MAÇONARIA- UMA CAVALARIA SIMBÓLICA
Maçonaria e Cavalaria
A interação entre a Maçonaria e as tradições cavalheirescas só começou a ser aventada a partir do século XVIII, quando a Maçonaria se tornou uma corporação aberta á influências estranhas á sua base operativa, que eram as antigas Lojas dos pedreiros medievais. Sabe-se, aliás, que foram exatamente os autores maçons que criaram a grande maioria das lendas e mistérios ligados aos cavaleiros cruzados, especialmente aqueles referentes ás Ordens militares que foram fundadas durante a presença dos cristãos na Terra Santa. E que foram eles, também, que ligaram os Templários á Maçonaria, sugerindo ser a Maçonaria uma espécie de herdeira das tradições daquela Ordem, dissolvida pelo Papa Clemente V em 1312. Como os Templários, os Hospitalários e as demais Ordens de Cavalaria interagiram com os maçons operativos e depois, por um processo de aculturação, transmitiram suas tradições aos maçons modernos, é uma história que ainda não foi contada, mas é possível formular algumas hipóteses, o que faremos no decorrer deste nosso exercício semiótico. O que fica patente é que tal interação ocorreu, porque a influência da cultura cavalheiresca transparece claramente nos rituais maçônicos, e ainda sobrevive como um lastro importante dessa cultura.
Essa influência, no entanto, só é percebida a partir dos rituais praticados nos chamados graus superiores, particularmente os graus capitulares e filosóficos. Nas Lojas simbólicas ela só transparece, de forma bastante sutil, em alguns atos litúrgicos da iniciação, como o ato de tocar com a espada o recipiendário para recebê-lo como aprendiz maçom ou elevá-lo de grau, por exemplo. Isso se explica pelo fato de que a antiga Maçonaria ─ que era uma corporação associativa que congregava apenas os profissionais da construção civil ─ só praticava os graus simbólicos.
A influência da tradição cavaleiresca na Maçonaria aparece principalmente nos graus do Rito Escocês, embora possa ser identificado também na liturgia do Arco Real e principalmente nos chamados Ritos Templários, que supostamente sofreriam influência direta da tradição templária. Não discutiremos aqui a composição litúrgica dos variados ritos, pois foge do escopo do presente trabalho. Todavia, tendo em vista que o Rito Escocês é a matriz da qual derivam a maioria dos ritos maçônicos, nele encontraremos todos os elementos de informação necessários para mostrar, de forma bastante clara, a larga influência que a tradição da cavalaria projeta na Maçonaria moderna.
André Michel de Ramsay
O principal articulador da ligação entre a Cavalaria e a Maçonaria foi o Cavaleiro André Michel de Ransay (1686 – 1743), nobre escocês, que num célebre discurso pronunciado em 1738 em uma seção de iniciação em uma Loja (uns dizem inglesa, outros francesa) lançou a ideia de que a Maçonaria tinha sido fundada na Terra Santa, na época das cruzadas, por nobres cavaleiros que participaram daquela epopeia. Esse discurso foi depois publicado e distribuído em várias Lojas da Europa e tornou-se um dos maiores clássicos da literatura maçônica. Fixou, definitivamente, a ideia que a Maçonaria mantinha uma estreita relação histórica com a Cavalaria, especialmente aquela que se referia ás Ordens militares fundadas pelos Cruzados para proteger as conquistas cristãs na Terra Santa, ou seja, as Ordens do Templo (Os Templários), a Ordem do Hospital de São João (Os Hospitalários) e os Cavaleiros Teutônicos, Ordem militar que congregava cavaleiros principalmente alemães, e do norte e centro da Europa (Polônia, Suécia, Dinamarca, Ucrânia etc.)
“No tempo das Cruzadas na Palestina”, escreveu Ramsay, “muitos príncipes, senhores e cidadãos se associaram e prometeram restaurar o templo dos cristãos na Terra Santa e se empregar para fazer retornar sua arquitetura à primeira instituição; Eles concordaram sobre vários antigos sinais e palavras simbólicas extraídas da religião, para reconhecer uns aos outros entre os infiéis e os sarracenos. Comunicavam-se esses sinais e palavras apenas a aqueles que prometiam solenemente, e muitas vezes até mesmo diante do altar, nunca os revelar. Esta promessa sagrada não era, portanto, um juramento execrável, como tem sido chamado, mas um laço respeitável para unir os cristãos de todas as nacionalidades em uma mesma Fraternidade.”
