LÍNGUA CRÔNICA (Fernanda de Aragão)
Ferina. Fernanda de Aragão, que tem sobrenome que remete a certa tradição lusa, lançou um livro ferino e lírico, feroz e livre, fumegante e líquido: “Língua Crônica”.
O título não mente. Ms. Aragão sabe o que fala, é vivaz e inspirada enquanto artista (no caso, aqui, das letras), e sabe burilar com coerência e coesão os signos da língua de Camões e Pessoa. Com maestria.
A obra, que recebeu o prêmio Mulheres Cronistas, em 2009, pela UBE-Rio, é a estréia da escritora. E ela, nunca comedida, entra em campo fazendo um gol de letra (não pretendi nenhum trocadilho, que fique claro!).
E se antes determinei que Aragão é ferina e outros adjetivos, agora encontro um termo mais condizente: voraz. Pois se entendemos por voracidade a vontade de permanecer na rinha quando assim for preciso, as crônicas (crônicas-quase-contos) da autora sugerem essa gana pela vida e pela permanência da arte. No belo Ninhos Virtuais, por exemplo, ela responde a algum entrevero surgido no território internet: “Por isso, mocinho, caso não queira mais ser confundido com a massa, tome este conselho de se identificar com nome e sobrenome, ou com o apelido de sempre, para as coisas ficarem mais fáceis” (p. 33,34). Primeiro prepara a artilharia, depois fuzila: “Daí sim, depois de ter dado nome aos bois, você terá toda a liberdade de juntar a sabedoria dos mais velhos com a cultura internetês dos mais jovens e colocar a sua frase do momento” (p. 34). Sua flecha é certeira, inflexível, retilínea, não titubeia. Ri ferindo. Quiçá matando.
Disposta a usar o signo linguístico como gládio, ela cerra os punhos: “É como se pudesse fazer mais, e ignorasse, e pertencesse ao conjunto de toda uma gente que empunha armas contra sua própria imagem”, sentencia ela no crônico “Todo Instante” (p. 71).
Contudo, também reconhecemos nela a fina marcenaria, o entalhe perfeito da arte trabalhada com esmero, da palavra colocada com exatidão no díptico forma e conteúdo. Assim, ela acentua a sanha guerreira ao mesmo tempo em que reforça o lirismo. “Promessas Vãs” traz esse encontro entre a asseveração filosófica e o adorno artístico: “eu queria ter outras mil razões para te fazer um hiato e colocar-te à beira da beira da loucura do que dizes e fazes, contrapostos” (p. 102).
Mas outros traços ajudam a revelar a personalização cristalina de “Língua Crônica”. Um dos mais marcantes, seguramente é a comicidade, que em “Meu Querido Caipirês”, adquire estatuto de definitivo: “Que me desculpe o bom literato, mas eu vou pinchar fora o português culto, meu inglês curto e ficar mesmo com o bom e velho caipirês” (p. 93). A aliteração aqui, avança pelo belo caminho da sutileza, em que o desdém esparrama e assevera linhas depois, “que me desculpe a certeza das palavras, mas eu só quero é prosear” (p. 94).
Fazendo e desfazendo roteiros de artifícios/exercícios que resumem as várias potências semânticas, sintáticas e morfológicas por onde ela transita, Fernanda de Aragão fascina e seduz. Mais que isso, revela, nesta “Língua Crônica”, que a prosa brasileira atual renova-se. E vai muito bem, obrigado! Mais que menina prodígio (que de fato é), Fernanda indica caminhos. Quem segui-la, com certeza há de venturar-se.
Aragão, Fernanda de. Língua Crônica. SP: Letra Corrida, 2010
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