Gnosticismo, hermetismo e a Rosa-cruz
                                                            
       No inicio do cristianismo se desenvolveram as Escolas Gnósticas. Ora formando seitas religiosas, ora desenvolvendo grupos de pensamento semelhantes ás antigas escolas gregas, esses filósofos heréticos legaram á história do pensamento universal algumas das concepções mais originais acerca da tradição iniciática que sempre acompanha a idéia da utopia. Desses cultores do cristianismo esotérico, as Ordens de Cavalaria que se formaram na Terra Santa na época das Cruzadas, especialmente os Templários, os Hospitalários e os Cavaleiros Teutônicos herdaram a aura de misticismo e mistério que sempre acompanhou as sagas desses “Cavaleiros de Cristo”. Se pesquisarmos a história oculta dessas instituições, encontraremos sempre uma idéia, conectada de um lado a uma tentativa de realização política, e de outro a uma esperança de ascensão espiritual, uma e outra alcançáveis através da compartimentalização do saber e pelo controle do conhecimento e da prática iniciática para a sua divulgação.
      O reino ideal do espírito nunca pode ser separado da ordem social perfeita, e a idéia da utopia integra essas duas estruturas organizacionais, sendo impossível a realização de uma sem que a outra também seja buscada.
      Na Renascença, filósofos como Giordano Bruno, Thomas Mórus e Tommasso Campanella, entre outros, compartilharam dos mesmos sonhos que alimentaram o espírito do Imperador Açoca, dos sacerdotes egípcios e dos filósofos gregos. O primeiro criou um grupo de pensadores dedicado ao estudo das ciências ocultas, chamado os Novos Atlantes, que segundo ele, deveria manter, desenvolver e transmitir, de uma forma segura, a verdadeira sabedoria; o segundo imaginou uma sociedade ideal, confinada numa ilha imaginária, livre de dogmas religiosos e preconceitos de classe, onde os cidadãos viveriam virtuosamente, cultivando a justiça, a moderação, a sabedoria e a tolerância. Campanella imaginou a Cidade Mágica do Sol, onde ele seria sumo sacerdote e profeta, e o governo exercido por uma plêiade de sacerdotes detentores da totalidade do conhecimento universal. Campanella chegou mesmo a lutar por seu sonho, organizando uma revolução na Calábria, em 1598, com a intenção de implantar ali a sua utopia.[1]
       Em 1622, uma Paris comovida tomou conhecimento da existência de uma Fraternidade de Magos, que se diziam detentores dos grandes segredos do universo. Essa fraternidade se intitulava Os Irmãos da Rosa-Cruz. Diziam ser membros de uma sociedade internacional e secreta, que reunia os homens de saber em todo o mundo, cooptados para trabalhar pela “libertação do homem de seus erros e vícios mortais”. Depois se descobriu que tudo não passara de uma farsa genial, perpetrada por um grupo de místicos alemães, talvez para atrair a atenção para seus trabalhos, ou para ocultar, sob uma capa de mistério, uma prática condenada e reprimida pelo pensamento religioso oficial. De qualquer modo, farsa ou não, a pretensa sociedade dos Irmãos da Rosa-Cruz inseriu-se na história do pensamento ocidental e nele exerceu enorme influência, como veremos no decorrer deste trabalho.[2]
 
      A formação seletiva de grupos para a realização de um ideal comum é uma prática que vem desde os primórdios da civilização. Esses grupos se formam por cooptação, escolhendo seus membros no seio da sociedade, justamente pela convergência que encontram entre seus interesses, sejam eles profissionais, religiosos, filosóficos ou mesmo econômicos ou políticos. A partir dessa reunião, formam-se sociedades que podem manter em segredo suas atividades ou não. É dessa forma que nascem partidos políticos, sociedades literárias, clubes de serviço, seitas religiosas, e também Fraternidades do tipo Maçonaria, que não se identifica com nenhuma delas, embora delas todas empreste características. 
 