Evidentemente, não há nenhuma base histórica para confirmar essa informação de Ramsay. Essa pressuposição foi colocada a partir de algumas relações ─ essas, sim comprovadamente verdadeiras ─ de que as Ordens de Cavalaria fundadas pelos cruzados, especialmente os Templários e os Hospitalários, mantinham em seus quadros muitos pedreiros profissionais para construírem seus edifícios, de acordo com os propósitos de cada uma delas. É verdade, também, que a arquitetura templária, principalmente, desenvolveu um estilo próprio e se tornou um importante ramo da tradição arquitetônica medieval e nela, a mística que se chumbou a essa Irmandade em particular, acabou servindo ao propósito dos maçons como Ramsay, que procuravam criar para sua Irmandade uma aura de nobreza. O elo entre a arquitetura templária e hospitalária, e a tradição maçônica herdada da arquitetura medieval, foi assim estabelecido, muito mais como um recurso de imaginação do que propriamente uma verdade histórica.
“Algum tempo depois,” prossegue Ransay “nossa Ordem formou uma união íntima com os Cavaleiros de São João de Jerusalém. A partir daquele momento, nossas Lojas assumiram o nome de Lojas de São João. Esta união se fez de acordo com o exemplo dos israelitas quando eles ergueram o segundo templo. Enquanto lidavam com a trolha e a argamassa com uma mão, na outra eles tinham prontos, a espada e o escudo. Nossa Ordem, portanto, não deve ser considerada uma renovação das Bacanais, mas uma ordem moral, fundada em tempos imemoriais, e renovada na Terra Santa por nossos antepassados, para lembrar a memória das mais sublimes verdades em meio aos prazeres da Sociedade.”
Nessa parte do discurso Ramsay procurou, ao mesmo tempo, construir o elo entre as Ordens de Cavalaria cruzadas e descontruir um mito que começava a ser divulgado na época, principalmente pela Igreja. Esse mito era o de que a Maçonaria agasalhava ideias e costumes pagãos, especialmente inspirados nos antigos festivais romanos dedicados ao deus Baco, as famosas Bacanais. Tais eram, segundo os detratores da Maçonaria, os banquetes realizados pelas Lojas maçônicas, nos quais se praticavam as mais infames orgias e ritos. Para combater essa campanha de difamação feita pelos inimigos da Maçonaria, Ramsay criou outro mito: a que a Maçonaria era, nada mais nada menos, uma continuação dessas Ordens.
Dava, com isso, não só uma origem nobre para a Maçonaria, mas também criava uma tradição fundada sobre o nobre propósito dos Hospitalários (cavaleiros que se dedicavam ao bem estar dos cristãos na Terra Santa). Também estabelecia uma ligação desta com a própria antiguidade, evocando o episódio da reconstrução de Jerusalém por Zorobabel e os israelitas repatriados da Babilônia. Nascia, dessa forma, a Maçonaria tal como hoje a conhecemos, pois a partir da idéia da reconstrução do Templo de Jerusalém, levado a cabo pelo Aterzata Zorobabel, os cavaleiros cruzados, os pedreiros medievais e os novos cavaleiros formados pelo ideal do Iluminismo e na virtude da Reforma Protestante, encontravam um ponto de contato. E a partir daí, criava-se esse organismo híbrido, misto de religião e escola de pensamento, que se tornou a Maçonaria moderna.
“Os Reis, príncipes e senhores, voltando da Palestina, fundaram várias lojas em seus Estados. Desde o tempo das últimas Cruzadas, já vimos várias Lojas erguidas na Alemanha, na Itália, na Espanha e na França, e daí para a Escócia, devido à estreita aliança entre escoceses e franceses. James, Lord Steward da Escócia foi Grão-Mestre de uma Loja estabelecida em Killinwing, no oeste da Escócia, no ano 1274, pouco depois da morte de Alexandre III, rei da Escócia, e um ano antes de John Baliol ter subido ao trono. Este senhor recebeu os maçons em sua Loja, os condes de Gloucester e Ulster, um Inglês e o outro irlandês.”
