A casa *
“Sonho então, sob a luz das estrelas, que sou uma fluida aquarela a espraiar-se refletida no cristal das águas.”
A Casa (1999) é um romance pós-moderno da escritora cearense Natércia Campos, filha de Moreira Campos, maior contista cearense, autor de “Dizem que os cães veem coisas”. Natércia iniciou a carreira de escritora com seu livro de contos chamado Iluminuras (1988), o livro reúne quinze contos, incluindo o conto “A Escada”. A escritora ocupa a cadeira de nº 6 na Academia Cearense de Letras.
O título do romance é simplesmente “A casa” por três razões de ser a casa, o espaço onde desencadeiam-se as ações ou memórias; personagem e narradora ao contar sua própria história. A casa da Trindades não é personificada ou antropomorfizada, animada ela tem “voz” enquanto narradora e ciência de tudo que se passa dentro e fora dela mesma. Suas paredes ouvem e veem, a casa feita de sentidos não toma a forma humana, na sua forma e essência de casa é uma fortaleza e abrigo.
Construída com madeiras de lei dura e pesada e a massa de suas paredes preparadas com sangue de boi, a casa representa solidez e força capaz de abrigar muitas gerações que por ela passaram. A casa é uma longa memória narrada em flashback, desde a sua edificação até a sua submersão, tornando-se lendária, fantástica e histórica. O livro reúne narrativas que são encaixadas por Natércia com maestria, todas elas contadas com um tom insólito do mistério que envolve a casa, como as águas da parede do açude, dos ventos cerceantes e do espelho oval.
Outras características presentes no romance pós-moderno de Natércia são a intertextualidade, onde outros gêneros se inserem dentro da narrativa do romance, como poesia, cantigas, trava-língua, orações, etc., e a polifonia, além da voz da casa, as vozes dos outros personagens tomam forma.
As descrições minuciosas se devem pelas informações que Natércia colheu em sua pesquisa sobre a cultura cearense para compor a sua obra. A casa é rica em suas construções narrativas, nela se encontram a forte presença do regionalismo e o misticismo.
Uma das histórias que mais impressionam e chocam ao ler “A Casa” é a história do “encoletado em couro”, revelando ao leitor que esta história contada no livro é ficção, mas a ficção é uma mimese da realidade.
Já a história do Bisneto, o invertido, é narrada pela casa e assim escrita por Natércia Campos com eufemismo, através de um modo de narrar que não revelam explicitamente que se trata de um caso homossexual.
Assim como as águas do açude parecem prenunciar o que está por vir, o espelho trazido pelo Bisneto, feito pelo artesão conhecido como o “Mago dos Espelhos”, que ao terminar de fazê-lo não viu a imagem de seu “duplo” refletida, prenunciando que sua morte era chegada ou próxima. A presença do espelho na casa a envolvia em mais mistérios, fora colocado na sala em frente a porta, refletindo a imagem de fora, onde o pintor fez um quadro com o espelho, onde se refletia a figura do Bisneto e no dia que a morte veio surpreendê-lo, este a viu pelo espelho, e o espelho trincou de alto a baixo. O misterioso espelho parece carregar uma maldição, que chegaria ao fim com a morte de seu dono.
De uma riqueza muito grande “A Casa”, a obra de Natércia deve ser explorada e conhecida, ela nos faz um convite para que nela entramos e assim inicia-se a narração: “Fui feita com muito esmero”, Natércia não somente construiu a casa, deu-lhe vida.
A casa presenciou as iniquidades do homem, sofreu as transformações do tempo, o abandono e as invasões nos períodos de seca. Um livro curto que vale a pena ser lido e que traz narrativas sobre diversos temas como as patologias do homem, as taras, o incesto, o transtorno do toque, a gravidez psicológica, etc. Nela está contida a riqueza do regionalismo e o misticismo, além da presença do fantástico cearense, pois a casa é insólita, misteriosa e por fim torna-se assombrada e histórica.
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*Camila Arruda Oliveira; Acadêmica do 8º período do curso de Letras/UVA.
Fonte: “A Casa”- Natércia Campos