A maçonaria medieval
 
       Como instituição, a Maçonaria só passou a existir no inicio do século XVIII, a partir da constituição que lhe foi dada pelos maçons ingleses, liderados pelo pastor anglicano James Anderson. Mas antes disso, os maçons já se reuniam em suas lojas para praticar alguma coisa parecida com a Arte Real. O que era essa Maçonaria anterior ás Constituições de Anderson? Quem eram os maçons operativos que construíram as grandes catedrais medievais, e depois os especulativos (alquimistas, em sua maioria) que os sucederam?
       As constituições maçônicas apareceram em 1723 como exteriorização da Ordem, dando ao mundo a idéia de que a Confraria dos Obreiros da Arte Real era uma instituição universal, unificada em suas práticas, em sua filosofia e em seus objetivos. E como bem dizia Langlóis, essa visão da Maçonaria correspondia exatamente á Inglaterra dos inícios do século XVIII, onde a liberdade não era um mero anseio e o liberalismo econômico rompia as barreiras sociais, linguísticas e religiosas, alargando os horizontes geográficos e intelectuais.
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      A Inglaterra do início do século XVIII era a pátria de todos os intelectuais, políticos, artistas e outras pessoas de alguma cultura, que sonhavam com a liberdade e com o fim de todas as mazelas sociais. Por isso não é estranho que a secularização da prática maçônica tenha surgido exatamente entre os maçons ingleses, como forma de realização de um sonho que antes medrava apenas em alguns espíritos, como esperança de realização ascética do individuo, mas não como projeto de uma sociedade mesmo.
       O que terá acontecido para fazer com que filósofos racionalistas, como Voltaire e Montesquieu, por exemplo, ou religiosos ortodoxos, como os pastores Anderson e Désaguliers, se associassem com o cavalheiro André Michel de Ransay, amigo do Bispo Fénelon e da família de Godofredo de Boillon, o místico comandante da Primeira Cruzada, para disseminar pela Europa toda uma prática, considerada como herética pelas religiões oficiais?
       A antiga Maçonaria dos construtores medievais era uma prática para religiosa, que se confinava a alguns grupos de pessoas sensíveis ao apelo do esotérico, contido na mensagem da arquitetura, e da filosofia que ela inspirava. Com efeito, para os maçons que antecederam a fusão das Lojas londrinas, a arquitetura era uma mensagem dos deuses, inteligíveis apenas aos espíritos sensíveis que acreditavam na unidade do universo e se viam como “construtores do espírito”, repetindo na atividade especulativa aquilo que seus antecessores medievais haviam feito operativamente. Os maçons operativos, pensavam eles, haviam deixado a mensagem divina na linguagem das pedras e nas formas estruturais da catedral gótica e dos grandes edifícios públicos. A sabedoria estava inscrita em símbolos arquitetônicos e geométricos, representados por ogivas, arcobotantes, estranhas figuras de anjos, gárgulas e vampiros, colunas, pináculos e abóbodas, tudo constituindo uma verdadeira enciclopédia do saber universal só inteligível aos iniciados.
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      Fulcanelli diz que a arte gótica (art goth) é uma deformação ortográfica do vocábulo argot, que significa “linguagem particular”, ou língua falada através de alegorias. Seria, outrossim, uma espécie de Cabala falada, derivada da tradição dos argonautas, os míticos caçadores do famoso Tosão de Ouro da lenda grega.[5] Essa mensagem argótica continha uma sabedoria mil vezes milenária, que dizia, em seus meandros, que o espírito e a matéria constituem uma realidade só, que a luz se oculta nas trevas, que o universo é um edifício único que se constrói da mesma forma que o espírito humano é construído, e ambos se edificam pelo mesmo processo que as construções humanas são erguidas. Os maçons medievais eram, portanto, os filósofos da construção universal, cuja mensagem fora transmitida através da prática operativa, e quem conhecesse a língua argótica poderia aprendê-la estudando as estruturas dos edifícios sacros e profanos construídos pelos maçons. Por isso, diz Fulcanelli, “ ainda hoje se diz de um homem inteligente e muito astuto: ele sabe tudo, entende o argot. Todos os iniciados se exprimiam em argot, tanto os vagabundos da Corte dos Milagres- com o poeta Villon á cabeça- quanto os freemasons ou franco-maçons da Idade Média, “hospedeiros do Bom Deus”, que edificaram as obras-primas argóticas que hoje admiramos”[6]  
 
