A Culpa É das Estrelas - Resenha do livro (com spoiler)
“A culpa é das estrelas”, no original “The Fault in Our Stars”, publicado por John Green em 2012 (que também acompanhou a adaptação homônima para o cinema em 2014, embora tenha decidido pela jogada de marketing de enviesar o filme para enfatizar a estória no namoro breve de dois adolescentes em que um morre no final e você chora, se esquecendo da essência da trama que é refletir sobre o sentido da vida, mas tudo bem) narra a estória da protagonista adolescente Hazel Grace, 16 anos, paciente terminal de câncer, e seu romance com o também adolescente e também paciente de câncer Augustus Waters. O resumo (com spoiler) é este: Hazel é uma adolescente com câncer que ganha uma sobrevida graças a aparelhos e remédios. Em um dos encontros de um grupo de apoio com outros jovens portadores de câncer da qual participa, ela conhece o adolescente Augustus Waters, que tem câncer nos ossos, já amputado parte de uma das pernas e usando prótese. Os dois iniciam uma amizade, flertam e terminam por apaixonar-se, apesar do receio de Hazel em causar dor a Augustus, ambos sendo cientes da brevidade de vida que dispõem e por Augustus já ter namorado uma adolescente que morreu devido ao câncer. Augustus é fã de filmes como "V de Vingança", "300 de Esparta", e videogames de missões heroicas, pelo fato de ele mesmo querer encontrar uma razão heroica e martirizante para sua condição e pelo medo de não ser lembrado após sua morte. Ele quer deixar uma marca no mundo. Já Hazel quer encontrar um sentido moral para a existência humana, pois tem ciência do esquecimento, e ela é fã de um livro o qual já leu muitas vezes e conta a estória de Anna, uma menina com câncer narrando sua vida em forma de diário. No entanto, o livro termina no meio de uma frase incompleta e isso faz com que Hazel fique curiosa e queira que o autor do livro responda a ela sobre o destino dos personagens (principalmente sobre a mãe da personagem, uma reflexão sobre a continuação da vida da própria mãe de Hazel após a morte desta), mas o escritor, que só escrevera aquele livro, vive na Holanda, recluso e sem dar entrevistas. Augustus consegue fazer contato com o escritor, agenda uma visita e consegue dinheiro para viajar com Hazel (mais sua mãe) até a Holanda. O encontro com o escritor, um alcoólatra grosseiro e prepotente, decepciona Hazel (mas é catarse necessária para que Hazel chegue a uma filosofia de vida no final), mas depois refletimos que o escritor (e fica a dica da metáfora da intervenção divina) agiu como agiu por um motivo relevante que é esclarecido logo adiante. Apesar disso, ela continua passeando por Amsterdã com Augustus, visita o museu de Anne Frank, e é lá que ela beija Augustus pela primeira vez. No hotel, os agora namorados (e virgens até então) fazem sexo pela primeira vez (e é sugerida uma segunda vez). Ao regressarem aos Estados Unidos, o câncer de Augustus que havia evoluído antes da viagem, debilitou-o. Augustus pede que cada amigo escreva e leia para ele um discurso fúnebre antes que ele morra. Hazel também faz seu discurso (discurso esse que sintetiza todo o aprendizado na viagem à Holanda). Oito dias depois Augustus morre. No velório, o escritor recluso aparece, para surpresa de Hazel. O escritor revela que Augustus manteve correspondência após a viagem à Holanda, e, ao saber da morte do jovem, resolve ir aos Estados Unidos. Hazel percebe assertivamente que o escritor tinha tamanho conhecimento sobre o câncer descrito em seu livro por ter tido a experiência com uma filha da mesma idade que a personagem do livro. O escritor confirma a intuição de Hazel e conta sua história de vida. Hazel também descobre que Augustus, antes de morrer, estivera escrevendo algo para ela, e, por meio da ex-funcionária do escritor, descobre que o último escrito de Augustus foi endereçado ao escritor na Holanda. A ex-funcionária envia por e-mail as cartas de Augustus e o livro termina com Hazel lendo a carta, que contém um pedido para que o escritor ajude Augustus a redigir um discurso fúnebre para Hazel, contendo também uma declaração de amor escrita sobre Hazel. Ao final da carta, Augustus espera que Hazel aceite as escolhas dela assim como ele aceitara as próprias. O livro termina com Hazel dizendo para si mesma (e respondendo a Augustus) a mesma frase que se diz em um casamento (até que a morte os separe): “Eu aceito, Augustus. Eu aceito”.
