GUIMARÃES, Rodrigo. Objeto algum. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
 

Alguns objetos de Objeto Algum

 

 

Através de uma comunhão sublime entre Filosofia e Literatura, um psicólogo, doutor das Letras, encontra alguns objetos para manifestar o genuíno sentimento humano, a poesia. Diálogos semióticos que banham a mente e reproduzem inquietações linguísticas; despreocupação gramatical e abolição de maiúsculas pomposas servem de base literária.

Nas páginas deste Objeto Algum, o espanto surge singelo na primeira composição cujo nome ambíguo convida a resolver um problema: qual o título do poema sem título, que nomeia também a primeira parte da lavra poética. No centro de um espaço, um prego na parede, um ponto indiferente; um quadro sem molduras ou um texto a titular. Nada além de um convite, o chamado para imergir em um todo, repleto de estranhamentos, tal qual um vestido que visa a olhos masculinos. E neste enlace, típico vocábulo de cartões de casamento, o erotismo de versos curtos despertam o olhar da sede masculina. Imagem luxuriosa serena de uma noite silenciosa e única, pois todos os instantes de gozos são sempre ímpares.

A decisão agora é reter na memória esses momentos. Para isso, "afastar alguns objetos favorece a decisão: os sapatos, os óculos, a pele, o pulso aberto, substituir com o mínimo e manter-se próximo a tudo que move sem assegurar-se no que desaparece". Contudo, "só não há uma coisa, é o esquecer". Abre-se o pulso, mas o sangue jorrado serve apenas de dor humana.

Se pesada é a pena que traça versos emblemáticos e ricos de significações, suave é o espírito que transpira tais sentimentos. O olho, portanto, abre-se tal uma janela disposta a enxergar a arte caligráfica de restos humanos traçados em livros. As janelas olham o mundo. Porém resta a incógnita: "para que serve uma janela se falta um olhar que a atravesse e espraie onde a vista se aguça abolindo tudo".

Nessa praia de papel pintada de letras, não há necessidade de busca insistente do azul líquido, pois "o mar, por exemplo, não há porque buscá-lo, ele o encontra e o invade por dentro". E, ao mergulhar dentro de si, essas águas sulcam os poros de destreza e simplicidade poética. Submersões de águas que afogam a abstração de um pensamento quase surreal que mesmo preso a introspecção possui a ciência de que "uma faca desequilibra o corpo assim como o aquário desequilibra o mar".

Veraz são as conquistas modernistas de um legado octogenário. Linha seguida à risca como que por um fio, versos monossilábicos. Um fio temporal que prolonga braços de um século a outro como os diálogos intrínsecos com Amor/Humor de Oswald de Andrade no dístico "com ele, como ele". Canibalismo? Erotismo? Ou religiosidade cristianíssima de um totem pregado numa cruz, alimento eucarístico.

No mergulho intertextual, um encontro com a infantilidade de Alice no seu maravilhoso país: "diante das inserções mútuas de abstração e espelho, se espelho houvesse: olhou por uma segunda vez e se deu conta: ao crescer, fica maior do que antes menor do que agora: este mínimo que convém às insistências". Nessa ausência de reflexo, a única saída é justamente a entrada interior e o refúgio nos devaneios poéticos, porque toda fuga, "mesmo à luz do dia, não passa de outra forma de matar".

E ao sair do sem título, adentra-se no objeto algum. Devaneios em prática e filosofia ativa em linhas espaçadas, minúsculas recusando pausas, poemas cedem lugar a uma quase prosa poética; Ponge e Roubaud são os guias. A barbaridade aqui é ambígua, tanto na extensão métrica quanto no cognitivo. A neblina de lugares frágeis faz um "convite ao escoamento para fora das sedimentações".

Através desses sedimentos, aqui potencialidade da palavra, o raciocínio lógico abre espaço para escavações mais profundas no terreno poético, deixando suspeitas de apreensões, pois "uma dúvida que duvidasse de tudo não seria uma dúvida". Ratificando, portanto, a abertura interpretativa e misteriosa dos versos irregulares que imitam a realidade abstrata dos sonhos.

Vire-se o livro, deite-o tal uma donzela ao colo másculo e leia, nas horizontais linhas, a matéria sublime de Rodrigo Guimarães. A rapidez do início, prontificada em versos brancos, curtos e mais inteligíveis, ganham complexidade nas páginas derradeiras, transformando estâncias em um todo prosaico. E com cores que "se fluem umas nas outras", como a convergir Filosofia e Literatura, Prosa e Poesia, o poeta encerra seu convite mágico ao mundo imagético das Letras mostrando que "a desidratação dos objetos tal é ao que parece essa fugidia matéria de contemplação com suas velocidades desiguais e quando chega a noite a cor ultrapassa sua condição silenciosa e se apaga". E iluminada seja a imaginação do homem.


Resenha publicada no jornal “Tribuna dos Geraes”, Norte de Minas, In: Penas dos Geraes, p. 7, outubro de 2014.