entre patrão e empregado, que se liberta por um dia de tudo o que lhe sufoca. Deixando de lado a verossimilhança, o texto nos revela aquele ser que há dentro de cada um de nós que, um dia, deseja pisar fora de seu quadrado.

A segunda crônica, “Segregando e andando”, mostra como a sociedade, à medida que anda, segrega cada vez mais e de forma institucionalizada. Narciso nos leva a pensar em datas de celebrações de raças, crenças, eventos que, em si, já trazem preconceito e orgulho. Um Brasil que não se cansa de datar feriados, para confirmar o comum senso de que aqui as coisas só funcionam depois do Carnaval. O cronista pontua o dia internacional da mulher, mas não há o do homem; o dia da consciência negra, mas não há o da branca; passeata do orgulho gay, mas não do orgulho heterossexual. Em síntese, o autor nos faz pensar que todas essas datas não servem mais que intensificar a distinção. Então, que se radicalize: que se crie o dia da consciência burra, retrógada e preconceituosa para que se pare de criar tanta consciência sem consciência nenhuma.

A próxima crônica, “Odeie-me com paixão”, mostra o nosso curiosíssimo gesto de julgar as celebridades e sentir ódio delas pelos seus atos repugnantes, sem que isso não faça nenhuma diferença em nossas vidas de meros expectadores. Sentamo-nos diante do televisor para assistir a programas de fofocas acerca da vida de famosos. Saber quem brigou com quem, quem traiu quem, quem confessou sua opção sexual é um atrativo sem atração nenhuma. Seja acrescida a isso a arguta observação sobre as brigas nos estádios de futebol. Torcedores que se matam por que bolas entraram mais em uma rede que em outra. E no fim, o que se ganha? Ironicamente o autor diz que Hitler teria orgulho de nossa geração.

E com a mesma criticidade e sensibilidade seguem as crônicas de Um dia como outro qualquer. Seria preciso uma resenha de laudas significativas para abordar todo o conteúdo proposto por Fernando Yanmar Narciso. Deixo aqui, nestas poucas linhas, uma provocação para que os leitores adentrem nas provocações desse jovem escritor que já nasce grande. O encanto das crônicas de Narciso não está apenas em sua fineza sarcástica, mas na imagem que o leitor faz de quem as escreve. Um jovem com uma vasta leitura de mundo, capaz de acordar qualquer teoria adormecida e de agitar as que estão despertas, para lembrar a elas que, neste mundo, é melhor que fiquem espertas.