Mas o que faz “A culpa é das estrelas” ser um livro genial não é o fato de narrar o romance adolescente de dois pacientes terminais – quer dizer, é genial o fato de Green ter pesquisado sobre pacientes reais e ter dado verossimilhança na descrição da doença com tanto talento –, mas a genialidade de Green está nos recursos literários previamente calculados e escolhidos que recheiam o romance de referências literárias, cult, geração beat, surrealismo e, principalmente, filosofia, que não só despertam no leitor curiosidade sobre as perguntas existencialistas que moveram a humanidade e nossa cultura, como levam o leitor a refletir sobre filosofia. Vamos ao livro. Ok? Ok.
1) Isso é uma obra de ficção, o mais importante é a mensagem.
Um dos recursos literários geniais que John Green utilizou para enfatizar que a mensagem que ele deseja transmitir para o leitor é mais importante do que o destino dos personagens é a utilização de um livro paralelo de ficção, dentro da obra. Green faz isso de forma honesta logo de cara ao iniciar o livro com uma citação deste livro fictício. “Uma Aflição Imperial”, a estória de uma criança com câncer que narra sua vida em forma de diário é um livro que não existe. Foi inventado por John Green como parte da estória. Seu autor Peter Von Houten também não existe, é mais um personagem. John Green, sabendo que o leitor de uma obra pode passar a interessar-se com a continuação dos personagens após o término de um livro, resolveu inserir esse desejo na protagonista Hazel, o que justamente motiva a narrativa a seguir em frente. E, para que o leitor não se esqueça desse recurso, Hazel chega a ser confrontada com o escritor, que diz algo como: “Você quer saber o que acontece com um personagem depois que o livro termina? Ora, o personagem terminou junto com o livro. É só uma obra de ficção”. Esse lembrete com uma franqueza irritante é um lembrete para Hazel e para nós: “Você quer saber se Hazel ou Augustus morrem no final? Isso não é importante, eles terminarão junto com o livro. Então preste atenção nas mensagens e não nos personagens”. Outra referência de Green à trama como uma representação da realidade, onde o que mais importa é a reflexão sobre a mensagem, é quando o autor se utiliza da obra do pintor surrealista René Magritte que objetiva a mesma reflexão sobre a realidade e a representação da realidade. Em certo momento, Hazel veste uma camisa com a reprodução de um quadro de Magritte que consiste em uma pintura de um cachimbo, e, abaixo, os seguintes dizeres em letra cursiva: “Ceci n’est pa une pipe (Isto não é um cachimbo)”. Apesar da aparente contradição entre a frase que nega que a pintura seja um cachimbo, embora haja a pintura de um cachimbo no quadro, na verdade traz a reflexão de que, de fato, aquela pintura não é um cachimbo. É a representação de um cachimbo. O cachimbo é um objeto concreto, e a pintura é uma representação da realidade. Como se não bastasse a referência literária, Hazel chega a explicar isso para a mãe, não só para enfatizar ao leitor que não conhecesse o surrealismo de Magritte, mas para lembrar ao leitor: “Veja, isso não é uma estória real, é um livro, é uma representação da realidade, e o mais importante aqui é a reflexão que você vai desenvolver por meio desse livro”. E essa reflexão é uma reflexão filosófica.
2) As filosofias que nos fazem refletir.