Assim Ramsay criou também uma História para a Maçonaria. É visível a sua intenção de ligar a Maçonaria á Guarda Escocesa, organização militar criada pelos reis escoceses da dinastia Stuart, que no começo da Idade Moderna assumiu também o trono inglês. Esses reis, cuja origem se situa em Robert Bruce, o rei que libertou a Escócia do domínio inglês, mantivera uma estreita relação com os Templários, tendo mesmo dado asilo e proteção a vários cavaleiros templários por ocasião da dissolução da Ordem e do processo que a Inquisição moveu contra eles. A essa dinastia pertencia o Príncipe Carlos, jovem pretendente do trono inglês, que estava, nessa época, exilado na França em consequência da revolução que apeou sua família do trono.
Ramsay era partidário dos Stuarts, tendo mesmo lutado pela reintegração desse príncipe no trono inglês. A Guarda Escocesa era uma instituição muito conhecida e respeitada na Europa desde o fim da Idade Média e servira a muitos reis, prestando-lhes serviços de segurança, assessoria militar e outros trabalhos do gênero. Sua tradição militar e a aura de cavaleiros que mantinham, semelhante a outras organizações do gênero existentes nos reinos europeus, como a Guarda Suíça, que servia ao Papa, e os famosos Mosqueteiros do rei da França, eram famosas. Assim, nada mais apropriado do que ligar a nascente Maçonaria, como instituição, á famosa Guarda Escocesa, fazendo desta uma de suas fontes de tradição.
Por isso é que Ramsay diz em seu discurso: “Pouco a pouco, nossas lojas e nossas solenidades foram negligenciados na maioria dos lugares. Por isso é que assim muitos historiadores, os da Grã-Bretanha, são os únicos que falam de nossa ordem. No entanto, ela se manteve em seu esplendor entre os escoceses, a quem os reis (da França) confiaram durante muitos séculos, a guarda de suas pessoas sagradas.”
Isso justificava o conjunto de ritos que ele, a partir de então, iria estabelecer para o conjunto da Maçonaria, conjunto esse que veio a ser conhecido como REAA – Rito Escocês Antigo e Aceito. Ou seja, uma espécie de ritualística militar, combinada com tradições cavaleirescas e motivos religiosos, tudo entremeado com lendas e símbolos pinçados da arquitetura. E para dar a essa mixórdia toda um contexto de doutrina, enxertou-se nos rituais os ideais pregados pela religião do momento entre os intelectuais: O Iluminismo.
“Após os deploráveis acontecimentos das Cruzadas,” prossegue o inefável Cavaleiro Ramsay, “o perecimento dos exércitos cristãos e o triunfo do Bendocdar, sultão do Egito, durante a oitava e última Cruzada, o Grande Príncipe Edward, filho de Henrique III, rei da Inglaterra, vendo que não havia mais segurança para os seus irmão na Terra Santa, de onde as tropas cristãs estava se retirando, os trouxe de volta, todos, e essa colônia de irmãos foi estabelecida na Inglaterra. Como este príncipe tinha todas as qualidade heroicas, ele amava as belas artes, declarou-se protetor da nossa Ordem, concedendo-lhe novos privilégios e, em seguida, os membros desta fraternidade assumiram o nome de maçons-livres, a exemplo de seus antepassados. Desde aquela época, a Grã-Bretanha foi a sede da nossa Ordem, a conservadora das nossas leis e depositária de nossos Segredos. As fatais discórdias de Religião que envergonharam e rasgaram a Europa no século XVI, fizeram degenerar a Ordem da Nobreza de sua origem. Mudaram-se, disfarçaram-se, suprimiram-se muitos dos nossos ritos e costumes que eram contrárias aos preconceitos da época.”
