A TRAJETÓRIA DA ESQUEDA NO BRASIL REGISTRADA EM LIVRO
O período de mais de 70 anos da História brasileira, compreendido entre 1900 a 1975, desde a chegada das idéias anarquistas e marxistas no Brasil, da criação dos primeiros partidos socialistas, do PCB, passando pelo período getulista ao auge da ditadura militar é um período da História nacional que será essencialmente marcado por uma profunda redefinição da economia brasileira, e, conseqüentemente, de sua sociedade. Como bem diz o historiador Caio Prado Júnior: "Esse será um período em que haverá um novo alento ao sistema colonial dentro do qual se acha enquadrada a economia brasileira".
Falar desse "alento" do capitalismo brasileiro desse período é falar não só da aceleração de seu desenvolvimento, da mudança de seu padrão tecnológico e da lógica de sua acumulação. É também falar das condições de vida dos trabalhadores, das “classes intermediárias” e de suas lutas. O escritor e professor Paulo Henrique Costa Mattos, residente em Gurupi, escolheu a História da Esquerda Brasileira e a Guerrilha do Araguaia como exemplos dessas lutas. E para explicar os elementos componentes desses fatos fez uma síntese histórica das condições econômicas e políticas do período de avanço do capitalismo brasileiro. Assim surgiu o livro “Vida Vermelha – História da Esquerda no Brasil – Dos primeiros partidos à luta armada no Araguaia” (Editora Veloso).
Para compreendermos a História da Esquerda Brasileira e a Guerrilha do Araguaia enquanto um fenômeno histórico-político dado em um certo momento do processo histórico brasileiro, o autor pensava, de início, que bastava compreender as macro-transformações do cenário nacional, mas logo percebeu que isto era insuficiente, pois a intenção era justamente buscar compreender a trajetória histórica dos comunistas/socialistas brasileiros e como ela engendrou a luta guerrilheira no país e o seu fracasso. Com isso, Paulo Henrique chegou a conclusão de que seria preciso inclusive conhecer um pouco do debate teórico marxista, a stalinização na URSS e o papel de algumas das lideranças daquela revolução como Lenin, Trotsky e Stálin, suas formulações teóricas e influência sob os partidos de esquerda no Brasil.
Nesta obra, o autor faz algumas citações a respeito da Revolução Russa, um dos fatos histórico, social, político e econômico mais importantes do Século XX, e alguns de seus dirigentes, suas formulações teóricas e concepções ideológicas que influenciarão profundamente toda a esquerda mundial, inclusive a brasileira e particularmente os dois partidos que pretendeu estudar com maior ênfase: o PCB e o PCdoB.
O autor optou em mostrar como a gênese desses partidos, suas análises estruturais e conjunturais do Brasil eram transpostas mecanicamente a partir das análises formuladas da Revolução Russa. Como essas concepções empurrarão o PCB e o seu principal racha o PCdoB a adotar diferentes estratégias e objetivos políticos na sua luta pelo poder no Brasil. Aliás, a questão da “tomada poder” é central para todo Partido que se auto-proclama revolucionário, socialista (ou comunista) e marxista. E serão principalmente as concepções ideológicas advindas da Revolução Russa que levarão a chamada esquerda brasileira, até 1980, a se aglutinar tradicionalmente entorno de Partidos e Organizações comunistas com determinados princípios e padrões propostos contidos em programas políticos diversos, mas que guardavam alguns vícios e posturas semelhantes que nortearam suas lutas e intervenções políticas.
Compreender o conteúdo histórico, político e cultural da História da Esquerda Brasileira e da luta Guerrilheira do Araguaia é fundamental para compreendermos o porquê de sua existência e o padrão invariável do comportamento das classes dominantes no Brasil, marcado pela cooptação, repressão, intolerância e tentativa de extermínio de todos aqueles que ousam questionar o status quo estabelecido. E isso passa também por compreender minimamente a prática e a teoria política das organizações que reivindicavam ser "a vanguarda e a expressão política dos trabalhadores" brasileiros para a construção de uma alternativa de poder. Ainda que para isso o autor teve que estudar um panorama histórico da economia brasileira até 1970 para viabilizar um melhor entendimento dessa perspectiva histórica.