A Maçonaria moderna
   
      A Maçonaria que emergiu do século XVII é muito diferente da que era praticada nas antigas Corporações de Obreiros. Ela é filha da necessidade política e do desespero filosófico de uma sociedade que procurava desesperadamente uma saída espiritual para o impasse que a religião, com o cisma da Reforma, a lançara. Com efeito, há muito que arte gótica e as grandes construções medievais, sacras e profanas, já haviam deixado de hospedar em suas curvas, nichos, abóbodas, ogivas, vitrais, grifos e capitéis, a antiga ciência dos freemasons. E há muito, também, que a mística tradição de buscar a ascese espiritual através da prática do oficio de construtor havia desaparecido. Os novos construtores, embalados no ideal da Renascença, haviam perdido o elo com o espírito da Obra, para se concentrar na beleza idealizada na razão, bela sim, harmoniosa sim, perfeita nas formas e nas estruturas, mas tão pouco espiritualizada em seu conteúdo, pois ali não mais se percebia a mística dos antigos irmãos “hospedeiros do Bom Deus”.[7]
      E foi então que essa mensagem mudou-se das pedras, dos nichos, dos arcos e das ogivas da catedral gótica e dos grandes edifícios antigos para os laboratórios dos práticos da química e da metalurgia, e para as águas-furtadas e cubículos dos mosteiros, onde laboravam os decifradores da mensagem oculta na natureza, os amantes do insólito e os cultores da sabedoria que não se exprime em silogismos nem se resume em postulados. Dali saíram os pensadores que transferiram para a forma especulativa uma prática de viver e ensinar que ainda hoje não foi bem entendida pela maioria dos seus praticantes. Foi assim que a Arte Real passou de operativa a especulativa.
      Podemos dizer que a Maçonaria, a partir do momento em que ela se tornou uma filosofia de vida, também transformou-se numa idéia utópica tanto quanto o eram as criações de Platão, Campannela, Giordano Bruno, Thomas Mórus e outros. Por que sua esperança, como a daqueles filósofos, era a mesma: construir uma sociedade perfeita, harmônica, justa, fundada nos ideais estéticos da antiga sabedoria grega e egípcia, temperada pelas virtudes do Cristianismo e embalada na moral iluminista. Nesse sentido, as Lojas maçônicas deveriam funcionar como cadinhos de alquimista, onde a “matéria prima” dessa nova pedra filosofal seria artisticamente trabalhada. Desse trabalho surgiriam pedras talhadas na medida exata para a construção dessa sociedade, que a exemplo dos sacrossantos edifícios de antigamente, guardariam a verdadeira mensagem divina.[8]        
    Não se contesta, neste trabalho, a tese defendida pela maioria dos autores, de que a Maçonaria, dita especulativa, tenha nascido dentro das Lojas de maçons operativos. A respeito disso vamos colocar a nossa hipótese. Mas acreditamos que essa filiação não aconteceu de forma direta, como consequência da transformação das Corporações Obreiras em Lojas Especulativas, pura e simplesmente. Para nós, a Maçonaria moderna não é uma mera adaptação da Maçonaria operativa, isto é, os “pedreiros morais”, como gostamos de chamar os maçons de hoje, não provém de uma herança direta dos pedreiros profissionais da Idade Média, mas sim de uma organização paralela que nasceu dentro das corporações obreiras dos profissionais de construção, porém com objetivos diferentes. A tese de que houve uma passagem pura e simples do plano operativo para o especulativo é uma simplificação que nunca nos satisfez. Falta um elo nessa cadeia e esse elo é exatamente a tradição da antiga cavalaria medieval, com seu senso de cavalheirismo, seu ideal de nobreza e seu romantismo esotérico.     
     Acreditamos que vários grupos de pessoas sensíveis a esse apelo coexistiram concomitantemente com as Lojas dos maçons especulativos, e em dado momento se fundiram. Essa fusão deve ter acontecido ali pelos meados do século XVII, como resultado de uma aproximação de objetivos e uma similitude de pensamento, que á medida que a repressão religiosa ia aumentando, os ia forçando a se associarem para garantir suas sobrevivências.
      As antigas tradições, presentes nas “Velhas Regras” (as Old Charges) não tratam de temas gnósticos e alquímicos, nem integram motivos cavalheirescos. Mas devemos ter em mente que as Old Charges são regras que dizem respeito unicamente á Maçonaria inglesa.
[9] Não valem para os maçons do continente, que certamente deviam ter suas próprias ordenações. Destas pouco sabemos, mas é certo que mantinham a tradição iniciática e incorporavam motivos filosóficos e morais que visavam, ao mesmo tempo, realizar obra profana de interesse estético e obra espiritual de interesse ascético. Parece que foi nas Lojas do continente que a filosofia gnóstica e a ciência dos Filhos de Hermes se fundiu com as tradições maçônicas, criando uma nova escola de pensamento. Daí essa escola voltou para a Inglaterra, onde, cerca de um século mais tarde se fundiria com a nova moral propagada pelo iluminismo, resultando no que hoje chamamos de Maçonaria Especulativa.
(continua)
 
[1] Campanella- A Cidade do Sol- Melhoramentos, 1986
[2] Pawels e Bergier ; O Despertar dos Mágicos- Cultrix, 1976
[3] Jean Palou- A Maçonaria Simbólica e Iniciática- Ed. Pensamento, 1986
[4] É bem verdade que Anderson, por exemplo, não tinha essa sensibilidade. Para ele, a Arte Real por excelência, era a arquitetura clássica, especialmente á dos tempos do imperador Augusto. No preâmbulo de suas Constituições ele trata a arquitetura gótica com certo desdém, considerando-a uma imitação barata das arquitetura antiga.
[5] Fulcanelli- O Miastério das Catedrais, pg. 56
[6] Fulcanelli- O Mistério das Catedrais, pg. 58
[7] Segundo Fulcanelli, era assim que os maçons medievais eram chamados.
[8] Daí a sua estreita relação com a prática da Alquimia, pois no seu simbolismo, as duas Artes, ou seja, a Arte do Adepto, que é Alquimia, assemelhava-se á Arte do maçom, que era a Arquitetura simbólica.
[9] Literalmente, as “Old Charges” significa “Antigos Deveres”. É um conjunto de documentos manuscritos que contém regras e ordenamentos seguidos pelos maçons medievais, que dizem respeito aos usos e costumes da classe, e regulam o exercício da profissão.

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DO LIVRO "CONHECENDO A ARTE REAL- MADRAS 2009- REEDITADO EM 2014