Os “maçons aceitos”
Essa história, provavelmente ele inventou para justificar o nascimento da Maçonaria moderna na Inglaterra. Evidentemente, tudo isso saiu da sua imaginação, pois não existe qualquer prova de que semelhante Irmandade tenha sequer existido, seja na Inglaterra ou em qualquer outro país. O que o imaginoso cavalheiro inglês fez, no caso, foi evocar o costume das Lojas de pedreiros operativos, praticado desde os tempos medievais, de colocar-se sobre a proteção de um potentado qualquer, fosse ele um príncipe, um bispo, um barão, para que estes os mantivessem livres de impostos e das restrições que o sistema feudal impunha a todos os prestadores de serviços da época. Essa sim, era uma prática muito em voga na época, sendo os Templários e os Hospitalários, eles mesmos mantenedores de grupos desses profissionais, que estavam a serviço da Ordem. Essa prática acentuou-se depois da extinção dos Templários, sendo a Inquisição um dos principais motivos dessa prática, já que o costume de perseguir qualquer corporação que criasse institutos e ritos próprios despertava a desconfiança da Igreja. Essa perseguição chegou ao auge na época da Reforma Protestante, razão pela qual eram muitas as corporações que procuravam a proteção de autoridades, fazendo inclusive que muitos deles se tornassem seus patronos, e muitas vezes, até membros da própria corporação. Essa é a origem histórica dos chamados “maçons aceitos”.
“Brincando de cavaleiros”
A grande verdade de tudo isso é que, na época de Ramsay, a Cavalaria, como instituição era coisa morta. Já há muito que havia desaparecido. O próprio instituto da nobreza, como classe, era um fator que começava a ser apontado como responsável pela manutenção de um estado de coisas que fazia da Europa o palco de sangrentas guerras. Estas tinham na religião a sua desculpa, mas no fundo, eram o resultado de um sistema social injusto e degradante, que mantinha a grande maioria dos indivíduos na miséria e na ignorância extrema, para que uma pequena minoria usufruísse de uma vida ociosa e promiscua. Contra esse estado de coisas se insurgiu a moral dos Iluministas. E a eles se atrelaram os intelectuais londrinos da recém fundada Real Sociedade da Inglaterra, destacado clube de cavalheiros ingleses e escoceses, oriundos, muitos deles, da velha nobreza, agora sem títulos, mas ainda conservando, no sangue, nos costumes e principalmente, no ego, os ideais, as tradições e o romantismo da velha Cavalaria. E assim nasceu a Maçonaria moderna, essa Fraternidade que, segundo dela disse Napoleão Bonaparte (que foi iniciado maçom), era constituída por um “grupo de distintos senhores que gostam de brincar de cavaleiros.”
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Do Livro "Conhecendo a Arte Real- Madras, 2009
Maçonaria e Cavalaria
A interação entre a Maçonaria e as tradições cavalheirescas só começou a ser aventada a partir do século XVIII, quando a Maçonaria se tornou uma corporação aberta á influências estranhas á sua base operativa, que eram as antigas Lojas dos pedreiros medievais. Sabe-se, aliás, que foram exatamente os autores maçons que criaram a grande maioria das lendas e mistérios ligados aos cavaleiros cruzados, especialmente aqueles referentes ás Ordens militares que foram fundadas durante a presença dos cristãos na Terra Santa. E que foram eles, também, que ligaram os Templários á Maçonaria, sugerindo ser a Maçonaria uma espécie de herdeira das tradições daquela Ordem, dissolvida pelo Papa Clemente V em 1312. Como os Templários, os Hospitalários e as demais Ordens de Cavalaria interagiram com os maçons operativos e depois, por um processo de aculturação, transmitiram suas tradições aos maçons modernos, é uma história que ainda não foi contada, mas é possível formular algumas hipóteses, o que faremos no decorrer deste nosso exercício semiótico. O que fica patente é que tal interação ocorreu, porque a influência da cultura cavalheiresca transparece claramente nos rituais maçônicos, e ainda sobrevive como um lastro importante dessa cultura.
Essa influência, no entanto, só é percebida a partir dos rituais praticados nos chamados graus superiores, particularmente os graus capitulares e filosóficos. Nas Lojas simbólicas ela só transparece, de forma bastante sutil, em alguns atos litúrgicos da iniciação, como o ato de tocar com a espada o recipiendário para recebê-lo como aprendiz maçom ou elevá-lo de grau, por exemplo. Isso se explica pelo fato de que a antiga Maçonaria ─ que era uma corporação associativa que congregava apenas os profissionais da construção civil ─ só praticava os graus simbólicos.
