A VISÃO DO PARAÍSO
 
“ Na verdade, duvido que haja para o ser pensante
momento  mais  decisivo  do  que   aquele em que,
caindo-lhe  a  venda  dos olhos,   ele descobre que
não é um elemento perdido nas solitudes cósmicas,
mas que  é  uma  vontade  de  viver  universal  que
nele converge e se hominiza.”
Pierre Teilhard de Chardim- O Fenômeno Humano
 
 
   
Houve um tempo na existência do universo, em que as estruturas da terra e do céu eram ligadas entre si de forma tal que não se podia distinguir umas das outras. Essa foi uma época em que homens e deuses partilhavam dos mesmos atributos, cada um cônscio de suas funções e responsabilidades para com a manutenção da ordem e do equilíbrio no cosmo. Naquele tempo, ainda se cultivava a noção de que tudo estava em tudo, e não havia distinções de espécie alguma. O que existia no céu era igual ao havia na terra, o que estava em cima era igual ao que estava baixo, o dentro e o fora eram indistinguíveis, o sagrado e o profano, o bem e o mal, a luz e as trevas, todos os contrários eram apenas verso e reverso de uma moeda única.[1]
      Num universo assim composto, a dialética universal aparecia apenas como uma forma pela qual a Energia dos Princípios podia agir para a construção do real existente, unificando pela ação dos contrários a força interativa que dá vida ao cosmo. A idéia inscrita no vocábulo universo queria dizer exatamente o que o termo indica, ou seja, o único, o indivisível, a versão singular e original do pensamento divino, manifestado como realidade em multifacetadas formas, infinitas identidades, mas todas ligadas, indistintamente, ao seu Principio Criador.   
     
      Os livros sagrados das diversas religiões, e as tradições de todos os povos da terra evocam essa época mágica em que os deuses falavam com os homens face a face. Do Extremo Oriente nos vem a lenda dos Senhores de Dzyan, iniciadores da civilização humana, e dos gigantes de cabeça redonda, detentores de outro saber, que viveram na terra antes do dilúvio. Restos dessa civilização ainda podem ser encontrados nas crônicas bíblicas e nas lendas e tradições dos hindus, dos tibetanos, dos incas e dos astecas, e em muitas outras memórias, nas mais diferentes culturas que existem e já existiram sobre a face da terra.
     A Bíblia também nos fala desse tempo em que os homens viviam centenas de anos, tinham estaturas imensas e suas filhas se juntavam aos deuses para gerar guerreiros audazes; evoca também a lembrança do paraíso terrestre, onde a criação celeste e humana convivia sob os olhares de deuses benignos e protetores.[2)
     Do Egito á Mesopotâmia, da Índia á China, dos indígenas da Polinésia aos esquimós, todas as tradições recordam, de certa maneira, a memória de um mundo que vivia em paz, unificado por dentro e por fora, indistinto entre suas estruturas, perfeito em todos os sentidos, obedecendo apenas ás leis da constituição universal, posta na natureza por obra e graça do Grande Arquiteto do Universo.[3]
 
