RESSACA DO FUTURO
 
( UM CÂNTICO PARA LEIBOWITZ)
POR WALTER M. MILLER  (1956)
SINOPSE
 
Numa abadia medieval um grupo de monges copiam, gerações após gerações, documentos contendo informações de Leibowitz, o fundador da sua Ordem, sem entender seu significado. Leibowitz é canonizado pelo Novo Vaticano e se torna um santo, mas ele era, na verdade, um cientista judeu que vivera antes de a civilização ter sido destruída por uma guerra atômica. As relíquias do santo, tão cultuadas e copiadas pelos monges, são meras listas de mercearia, um bilhete de loteria e desenhos de sistemas de controle elétrico para lançamento de foguetes, mas para os monges eles são objetos sagrados, escritos esotéricos, inspirados por Deus. Suspeitava-se que Leibowitz fosse um cientista que trabalhava para o governo da antiga civilização destruída e que desenvolvia projetos tecnológicos bastante sofisticados, razão pela qual ele teria sido martirizado durante a era da Simplificação, época em que os sobreviventes da guerra caçavam os técnicos e os cientistas, culpando-os pela catástrofe.
Mais ou menos o que deve ter acontecido quando o Império Romano foi destruído pelos povos bárbaros. Nada restou da antiga civilização, a não ser memórias de um saber não compreendido, que foi imitado pelos bárbaros, na forma de ritos e costumes cujo objetivo eles não sabiam, mas que precisavam ser imitados, pois deviam ser inspirados pelos deuses. A única instituição que conservava os restos da antiga sabedoria era a Igreja Romana. Ela preservara as obras dos antigos filósofos, suas ideias, os documentos que relatavam as conquistas cientificas e espirituais da civilização destruída. Mas seus padres não entendiam nada do que estavam copiando. Então interpretavam á sua moda os documentos, mutilavam-nos, acrescentavam, alteravam seus conteúdos. O que era grandeza pessoal virou mito, o que era história virou lenda, o que era tecnologia virou milagre, o que era intuição e sabedoria natural virou feitiçaria, bruxaria etc. E assim nasceu a Idade das Trevas, mais de quinhentos anos de obscurantismo e ignorância em que a população ocidental viveu até recuperar a liberdade de pensar e buscar, por si própria, as respostas que precisava para entender as razões da própria existência. Coisa que os gregos haviam ensinado a humanidade a fazer um milênio anos antes.
 Um Cântico para Leibowitz mostra o perigo do acúmulo de poder tecnológico em poucas fontes e mãos de uma classe em particular. E nos fornece também um bom motivo para indagação: será que isso já não ocorreu anteriormente? Será a nossa civilização a única que atingiu um saber técnico tão desenvolvido? Não terá existido, no passado, civilizações tecnologicamente tão avançadas quanto a nossa, que por força do acúmulo de poder em poucas fontes e poucas mãos, não tenha sido vítima dessa concentração?
Um Cântico para Leibowitz é também uma bela reflexão, que opõe o saber técnico ao desenvolvimento espiritual. Ou que os monopolizadores da fé entendem ser esse progresso.    
Imaginemos, no futuro (que não parece tão distante), um mundo devastado por uma guerra atômica, onde os únicos sobreviventes são as pessoas que vivem longe dos centros tecnológicos mais desenvolvidos. Gente que não conhece rádio, televisão, internet, telefone, computador etc.
Imaginemos também que toda informação está armazenada em poucas fontes e que essas fontes também são destruídas com os demais depósitos de tecnologia e saber.
Um cenário como esse é exatamente o que estamos vivendo hoje. Estamos caminhando para um mundo onde todo o saber da humanidade, em breve, estará contido em poucos pacotes de informação, tipo google, youtube, uol, etc. E toda essa informação estará armazenada numa única fonte, tipo Internet, a qual estará, por sua vez, sediada em satélites. Pois as bibliotecas estão desaparecendo, as antigas línguas, nas quais foram registradas as descobertas tecnológicas e a maneira de utilizá-las, também. Exatamente como no passado, o latim e o grego, línguas em todo o saber do passado foi escrito, desapareceram e os poucos que a dominavam, os padres da Igreja, detinham o poder do conhecimento. Mas para usar uma máquina sofisticada não é suficiente saber ler. É preciso ter preparo técnico. Podemos imaginar, no futuro, um leigo letrado tentando reconstruir um conhecimento capaz de fazer funcionar um acelerador de partículas encontrado nas ruínas de um laboratório abandonado. Exatamente como um frade medieval diante de um texto de Pitágoras ou Euclides.