A influência da tradição cavaleiresca na Maçonaria aparece principalmente nos graus do Rito Escocês, embora possa ser identificado também na liturgia do Arco Real e principalmente nos chamados Ritos Templários, que supostamente sofreriam influência direta da tradição templária. Não discutiremos aqui a composição litúrgica dos variados ritos, pois foge do escopo do presente trabalho. Todavia, tendo em vista que o Rito Escocês é a matriz da qual derivam a maioria dos ritos maçônicos, nele encontraremos todos os elementos de informação necessários para mostrar, de forma bastante clara, a larga influência que a tradição da cavalaria projeta na Maçonaria moderna.
André Michel de Ramsay
O principal articulador da ligação entre a Cavalaria e a Maçonaria foi o Cavaleiro André Michel de Ransay (1686 – 1743), nobre escocês, que num célebre discurso pronunciado em 1738 em uma seção de iniciação em uma Loja (uns dizem inglesa, outros francesa) lançou a ideia de que a Maçonaria tinha sido fundada na Terra Santa, na época das cruzadas, por nobres cavaleiros que participaram daquela epopeia. Esse discurso foi depois publicado e distribuído em várias Lojas da Europa e tornou-se um dos maiores clássicos da literatura maçônica. Fixou, definitivamente, a ideia que a Maçonaria mantinha uma estreita relação histórica com a Cavalaria, especialmente aquela que se referia ás Ordens militares fundadas pelos Cruzados para proteger as conquistas cristãs na Terra Santa, ou seja, as Ordens do Templo (Os Templários), a Ordem do Hospital de São João (Os Hospitalários) e os Cavaleiros Teutônicos, Ordem militar que congregava cavaleiros principalmente alemães, e do norte e centro da Europa (Polônia, Suécia, Dinamarca, Ucrânia etc.)
“No tempo das Cruzadas na Palestina”, escreveu Ramsay, “muitos príncipes, senhores e cidadãos se associaram e prometeram restaurar o templo dos cristãos na Terra Santa e se empregar para fazer retornar sua arquitetura à primeira instituição; Eles concordaram sobre vários antigos sinais e palavras simbólicas extraídas da religião, para reconhecer uns aos outros entre os infiéis e os sarracenos. Comunicavam-se esses sinais e palavras apenas a aqueles que prometiam solenemente, e muitas vezes até mesmo diante do altar, nunca os revelar. Esta promessa sagrada não era, portanto, um juramento execrável, como tem sido chamado, mas um laço respeitável para unir os cristãos de todas as nacionalidades em uma mesma Fraternidade.”
Evidentemente, não há nenhuma base histórica para confirmar essa informação de Ramsay. Essa pressuposição foi colocada a partir de algumas relações ─ essas, sim comprovadamente verdadeiras ─ de que as Ordens de Cavalaria fundadas pelos cruzados, especialmente os Templários e os Hospitalários, mantinham em seus quadros muitos pedreiros profissionais para construírem seus edifícios, de acordo com os propósitos de cada uma delas. É verdade, também, que a arquitetura templária, principalmente, desenvolveu um estilo próprio e se tornou um importante ramo da tradição arquitetônica medieval e nela, a mística que se chumbou a essa Irmandade em particular, acabou servindo ao propósito dos maçons como Ramsay, que procuravam criar para sua Irmandade uma aura de nobreza. O elo entre a arquitetura templária e hospitalária, e a tradição maçônica herdada da arquitetura medieval, foi assim estabelecido, muito mais como um recurso de imaginação do que propriamente uma verdade histórica.
“Algum tempo depois,” prossegue Ransay “nossa Ordem formou uma união íntima com os Cavaleiros de São João de Jerusalém. A partir daquele momento, nossas Lojas assumiram o nome de Lojas de São João. Esta união se fez de acordo com o exemplo dos israelitas quando eles ergueram o segundo templo. Enquanto lidavam com a trolha e a argamassa com uma mão, na outra eles tinham prontos, a espada e o escudo. Nossa Ordem, portanto, não deve ser considerada uma renovação das Bacanais, mas uma ordem moral, fundada em tempos imemoriais, e renovada na Terra Santa por nossos antepassados, para lembrar a memória das mais sublimes verdades em meio aos prazeres da Sociedade.”
