Resenha do romance "Iracema", de José de Alencar

O romance de José de Alencar conta, através do idílio de Martim e Iracema, a lenda sobre a fundação do Ceará, um mito da formação do povo brasileiro.

Em linguagem poética, imagens finamente trabalhadas pelo escritor costuram o enredo da obra indianista. Do guarani "lábios de mel", Iracema é anagrama de América, o novo mundo desbravado por Martim, guerreiro do mar: "— Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus." — Essa fala já apresenta o personagem na figura do colonizador europeu.

O guerreiro branco é surpreendido pela flecha certeira da bela indígena. Já arrependida de tê-lo ferido, Iracema leva-o para repousar em sua taba. Martim então desfruta da hospitalidade de Araquém, pajé da tribo dos Tabajaras, oponentes dos Pitiguaras, tribo que o acolhera primeiro e dos quais havia se perdido em meio a uma caçada.

Ali, junto a filha de Araquém, o estrangeiro esquece-se de suas angústias. A paixão é mútua, mas Iracema não pode vivê-la, pois é guardiã do segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o pajé a bebida de Tupã, portanto ela deve permanecer virgem. Há nesse ponto proposital incongruência, pois, como índia criada fora dos moldes cristãos, não há lógica, nesse contexto, para que ela preserve a virgindade, mas essa é uma forma do autor introduzir características do romantismo europeu à obra.

"O mel dos lábios de Iracema é como o favo que a abelha fabrica no tronco da guabiroba: tem na doçura o veneno." — durante todo o texto são encontrados diálogos em terceira pessoa, além de metáforas e máximas extremamente elaboradas que, utilizando os elementos da natureza, tentam imitar a fala indígena, num estilo bem pitoresco. No entanto, a heroína tabajara, José de Alencar foi buscar no Cântigo dos Cânticos: os “lábios de mel” e o“ talhe de palmeira” são os mesmos de Sulamita, amada de Salomão.

Logo, o fato de terem abrigado o guerreiro inimigo desperta a ira de Irapuã, chefe da nação tabajara. No entanto, Iracema defende o guerreiro pitiguara com todas as forças, aumentando a fúria do chefe que, por despeito, decide tirar a vida de Martim.

Quando se entrega a Martim e foge com ele ao encontro de Poti, irmão do chefe dos Pitiguaras, Iracema trai não apenas o segredo da Jurema, mas seu povo e sua cultura para tornar-se humilde serva daquele que ama.

Vivem por certo tempo um ideal eleito, mas logo Coatiabo, ou seja, Martim, uma vez afeito ao costume indígena, cansa-se dessa existência simples e sente saudade da terra natal: “ Teu corpo está aqui; mas tua alma voa à terra de teus pais, e busca a virgem branca, que te espera."

Apesar do enleio romântico, há o desencanto comum, característico do desejo saciado. É visível um espírito típico do desbravador que, ao atingir o fim proposto, ruma para novas conquistas. Assim, para fugir do impasse, Martim se empenha como guerreiro e parte com Poti em batalha contra os Tupinambás.

Iracema reencontra a jandaia cujo canto minimiza a tristeza dos longos dias à espera do estrangeiro. Do enlace dos dois, nasce Moacir, que quer dizer "filho do sofrimento".

O ápice da história é quando a índia amamenta os cães para estimular a vinda do leite materno e assim saciar a criança: "A feliz mãe arroja de si os cachorrinhos, e cheia de júbilo mata a fome ao filho. Ele é agora duas vezes filho de sua dor, nascido dela e também nutrido.”

Em mais um simbolismo bíblico, Iracema pode ser comparada a Raquel, que também perde a vida pelo filho.

Na volta da batalha, Martim reencontra a esposa e a criança. Mas, já sem forças, Iracema morre e só se ouve a jandaia cantar seu nome. Diz a lenda que Ceará significa “canto da jandaia” , mas o mais provável é que o nome seja composto de cemo — cantar forte, clamar, e ará — pequena arara.

Uma das características marcantes da primeira fase do romantismo é propagar a cultura brasileira através desses mitos.

Da união de dois povos, Moacir simboliza o primeiro cearense, brasileiro nativo, fruto de uma mistura de raças e credos que, no entanto, é batizado como cristão e recebe "o nome do santo, cujo era o dia". Poti, amigo-irmão de Martim, também se rende à fé cristã.

Nessa evangelização voluntária, há uma referência sugestiva à submissão do povo indígena ao colonizador português. Para um movimento literário como o romantismo, em que um dos enfoques eram a lusofobia, que pregava o distanciamento de Portugal, há ainda muito da estética, crenças e valores, europeus. Ao mesmo tempo, é uma literatura que envereda pelo inusitado e por meio do folclore, da exaltação da natureza e dos bravos heróis de sua terra, procura enaltecer os valores nacionais e construir uma identidade para um Brasil, já nas palavras de Alencar, “tão pouco nosso”.

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ALENCAR, José de. Iracema: a lenda do Ceará. Rio de Janeiro, Ediouro, 1997.

Lidiane Santana
Enviado por Lidiane Santana em 22/04/2014
Reeditado em 31/03/2020
Código do texto: T4778235
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