Um mundo onde as fontes de energia e conhecimento estiverem concentradas em poucas células e controladas por poucas pessoas é fácil de desmoronar. Basta que elas comecem a brigar entre elas. Esse é exatamente o tema do conto fantástico de Walter M. Miller. Ele descreve um mundo que foi destruído por uma guerra atômica. Toda a tecnologia, toda a informação, todo o saber organizado desapareceu. Apenas as pessoas mais simples, aquelas que viviam longe da civilização, sobreviveram. Restaram as cidades destruídas, com suas carcaças de máquinas, restos arqueológicos de edifícios, pedaços de equipamentos, fragmentos de livros técnicos com suas garatujas matemáticas e seus esquemas eletrônicos e outros resquícios do saber humano, fragmentados, destruídos, carcomidos pelo tempo e pela destruição sistemática que se seguiu logo após o término da guerra, quando as pessoas sobreviventes, enlouquecidas e enfurecidas pela destruição causada pelas bombas e pela ação da radiação, puseram a culpa nos técnicos e nos cientistas, culpando-os pela catástrofe.
Depois de alguns séculos de barbárie e perseguição, feita por uma Inquisição promovida por um Novo Vaticano, a humanidade voltou a se organizar. Então os monges da nova igreja começaram a recolher restos de documentos e artefatos sobreviventes da antiga civilização e passaram a copiá-los e reproduzi-los sem entender o significado e a utilidade deles. E foi assim que a civilização se recompôs, milhares de anos depois, a partir dos restos da velha civilização destruída, quando as pessoas, finalmente começaram a decifrar e a entender as antigas informações.
A ideia sugerida pelo autor é bastante clara. O que aconteceu no passado, quando o Império Romano caiu e as tribos bárbaras ocuparam as antigas províncias romanas é um exemplo disso. Pouco a pouco, as conquistas de uma civilização que havia ocupado a metade do mundo conhecido se perderam. As pessoas educadas morreram e não conseguiram transmitir seus conhecimentos, pois os seus sucessores bárbaros não eram capazes de entendê-los.
Por outro lado, a evangelização promovida pelo Vaticano não poupou a rica literatura e o saber tradicional dos povos catequizados. A intolerância dos catequizadores mandou para a fogueira a grande maioria dos livros antigos, que não estavam de acordo com o novo saber e aboliu os costumes, que na opinião da Igreja, não eram consentâneos com a moral e a ética da nova religião. Como não entendiam absolutamente nada do que estavam lendo, ou dos costumes e práticas dos povos que estavam catequizando, acabaram enterrando, junto com as superstições e as lendas desses povos, todo o antigo saber que a humanidade acumulara em três milênios de civilização.
Foi preciso que a civilização ocidental iniciasse uma nova marcha para o Oriente, onde a sanha dos catequizadores, católicos e muçulmanos principalmente, não conseguiu substituir as conquistas do engenho humano por um conjunto de dogmas obscuros e doutrinas intolerantes, para que a civilização ocidental recuperasse o seu rumo. Isso aconteceu com as cruzadas. Mas antes disso, mais de quinhentos anos de obscurantismo se passaram.
  A pergunta que fica é: Quantas vezes isso terá acontecido no passado? No atual estágio da arqueologia, nós ainda não conseguimos entender a civilização egípcia pré-histórica, aquela que floresceu antes das pirâmides. E dos textos escritos, até agora recenseados, mas que deixaram nas ruínas dos monumentos históricos e no conteúdo místico de suas lendas, o testemunho de um saber até agora desconhecido e incompreensível, pouco sabemos. O que terá sido, por exemplo, a famosa Atlântida de Platão, que remanescem nas lendas da maioria dos povos antigos? E que informações contém os megalitos de Stonehenge, os moais da Ilha da Páscoa, os templos perdidos nas selvas da América Central, nos altiplanos do Perú e do Tibete, onde ainda sobrevivem as memórias de uma civilização desconhecida e muitas vezes milenárias?
O conto de Walter M. Miller não é apenas uma peça literária de muita imaginação. É uma indagação que nos dá muito o que pensar. Será que é prudente ficar armazenando a totalidade da informação em poucos centros? Em poucos anos todo o saber da humanidade estará depositado em computadores, os quais estarão interligados em rede. As fontes de energia, a partir das grandes usinas elétricas e atômicas também estarão acumulando praticamente a totalidade da energia utilizável. Quando mais essa centralização se dá, maior o perigo de uma pane. Temos visto isso com os apagões que constantemente ocorrem e nos deixam muito preocupados.
Um Cântico para Leibowitz foi publicado nos meados dos anos cinquenta (1956,57,58). Há mais de meio século, portanto. Ele não é apenas mais um fenômeno de antecipação, como as Mil Milhas Submarinas, de Júlio Verne, A Mandrágora e o Terror, de Hans H. Ewers e outras obras de ficção que antecipam o futuro. É também um motivo para reflexão. Ressaca do passado para uma boa dor de cabeça no futuro, ou uma boa estória inspirada no perturbador mito de Nietszche, onde a geometria de um universo, cujas linhas se cruzam eternamente num espaço curvo, pressupõe uma eterna e monótona repetição de tudo que nele acontece?
Parece que quanto mais sábios ficamos, mais imprudentes nos tornamos.