Nessa parte do discurso Ramsay procurou, ao mesmo tempo, construir o elo entre as Ordens de Cavalaria cruzadas e descontruir um mito que começava a ser divulgado na época, principalmente pela Igreja. Esse mito era o de que a Maçonaria agasalhava ideias e costumes pagãos, especialmente inspirados nos antigos festivais romanos dedicados ao deus Baco, as famosas Bacanais. Tais eram, segundo os detratores da Maçonaria, os banquetes realizados pelas Lojas maçônicas, nos quais se praticavam as mais infames orgias e ritos. Para combater essa campanha de difamação feita pelos inimigos da Maçonaria, Ramsay criou outro mito: a que a Maçonaria era, nada mais nada menos, uma continuação dessas Ordens.
Dava, com isso, não só uma origem nobre para a Maçonaria, mas também criava uma tradição fundada sobre o nobre propósito dos Hospitalários (cavaleiros que se dedicavam ao bem estar dos cristãos na Terra Santa). Também estabelecia uma ligação desta com a própria antiguidade, evocando o episódio da reconstrução de Jerusalém por Zorobabel e os israelitas repatriados da Babilônia. Nascia, dessa forma, a Maçonaria tal como hoje a conhecemos, pois a partir da idéia da reconstrução do Templo de Jerusalém, levado a cabo pelo Aterzata Zorobabel, os cavaleiros cruzados, os pedreiros medievais e os novos cavaleiros formados pelo ideal do Iluminismo e na virtude da Reforma Protestante, encontravam um ponto de contato. E a partir daí, criava-se esse organismo híbrido, misto de religião e escola de pensamento, que se tornou a Maçonaria moderna.
“Os Reis, príncipes e senhores, voltando da Palestina, fundaram várias lojas em seus Estados. Desde o tempo das últimas Cruzadas, já vimos várias Lojas erguidas na Alemanha, na Itália, na Espanha e na França, e daí para a Escócia, devido à estreita aliança entre escoceses e franceses. James, Lord Steward da Escócia foi Grão-Mestre de uma Loja estabelecida em Killinwing, no oeste da Escócia, no ano 1274, pouco depois da morte de Alexandre III, rei da Escócia, e um ano antes de John Baliol ter subido ao trono. Este senhor recebeu os maçons em sua Loja, os condes de Gloucester e Ulster, um Inglês e o outro irlandês.”
Assim Ramsay criou também uma História para a Maçonaria. É visível a sua intenção de ligar a Maçonaria á Guarda Escocesa, organização militar criada pelos reis escoceses da dinastia Stuart, que no começo da Idade Moderna assumiu também o trono inglês. Esses reis, cuja origem se situa em Robert Bruce, o rei que libertou a Escócia do domínio inglês, mantivera uma estreita relação com os Templários, tendo mesmo dado asilo e proteção a vários cavaleiros templários por ocasião da dissolução da Ordem e do processo que a Inquisição moveu contra eles. A essa dinastia pertencia o Príncipe Carlos, jovem pretendente do trono inglês, que estava, nessa época, exilado na França em consequência da revolução que apeou sua família do trono.
Ramsay era partidário dos Stuarts, tendo mesmo lutado pela reintegração desse príncipe no trono inglês. A Guarda Escocesa era uma instituição muito conhecida e respeitada na Europa desde o fim da Idade Média e servira a muitos reis, prestando-lhes serviços de segurança, assessoria militar e outros trabalhos do gênero. Sua tradição militar e a aura de cavaleiros que mantinham, semelhante a outras organizações do gênero existentes nos reinos europeus, como a Guarda Suíça, que servia ao Papa, e os famosos Mosqueteiros do rei da França, eram famosas. Assim, nada mais apropriado do que ligar a nascente Maçonaria, como instituição, á famosa Guarda Escocesa, fazendo desta uma de suas fontes de tradição.
Por isso é que Ramsay diz em seu discurso: “Pouco a pouco, nossas lojas e nossas solenidades foram negligenciados na maioria dos lugares. Por isso é que assim muitos historiadores, os da Grã-Bretanha, são os únicos que falam de nossa ordem. No entanto, ela se manteve em seu esplendor entre os escoceses, a quem os reis (da França) confiaram durante muitos séculos, a guarda de suas pessoas sagradas.”
Isso justificava o conjunto de ritos que ele, a partir de então, iria estabelecer para o conjunto da Maçonaria, conjunto esse que veio a ser conhecido como REAA – Rito Escocês Antigo e Aceito. Ou seja, uma espécie de ritualística militar, combinada com tradições cavaleirescas e motivos religiosos, tudo entremeado com lendas e símbolos pinçados da arquitetura. E para dar a essa mixórdia toda um contexto de doutrina, enxertou-se nos rituais os ideais pregados pela religião do momento entre os intelectuais: O Iluminismo.