      A Atlântida e a Lemúria, a Tule sagrada das lendas, o Jardim das Hespérides, o Éden bíblico e o mítico país de Xangrilá, todos esses mitos grandiosos serão apenas desejos inconscientes, resultantes da ansiedade humana de encontrar, em algum lugar algures, ou até dentro de si mesmo, um refúgio onde se possa descansar da árdua tarefa de viver, ou terá mesmo existido em algum tempo, como realidade física, esse reino de tranquilidade e paz? Jamais o saberemos, mas, para que tal experiência tenha sido registrada na memória coletiva da humanidade, e de tempos em tempos reapareça como sonho, é preciso que, de alguma forma, tal lugar tenha realmente existido.
      Os homens, em todos os tempos, sempre sonharam com utopias. Do Egito dos faraós, governado pelo Principio da Maat, á Republica de Platão, governada pelos sábios, ao império de Açoca, com sua política orientada pelos Nove Desconhecidos, ás utopias de Thomas Mórus e Tommasso Campanella, governada pelos Notáveis, a mente humana sempre convergiu para a idéia de um estado perfeito, de ordem, harmonia e felicidade, onde o divino não conflita com o humano e o sagrado e profano se harmonizam.
      As utopias sempre frequentaram os sonhos da humanidade como esperança de implantação, na terra mesmo, daquele paraíso que as religiões prometem para outro mundo, além da vida. Para realizá-las os homens geralmente se reúnem em grupos, cujos elementos são cooptados pela convergência de interesses comuns ou de atributos pessoais. Dessas uniões acabam por surgir castas, guildas, associações, confrarias, partidos políticos, clubes sociais, etc. No antigo Egito, os principais santuários abrigavam diferentes castas de sacerdotes, reconhecíveis por seus graus de iniciação nos mistérios da religião. Eram esses Mestres que detinham, praticamente, o poder, pois no estado egípcio não havia uma separação entre o político e o religioso. Da mesma forma, vamos encontrar esse tipo de organização no estado que Moisés organizou para os israelitas. Entre aquele povo havia a tribo dos Levitas, classe sacerdotal que detinha o monopólio do exercício litúrgico, e, em razão disso, acabava também por exercer o poder político, pois este, como no Egito, se confundia com a religião. 
      Na Índia conta-se a história do Imperador Açoca, monarca que no século III a. C., reinou num vasto território que ia desde as atuais cidades de Calcutá a Madrasta. Esse rei, após ter sido convertido ao Budismo, desejou fazer de seu reino um lugar onde todas as pessoas pudessem desfrutar de segurança, paz, liberdade e felicidade. Para isso imaginou um meio de fazer com que os homens fossem impedidos de usar suas inteligências para o mal. As ciências e todo conhecimento técnico existente na época eram controlados pelo Estado, através de uma sociedade secreta conhecida como os Nove Desconhecidos. Essa sociedade, que existiria ainda hoje, orienta a pesquisa e a utilização do saber naquele país, com ramificações em todo o mundo. Liberando uns e ocultando outros, agindo sempre de forma a impedir que determinadas descobertas, prejudiciais á humanidade, sejam divulgadas, essa Comunidade de Sábios exerceria uma espécie de controle sobre o saber humano, evitando que o equilíbrio mundial se rompa pela sua má utilização.[4]
      Na Grécia clássica os filósofos sempre arrogaram para si o monopólio da sabedoria, e nessa condição se tornavam preceptores de príncipes, reis e outros potentados. Com isso se colocavam sempre próximos ao poder político, e mesmo não o exercendo diretamente, acabavam por fazê-los nos bastidores. Com raras exceções, todos esses sábios eram iniciados nos Mistérios de Elêusis, da mesma forma que no Egito a elite se formava nas disciplinas dos Mistérios de Ìsis e Osíris.
[5]
 
(continua)
 
[1] Os livros sagrados de todas as religiões antigas refletem essa noção de unidade primordial do universo. Veja-se o conceito do Tao, o Princípio Único da filosofia chinesa, as expressões constantes dos Vedas, que veem o universo saindo de um ponto único de densidade energética, e a própria Biblia, com o seu conceito de um Deus único criador de todas as coisas. Essa noção também está presente nas concepções da Gnose e da Teosofia.
[2]Gênesis, 6:4
[3]Essa ideia é defendida na famosa obra hermética Pymander, obra escrita por filósofos gregos do século II, sob o pseudônimo de Hermes Trismegistos.
[4] Pawels e Bergier- O Despertar dos Mágicos- 1956
[5] Mistérios de Ísis e Osíris e os Mistérios de Elêusis eram festivais iniciáticos realizados no Antigo Egito e na Grécia clássica, com o objetivo de homenagear os deuses que presidiam a vida na terra, para que estes proporcionassem boas colheitas.

do livro "Conhecendo a Arte Real"- Madras, 2009- Reedição 2014