Todavia, percebe-se que discutir a questão das concepções, origens das organizações políticas de esquerda no Brasil de forma detalhada não é a intenção desse trabalho, além do que esse é um assunto um tanto quanto complexo para ser tratado de forma restrita e nos limites presentes da obra.
Com a mesma preocupação de compreender minimamente o acionar político da esquerda brasileira e a realidade local onde se desenvolveram algumas de suas ações, como a Guerrilha do Araguaia, o autor procurou estudar e pesquisar um pouco quais eram as especificidades e características de Goiás nas regiões sul e norte, não só no período de 50-75, mas num período mais largo que possibilitasse a compreensão dos principais elementos diferenciadores da população goiana do período. Responder como a população dessas regiões viviam, quais eram os aspectos distintos, como funcionava sua vida cultural, social e econômica é fundamental. Embora isso diga pouco sobre a Guerrilha do Araguaia em si, ajuda a compreender porque esta região foi escolhida para ser palco de tal acontecimento e qual o impacto psicológico que ele ocasionaria nessa população.
Dentro do objetivo de fazer ênfase nesse estudo sobre a guerrilha do Araguaia, Paulo Henrique Costa Mattos aborda como História da Esquerda Brasileira basicamente apenas uma parte da História do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e o seu racha o PCdoB. Sabemos que esses dois partidos foram e são apenas duas das inúmeras organizações políticas surgidas na História das lutas dos trabalhadores brasileiros desde que as idéias de Marx apareceram pela primeira vez no país. Contudo, pelo caráter do trabalho o autor resolveu passar ao largo de outras organizações, quase que apenas citando-as para compor o quadro histórico.
Procurou ainda, abordar apenas a parcela da História mundial e nacional, suficiente para compreender as concepções e as circunstâncias históricas, que os referidos partidos levaram a ação política específica durante um dado momento histórico do Brasil.
No período histórico brasileiro onde analisa a economia do país encontrou bem evidentes as principais contradições internas do sistema capitalista nacional e a raiz do desequilíbrio crônico de nossas finanças externas, com todas suas graves conseqüências: instabilidade financeira, inflação, perturbações profundas e incontroláveis conjunturas que se repetirão com freqüência nos anos vindouros, ameaçando cada vez mais os próprios fundamentos da economia brasileira. E tornando impossível um desenvolvimento ordenado e solidamente alicerçado na perspectiva de um Brasil Nação.
Até hoje por todo país, inúmeras famílias e pessoas lembram-se traumatizadas das cenas de violência perpetradas pelas forças policiais, das perseguições e da caçada humana desenfreada contra os revolucionários, comunistas e lutadores do povo ao longo do século XX e os “métodos” pouco ortodoxos utilizados contra estes.
Nesta obra, Paulo Henrique nos mostra que a opção pela luta armada no Brasil de parte significativa da esquerda e de todas as tentativas de implantação da guerra de guerrilhas, foi uma alternativa política, uma manifestação resultante do fechamento dos canais políticos de expressão democrática e uma conseqüência lógica da violência imposta pelas classes dominantes brasileiras, que segundo o autor, nunca fizeram do Estado Nacional, um agente civilizador e gerador da Justiça Social e da Democracia.
Os choques armados e os confrontos entre algumas organizações de esquerda com as forças policiais e militares são o resultado de um mundo em movimento, conflitos, sonhos de uma geração, interesses de classe, opções econômicas do Estado e tentativa de alguns em derrubar o poder vigente. Nesse processo envolveram-se diversos grupos e categorias sociais, que vão desde os grupos burgueses urbanos aos operários fabris, dos militares aos estudantes. No caso específico da Guerrilha do Araguaia ela contrapôs num cenário único (a região da Serra das Andorinhas, de Xambioá, da fronteira do Pará com o antigo Norte Goiano, hoje Estado do Tocantins) dois atores em graus variáveis estranhos à realidade local. Jovens guerrilheiros e militares procedentes de áreas e situações bastante distintas daquelas em que o conflito se deu. O autor também observou que a própria extração social era bem distinta daquela população local. A maioria era filhos das camadas médias da sociedade, eram alfabetizados, muitos com curso superior e com vivência da cultura urbana dos grandes centros e sua característica plenamente capitalista.
