Resenha de Lucíola, de José de Alencar
No Romance Lucíola, a personagem-título traz um caráter complexo, ambíguo. A começar pelo nome Lucíola, diminutivo de Lúcia, do latim "Lucius", que significa luz, brilho. Também se assemelha graficamente à palavra Lúcifer, de mesmo significado. A partir dessas analogias é possível traçar esse perfil de mulher criado por José de Alencar.
Recém chegado à corte carioca, Paulo, um jovem de boa família, terá um papel decisivo na vida de Lúcia, a mais bela e desejada cortesã do Rio de Janeiro. Uma mulher que, embora atrelada ao meio da prostituição, conserva uma aparência angelical, como se apesar de suas práticas não fosse totalmente absorvida pela atmosfera sórdida na qual habita. A despeito das devassidões a que submete seu corpo, existe nela uma elevação moral, a castidade espiritual, que poucas pessoas alcançam.
Paulo, à primeira vista encanta-se:
— Que linda menina! exclamei para meu companheiro, que também admirava. Como deve ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso!
(ALENCAR; José, 1992, p.17).
Logo, o amigo fará questão de desenganá-lo. Nesse trecho, percebe-se um dos ditames da época:
— Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la ?. . .
Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que confundira a máscara hipócrita do vício com o modesto recato da inocência. Só então notei que aquela moça estava só, e que a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão, devia-me ter feito suspeitar a verdade.
(ALENCAR; José, 1992, p.15)
A cortesã é facilmente identificável numa sociedade totalmente patriarcal em que, uma senhora considerada respeitável, nem sequer saía de casa desacompanhada. O fato de Lúcia estar só é o bastante para que ela não seja considerada uma mulher séria. Ainda que rica e independente, uma mulher tinha de ter sempre perto de si quem a livrasse do vulgo "prostituta". Seja um tutor ou uma dama de companhia, na falta de parentes mais próximos. – É o que se pode observar em outros romances urbanos de José de Alencar, como “Senhora”.
Vindo da província, portanto alheio à maledicência daquele círculo social, Paulo é o único que tem a sensibilidade necessária para perceber as qualidades morais de Lúcia.
A auréola de inocência que a rodeia apesar de tudo; as amostras de dignidade em meio às ações mais degradantes são fatores inexplicáveis, inconciliáveis. É visível a peculiaridade do caráter da moça que, ora surge como anjo, ora como demônio.
Num mesmo ser coabitam a candura e a sensualidade.Como amante ela é submissa e ao mesmo tempo voluntariosa. O autor, com sutileza, cria uma atmosfera de crescente mistério em que o leitor também acaba seduzido por esta incógnita.
O romance entre uma celebridade carioca e um jovem de província gera boatos na sociedade fluminense. Aquela que é desejada por tantos homens distingue Paulo com uma fidelidade descabida para uma mulher em sua condição. Pois Lúcia, sendo uma prostituta de luxo, é vista também como uma espécie de objeto de domínio público, sem direito sobre seu corpo e seus sentimentos:
"Ah,esquecia-me que uma mulher como eu não se pertence; é uma coisa pública , um carro de praça, que não pode recusar quem chega."
(ALENCAR; José, 1992, p. 67).
Começam a surgir boatos maliciosos, como uma forma de coibir um enlace inconveniente àquele meio. Paulo, então, vê-se divido entre o sentimento que carrega e o papel que cumpria numa realidade em que se vivia para os outros e não para si, pois tudo gira em torno dos padrões comportamentais da época.
Entre idas e vindas, a conturbada união somente se harmoniza junto da natureza. É como se Lúcia , desvinculando-se do meio urbano, pudesse enfim alcançar a paz almejada.
No auge de seus encantos, ela refugia-se na obscuridade, pratica o desapego material, como se negociasse o resgate de si própria. E é através de Paulo que se dá essa redenção, pois Lúcia encontra nele, finalmente, o amor verdadeiro. Então, o laço que une a ambos deixa de ser mero envolvimento carnal e passa a ser um enlace sentimental, espiritual. Eis a sublimação que caracteriza o ponto alto do romance.
— Naquele dia... não soube explicar-lhe... É isto! Veja! A lama deste tanque é meu corpo:enquanto a deixam no fundo e em repouso, a água está pura e límpida!
Acredite ou não, Lúcia acabava de me revelar naquela imagem simples um fenômeno psicológico que eu nunca teria suspeitado.
(ALENCAR; José, 1992, p.104)
Personagem esférica, Lúcia passa por radical transformação: ela abandona o luxo e o poder que a rodeiam para ter uma vida simples, no campo. O refúgio, a descoberta da essência do homem, o enleio romântico entre a natureza, é característico de obras do romantismo como em “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe.
É nesse âmbito que a história da moça é revelada, e sua imagem passa de libertina a mártir que com a vergonha e a humilhação salvou a vida daqueles que amava: no passado, sem meios para manter a família que adoece por conta de uma febre amarela, ela vê-se nas mãos de Couto, que se aproveita da situação para aliciá-la. Ao remontar o passado, Lúcia revela sua identidade verdadeira: Maria da Glória. “Maria”, nome consagrado e santificado; o nome da mãe de Jesus. Nome de batismo que remete ao respeitável, ao socialmente aceito.
Na época em que se passa o romance, o crescimento da urbanização, devido à Revolução Industrial, criou um universo capitalista que enjeitava aqueles que não tivessem poder aquisitivo. Poucas eram as formas de ascensão social para famílias nessas condições, sobretudo às mulheres, cuja única proteção provinha do pai, e ,futuramente, do marido. Uma vez expulsa pelo pai e desonrada, sem possibilidades de arranjar um bom casamento, só restava a prostituição como meio de subsistência. Maria da Glória é, portanto, uma vítima do meio social em que vive.
Com suma habilidade, o autor faz da cortesã, ser execrável em todas as épocas e culturas (e ainda hoje) , uma heroína – o que não deixa de ser uma transgressão para a época. Mas esse respeito e afeição do leitor custam à personagem o recolhimento, a abstinência sexual, a negação dos prazeres, a total anulação de sua pessoa. É ela própria quem se defende “... o vinho não é menos bom, nem menos generoso, no cálice usado, do que no cálice novo”, (ALENCAR; José, 1992, p. 71) para depois resignar-se: “Há sentimentos e gozos que ainda não sentiste, e só uma esposa casta e pura te pode dar”. (ALENCAR; José, 1992, p.122).
Em constantes remissivas cristãs, há sempre a disposição dos opostos: o pecado e a virtude; o sofrimento e o prazer; a fama e a obscuridade; o luxo e a modéstia. Que não podem, de forma alguma, ocupar o mesmo tempo-espaço. A elevação moral que a heroína atinge é feita através de sua abnegação. Os desejos carnais e prazeres terrenos – tão naturais da criatura humana – são demonizados, considerados obstáculos para a sua redenção.
Um preço ainda mais alto é imposto: a morte dela e conseguintemente do filho, fruto de um relacionamento ilegítimo, é o ideal para que ela tenha, enfim, a remissão dos pecados, a libertação e a paz eterna. É notável a marginalização, o estigma, que embora sem culpa, essa mulher esteja indissoluvelmente condenada, por uma sociedade corrupta, hipócrita e mesquinha.
Lucíola, conforme o prólogo do livro, também remete ao nome de um inseto que vive à beira do charco, porém reluz no escuro. Metáfora perfeita para descrever Lúcia, que mantém a nobreza de caráter embora viva num meio torpe e impiedoso.
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ALENCAR, José.
Lucíola – Romance – Editora Ática, 1992.