“A culpa é das estrelas”, mais do que um romance adolescente, mais do qualquer outra coisa, é uma reflexão filosófica. O tema central do livro, como na filosofia, é a busca pelo sentido da vida diante do tempo que temos e está contra nós, é a busca por um significado de nossa existência durante o tempo que nos é disponível viver neste mundo. Perceba que TEMPO é o que menos temos enquanto vivemos. É o tempo que nos é tirado quando morremos. É porque morremos que a vida deve ter algum sentido. A morte é que dá a nós um sentido à vida e ao tempo que utilizamos da vida que temos. Quando John Green seleciona como protagonistas dois portadores de câncer sobrevivendo à doença e questionando-se o tempo todo sobre a brevidade da vida que lhes resta, do legado que irão deixar após a morte iminente, e sobre como a morte deles afetará seus familiares e amigos e, principalmente, se devem apaixonar-se um pelo outro frente à dor que causarão um ao outro com a perda um do outro, isso é mais um dos recursos geniais de Green para dizer ao leitor: “Ei, leitor. Percebeu que com ou sem câncer, todos iremos morrer? Qual o sentido de sua existência? O que você tem feito com o tempo que lhe é disponível?”. Entenda, o livro não é sobre Hazel e Augustus, é sobre nós. É um livro sobre o leitor.
A primeira referência filosófica que destaco é o próprio título do livro. “A culpa é das estrelas” é uma adaptação a uma frase de Shakespeare referente à culpa que o ser humano transfere ao destino, ao universo, a Deus, à natureza, seja o que for, ante ao que acontece a cada um de nós. Shakespeare escreveu: “A culpa, meu caro Brutus, não está em nossas estrelas, mas em nós mesmos, que somos subordinados”. Ou seja, diante do câncer de Hazel ou Augustus (ou do que quer que aconteça a nós, independente da causa), a escolha do que fazer diante disso é sua, é a sua condição humana, portanto, responsabilize-se.
A segunda referência é a própria condição de saúde dos personagens – Hazel só consegue respirar graças a um aparelho que oxigena e filtra seus pulmões, e Augustus não tem parte de uma perna, ambos vendo a morte chegar de forma anunciada e iminente, vendo o tempo passar de modo cada vez mais fatalista. Mas assim como eles, nós todos também somos incompletos. A morte também nos está anunciada e é iminente para todos. Mas só reconhecemos a saúde quando estamos doentes, e só valorizamos o que temos e o que somos na perda. É aí que está a reflexão de que a vida só ganha sentido e só mensura valor diante da morte.
Outra referência é o próprio livro preferido de Hazel que termina no meio de uma frase incompleta. Assim como o livro, nós todos somos uma história que é interrompida no meio de uma frase. A personagem do livro, Anna, é uma jovem, assim como outra “Ana”, a Anne Frank, esta da vida real, que também teve sua vida interrompida diante de outra fatalidade, o holocausto, e também escreveu um diário, inacabado. Notavelmente é no museu de Anne Frank, diante do relato em vídeo do pai de Anne, que Hazel e Augustus se beijam pela primeira vez, assumindo seu amor e seu comprometimento de viver o resto de suas vidas, apesar de qualquer fatalidade iminente que interrompa a vida e da dor que isso possa causar ao sobrevivente.
Diante dessa escolha, temos também a “escolha” de Green quanto aos personagens. Hazel que dizer avelã, fruto conhecido na mitologia celta por conceder inspiração e sabedoria às pessoas, e Grace quer dizer Graça. Augustus quer dizer venerável, que é o que Hazel sente. Mas Augustus, escolhido propositalmente em latim, também remete a Santo Agostinho, um dos filósofos mais importantes do cristianismo. A referência a Santo Agostinho não é por acaso. Agostinho reflete sobre a moralidade de Deus e a impossibilidade de Deus ser o causador dos males – o que nos remete à condição congênita do câncer – não culpe as estrelas, o destino, Deus, etc. Agostinho também reflete sobre o livre-arbítrio e a salvação pela graça divina, e é daí que vem a responsabilidade de assumir as consequências de se escolher livremente relacionar-se com Hazel Grace. Essa relação de “Augustinho” com a “Graça”, é a relação de Augustus e Grace.