“Após os deploráveis acontecimentos das Cruzadas,” prossegue o inefável Cavaleiro Ramsay, “o perecimento dos exércitos cristãos e o triunfo do Bendocdar, sultão do Egito, durante a oitava e última Cruzada, o Grande Príncipe Edward, filho de Henrique III, rei da Inglaterra, vendo que não havia mais segurança para os seus irmão na Terra Santa, de onde as tropas cristãs estava se retirando, os trouxe de volta, todos, e essa colônia de irmãos foi estabelecida na Inglaterra. Como este príncipe tinha todas as qualidade heroicas, ele amava as belas artes, declarou-se protetor da nossa Ordem, concedendo-lhe novos privilégios e, em seguida, os membros desta fraternidade assumiram o nome de maçons-livres, a exemplo de seus antepassados. Desde aquela época, a Grã-Bretanha foi a sede da nossa Ordem, a conservadora das nossas leis e depositária de nossos Segredos. As fatais discórdias de Religião que envergonharam e rasgaram a Europa no século XVI, fizeram degenerar a Ordem da Nobreza de sua origem. Mudaram-se, disfarçaram-se, suprimiram-se muitos dos nossos ritos e costumes que eram contrárias aos preconceitos da época.”
Os “maçons aceitos”
Essa história, provavelmente ele inventou para justificar o nascimento da Maçonaria moderna na Inglaterra. Evidentemente, tudo isso saiu da sua imaginação, pois não existe qualquer prova de que semelhante Irmandade tenha sequer existido, seja na Inglaterra ou em qualquer outro país. O que o imaginoso cavalheiro inglês fez, no caso, foi evocar o costume das Lojas de pedreiros operativos, praticado desde os tempos medievais, de colocar-se sobre a proteção de um potentado qualquer, fosse ele um príncipe, um bispo, um barão, para que estes os mantivessem livres de impostos e das restrições que o sistema feudal impunha a todos os prestadores de serviços da época. Essa sim, era uma prática muito em voga na época, sendo os Templários e os Hospitalários, eles mesmos mantenedores de grupos desses profissionais, que estavam a serviço da Ordem. Essa prática acentuou-se depois da extinção dos Templários, sendo a Inquisição um dos principais motivos dessa prática, já que o costume de perseguir qualquer corporação que criasse institutos e ritos próprios despertava a desconfiança da Igreja. Essa perseguição chegou ao auge na época da Reforma Protestante, razão pela qual eram muitas as corporações que procuravam a proteção de autoridades, fazendo inclusive que muitos deles se tornassem seus patronos, e muitas vezes, até membros da própria corporação. Essa é a origem histórica dos chamados “maçons aceitos”.
“Brincando de cavaleiros”
A grande verdade de tudo isso é que, na época de Ramsay, a Cavalaria, como instituição era coisa morta. Já há muito que havia desaparecido. O próprio instituto da nobreza, como classe, era um fator que começava a ser apontado como responsável pela manutenção de um estado de coisas que fazia da Europa o palco de sangrentas guerras. Estas tinham na religião a sua desculpa, mas no fundo, eram o resultado de um sistema social injusto e degradante, que mantinha a grande maioria dos indivíduos na miséria e na ignorância extrema, para que uma pequena minoria usufruísse de uma vida ociosa e promiscua. Contra esse estado de coisas se insurgiu a moral dos Iluministas. E a eles se atrelaram os intelectuais londrinos da recém fundada Real Sociedade da Inglaterra, destacado clube de cavalheiros ingleses e escoceses, oriundos, muitos deles, da velha nobreza, agora sem títulos, mas ainda conservando, no sangue, nos costumes e principalmente, no ego, os ideais, as tradições e o romantismo da velha Cavalaria. E assim nasceu a Maçonaria moderna, essa Fraternidade que, segundo dela disse Napoleão Bonaparte (que foi iniciado maçom), era constituída por um “grupo de distintos senhores que gostam de brincar de cavaleiros.”
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Do Livro "Conhecendo a Arte Real- Madras, 2009