O povo da região do Araguaia, na época em sua maioria, camponeses, donas de casa, trabalhadores manuais e gente humilde assistiu bestializado e praticamente sem compreender na sua totalidade o que verdadeiramente acontecia. Muitos moradores nem sequer sabiam qual o objetivo dos guerrilheiros ou o porquê da presença de tantos militares na região. Ficaram completamente assustados quando viram "moradores da região" fugindo para as matas e sendo perseguidos pelos militares como caça a ser abatida.
A verdadeira caçada humana praticada pelos militares aos "terroristas", coisa que o povo da região nem sabia o que era, é um dos capítulos mais sangrentos da História brasileira, com similaridade a Canudos, a Palmares, a Cabanagem e a tantas outras violências oficiais, também pouco estudadas, e por isso mesmo também dá margem ao cultivo de fantasias e histórias mirabolantes sobre o tema, uns porque até hoje não compreenderam tais fatos, outros até mesmo como receita mágica para atrair turistas-aventureiros para se dirigirem a região dos eventos, como no caso do Araguaia, para aproveitarem as águas cristalinas do rio, hospedando-se nos poucos e rústicos hotéis da região ou acampando nas praias daquele complexo ecológico e gerando alguns dividendos econômicos.
Paulo Henrique registra que, de qualquer forma, para muitos moradores das regiões daqueles acontecimentos, seja no Araguaia ou em outras localidades, os envolvidos já viraram lenda. E ressalta que hoje, vinte anos depois do fim da ditadura militar no Brasil, talvez possamos dizer sem medo de errar que os erros cometidos pela esquerda brasileira nas suas formas de lutas legais e clandestinas não geraram na população o acúmulo político-ideológico e a conscientização política desejada para engendrar sequer um governo democrático e popular, quanto mais uma Revolução Socialista no país a curto ou médio prazo. Apesar de tanta doação, sacrifício à causa operária e abnegação de jovens estudantes, trabalhadores inconformados com a exploração capitalista, ainda hoje, prevalece o poder político conservador, o Estado como principal gerador da violência no país, o poder desmesurado dos latifúndios, as dificuldades dos trabalhadores organizarem partidos e organizações com princípios socialistas, a falta de ética na política nacional, os massacres de trabalhadores, o trabalho semi-escravo, ou até mesmo escravo em fazendas pertencentes a grupos econômicos, a violência policial e das milícias particulares, o desrespeito aos direitos humanos, aos índios, às mulheres. Ainda prevalecem o analfabetismo e as péssimas condições de vida, as doenças e falta de políticas públicas. Ainda prevalecem o mandonismo das oligarquias e ingerência de grupos econômicos estrangeiros.
Por último, o autor destaca que é preciso dizer que compreender a História da Esquerda Brasileira e da Guerrilha do Araguaia como episódios históricos e políticos fruto de uma violência maior gerada pelas classes dominantes do Brasil é um passo importante para compreender a História do Brasil no século XX, seus acertos e desacertos. É acima de tudo compreender e negar que no futuro se restabeleça a longa noite que se abateu sobre várias gerações de brasileiros. Gerações essas que foram empurradas ao sacrifício de uma luta sem retaguarda, de um combate desigual e de uma vitória pouco provável. Mas, todavia, é preciso também lembrar sempre do poeta e militante anti-racista James Baldwin: - “Nem tudo que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modificado se não for enfrentado”.
Por tudo isso é que no tempo atual de desinformação histórica, falta de cultura de esquerda, desalento dos ideais socialistas no Brasil, desrespeito à memória dos lutadores do povo, resgatar o passado é fundamental para se construir um futuro de democracia, justiça e evolução social. Fazer memória das lutas populares e dos trabalhadores brasileiros é decisivo para a própria esquerda, é entender as opções do passado e do presente e permitir um aprofundamento do debate histórico em nosso país.
Esperamos que sua divulgação nesta forma permita alcançar os objetivos propostos e estimule a discussão histórica.