3) Referências culturais. O livro é cheio delas. Destaco logo a sensibilidade de Green em ter escolhido dois momentos interessantes para citar dois poetas precursores da geração Beat: William Carlos Williams (WCW), e Allen Ginsberg. No livro, Hazel recita para Augustus o poema (muito conhecido palas crianças americanas) intitulado O Carrinho de Mão Vermelho. Esse poema é significativo (e NADA no livro é por acaso, tudo é bem selecionado por Green) pelo motivo de WCW, além de poeta, ter sido médico pediatra. E além disso, ele atendia crianças gratuitamente. O poema do Carrinho de Mão foi inspirado em uma consulta a uma criança, que, acamada, olhava fixamente pela janela do quarto para um carrinho de mão caído no jardim. O momento com Hazel e Augustus foi análogo: ela cuidando de Augustus e recitando o poema, e incluindo sua própria visão, continuando o poema. É uma das cenas mais sensíveis do livro. E outro momento que quase não é percebido, para o leitor desatento, é quando Hazel comenta ter lido o poema Uivo, de Allen Ginsberg. Se WCW inspirou a geração Beat, Ginsberg a consolidou (detalhe: Ginsberg inspirou Jack Kerouak a escrever os seus livros que marcaram a geração Breat, dentre eles, o mais popular Pé na Estrada). O Uivo narra a estória de um grupo de jovens se drogando, brigando, vivendo de forma inconsequente, e morrendo. É significativo porque Hazel comenta: "Eles usavam mais drogas do que eu". A ironia aqui é que, enquanto em Uivo a droga destruía a vida, para Hazel as drogas davam-lhe uma sobrevida.
Por fim, poderia aqui comentar sobre a definição de Hamartía, na Poética de Aristóteles, mais um filósofo; ou da Espada de Dâmocles; ou sobre o ético Dilema do Bonde, de Philippa Foot; ou sobre o conceito biológico de Omni Celulla e Celulla, de Virchow; ou sobre a metáfora do cigarro não aceso; ou das crianças brincando na escultura de ossos; ou até mesmo da metáfora sobre o tempo, esperança e credulidade em À Espera de Godot; mas já citei muitas referências sobre o sentido da vida. Mas se pudesse escolher mais uma referência utilizada por Green seria o Paradoxo de Zeno descrito na corrida entre Aquiles e a Tartaruga. Como exaustivamente utilizado no livro, este paradoxo consiste em deixar uma tartaruga correr antes de Aquiles. Após um tempo, Aquiles começa a se deslocar para alcançar a tartaruga, mas cada vez que Aquiles se aproxima da tartaruga, esta não está mais na posição anterior porque também se moveu, de modo que a tartaruga nunca será ultrapassada. No entanto, de fato, é ultrapassada, e a mensagem é que alguns infinitos são maiores que outros. E esse é o sentido que Hazel encontrou no amor de Augustus. Em seu discurso fúnebre, uma das partes mais tocantes e talvez o clímax da narrativa, Hazel sintetiza todo o aprendizado sobre a vida e conclui: “Você não imagina o tamanho da minha gratidão pelo nosso pequeno infinito. Eu não o trocaria por nada nesse mundo. Você me deu uma eternidade dentro dos nossos dias numerados, e sou muito grata por isso”. Assim como Hazel e Augustus, e assim como todos nós, nossos dias são numerados, eles têm um fim, e não importa o quanto corramos, a morte não pode ser ultrapassada. Por isso devemos aproveitar o tempo que ainda temos para viver a melhor vida possível porque, assim como a dor, a vida precisa ser sentida, e o amor nesta vida finita contém um pequeno infinito. E, mesmo que alguns infinitos sejam maiores que outros, devemos ser gratos pelo tempo que nos foi disponível, porque de qualquer modo, nossa vida chegará a um fim, será esquecida na eternidade, e nossa história será interrompida no meio de uma