O INVENTÁRIO DAS COISAS AUSENTES
CAROLA SAAVEDRA
CIA DAS LETRAS – 2014
Por Alexandre Coslei
“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. ” (Clarice Lispector)
Na selva da nossa literatura contemporânea, onde alguns jovens autores parecem mais vocacionados à ânsia de se verem como celebridades e comungarem com elas, encontramos Carola Saavedra, uma escritora que traz em si um facho da aura mítica de Clarice Lispector e se encaixa como valiosa joia no fino estojo da palavra.
Saavedra ensaia a metalinguagem numa narrativa que deságua no romance. É um rio fluindo ao encontro do oceano, um abraço metafísico.
“O livro é sobre uma mulher chamada Nina”
É ao redor de Nina que a autora cerze os retalhos que criam os cenários e uma história. Nina é o Big Bang que dá origem ao seu próprio universo, lugar em que testemunhamos o amor como exercício de frustração, a expectativa de um encontro improvável, um desencontro possível. E na colcha que nos envolve durante a leitura, convivemos com o tempo que nos oprime e imprime os rastros das histórias que contam outras histórias. Neste inventário de coisas ausentes há, principalmente, a presença da vida dissecada e remendada, como são todas as vidas.
“Nina não se sustenta em si mesma, precisa de ossos, uma estrutura que lhe dê concretude. Sem essa estrutura ela é apenas o espaço vazio, essa constante incerteza. ”
Entre febris sentenças poéticas nasce a personagem. Acontece assim, talvez, por estarmos todos condenados a ser poesia espremida pela inevitável necessidade do concreto. A poesia é a gestante de todos os personagens, mas é a realidade inabitável que os envelhece e mata.
“Nina é a neta do reverendo. Filha de um pai ateu. ”
No palco frágil de uma dicotomia ancestral, Nina se equilibra. Em sua companhia, está a humanidade tentando coadunar a herança que a sustenta, paixão e razão. Só há maniqueísmo num território estéril de pensamento.
“... nunca dei um soco em alguém, destruir, desfigurar um rosto, a mão coberta de sangue, como se a violência física pudesse dar vazão a outra coisa, uma violência muito mais arraigada. ”
Os personagens de Saavedra carregam aquele contraditório instinto que deseja romper a civilidade para alcançar o nosso bárbaro imprevisível.
A literatura é sempre mais poderosa quando consegue formar a interseção entre o que somos e o mundo em que existimos. Quando quem escreve compreende que a palavra é ponte, está consumada a conexão. É costurando retalhos tão humanos, sem desprezar nem os fios soltos, que Carola Saavedra torna o seu livro uma peça viva, dotada da alma e do calor que diferenciam a obra de arte do fugaz entretenimento.
CAROLA SAAVEDRA
CIA DAS LETRAS – 2014
Por Alexandre Coslei
“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. ” (Clarice Lispector)
Na selva da nossa literatura contemporânea, onde alguns jovens autores parecem mais vocacionados à ânsia de se verem como celebridades e comungarem com elas, encontramos Carola Saavedra, uma escritora que traz em si um facho da aura mítica de Clarice Lispector e se encaixa como valiosa joia no fino estojo da palavra.
Saavedra ensaia a metalinguagem numa narrativa que deságua no romance. É um rio fluindo ao encontro do oceano, um abraço metafísico.
“O livro é sobre uma mulher chamada Nina”
É ao redor de Nina que a autora cerze os retalhos que criam os cenários e uma história. Nina é o Big Bang que dá origem ao seu próprio universo, lugar em que testemunhamos o amor como exercício de frustração, a expectativa de um encontro improvável, um desencontro possível. E na colcha que nos envolve durante a leitura, convivemos com o tempo que nos oprime e imprime os rastros das histórias que contam outras histórias. Neste inventário de coisas ausentes há, principalmente, a presença da vida dissecada e remendada, como são todas as vidas.
“Nina não se sustenta em si mesma, precisa de ossos, uma estrutura que lhe dê concretude. Sem essa estrutura ela é apenas o espaço vazio, essa constante incerteza. ”
Entre febris sentenças poéticas nasce a personagem. Acontece assim, talvez, por estarmos todos condenados a ser poesia espremida pela inevitável necessidade do concreto. A poesia é a gestante de todos os personagens, mas é a realidade inabitável que os envelhece e mata.
“Nina é a neta do reverendo. Filha de um pai ateu. ”
No palco frágil de uma dicotomia ancestral, Nina se equilibra. Em sua companhia, está a humanidade tentando coadunar a herança que a sustenta, paixão e razão. Só há maniqueísmo num território estéril de pensamento.
“... nunca dei um soco em alguém, destruir, desfigurar um rosto, a mão coberta de sangue, como se a violência física pudesse dar vazão a outra coisa, uma violência muito mais arraigada. ”
Os personagens de Saavedra carregam aquele contraditório instinto que deseja romper a civilidade para alcançar o nosso bárbaro imprevisível.
A literatura é sempre mais poderosa quando consegue formar a interseção entre o que somos e o mundo em que existimos. Quando quem escreve compreende que a palavra é ponte, está consumada a conexão. É costurando retalhos tão humanos, sem desprezar nem os fios soltos, que Carola Saavedra torna o seu livro uma peça viva, dotada da alma e do calor que diferenciam a obra de arte do fugaz entretenimento.